O Festim dos Corvos, 4º livro da saga As Crônicas de Gelo e Fogo foi publicado originalmente nos EUA em 2005 (enquanto aqui no Brasil, o livro chegou traduzido em fevereiro de 2012). Focado nos personagens que atuam ao sul do Gargalo, o enredo é basicamente a fábula sobre o que aconteceu a Westeros quando o país não conseguiu carregar nas costas a dor das significativas perdas da guerra e suas consequências, e todas as pessoas parecem estar à beira de um precipício de loucura e caos. Nesse contexto, os corvos chegam para comer os restos (espirituais e materiais) deixados pelos falecidos, corvos estes que têm sua personificação em vários personagens e, especificamente em um novo jogador: Euron “Olho de Corvo” Greyjoy. Assim, Jaime Lannister tenta limpar a sujeira do reino e consertar o que parece já estar quebrado pra sempre enquanto a irmã faz questão de bagunçar ainda mais tudo a seu redor, em uma tentativa de colocar como pano de fundo a história de um livro dedicado a explicar um dos aspectos mais polêmicos da história: o amor carnal que um sente pelo outro.
A primeira característica que o leitor estranha ao começar a folhear os livros é o fato de que alguns povs (pontos de vista) são nomeados com “títulos” (proféticos, talvez) e não com os nomes originais das personagens. Sem dúvida rola aquela sensação de “putz, esse livro vai expandir ainda mais o nível de polarização das tramas”, até porque, os personagens novos do livro possuem metade dos capítulos, e em alguns casos, apenas um para cada. Não sei em que circunstâncias você começou a ler esse livro, mas eu já sabia que ele contaria com metade dos acontecimentos posteriores à Tormenta de Espadas (enquanto o volume 5, Dança dos Dragões, contaria com a outra metade). Eu já sabia inclusive que o livro seria centrado em Porto Real, Dorne, Bravos, Correrrio e no Ninho da Águia. Além das novas tramas trabalhadas nas Ilhas de Ferro, também somos apresentados a Dorne e as órfãs de Oberyn Martell, as Serpentes de Areia. Mulheres incríveis, destemidas, cheias de sede de vingança.
O prólogo é um dos mais enigmáticos, confusos e cheio de infomações de toda a saga. Do ponto de vista de Pate, um noviço da Cidadela de Vilavelha que estuda para um dia se tornar meistre, sabemos que as pessoas pouco a pouco estão começando a acreditar que os dragões realmente ainda existem e que, ali na Cidadela, existe um segredo envolvendo uma vela de obsidiana. Esse capítulo é todo especial por passar a sensação de que estamos dentro de um livro do Tolkien, ou no início de um jogo de RPG. Vários personagens novos e peculiares juntos conversando em uma taverna. Dá uma puta sensação de que eles estão ali pra começar uma jornada.
O papel de Brienne na história, personagem que possui o segundo maior número de povs, é basicamente personificar o sofrimento do povo em detrimento do conforto de seus respectivos reis e lordes. Em um de seus capítulos, vemos, inclusive, um verdadeiro monólogo lindíssimo proferido pelo personagem do Septão Meribald (página 325 do livro).: “… um dia, olham ao redor e percebem que todos os seus amigos e familiares se foram, que estão lutando ao lado de estranhos, sob um estandarte que quase nem reconhecem. Não sabem onde estão e nem como voltar para casa, e o senhor por quem combatem não sabe seus nomes (…) toda a noção de casa está perdida a essa altura, e reis, senhores e deuses significam menos pra ele do que um naco de carne estragada (…). O desertor sobrevive dia a dia, de refeição em refeição, mais animal do que o homem. A Senhora Brienne não erra. Em tempos como estes, o viajante deve ter atenção aos desertores, e temê-los… mas também deve ter piedade por eles.”
O tom de sexo e violência possui a mesma acidez de sempre, trazendo cenas fortíssimas: como esquecer o encontro de Arys e Arianne, ou as tantas passagens sangrentas da jornada absurda de Brienne? Além de claro, as terríveis histórias dos Greyjoy, cheias de dor e drama. Vemos também inserido aqui de maneira deliciosa as pequenas amarrações sensacionais na trama que ficam por conta de Mindinho e Alayne Stone, e ainda o maravilhoso protagonismo de Cersei (agora rainha absoluta), que se mostra no ápice de sua “inveja do pênis”, colocando o reino às ruínas e enlouquecendo à mercê de uma profecia que, estranhemente, não pareceu ter tanta importância na vida dela antes. Não dá maneira como é retratada aqui. Infelizmente, como sempre, os vilões sempre trazem a ruína dos bons junto com a ruína própria. O que Martin faz com o “poder da religião” aqui é absolutamente maravilhoso… Ela dá o tempero do livro todo: a jornada do meistre Aemon, a Cidadela, a Fé Militante e o Deus Afogado nunca antes pareceram tão fervorosos e assustadores em sua crença. E é claro, Arya, e sua entrada tão enigmática no serviço do Deus das Muitas Faces.
O maior problema do livro é o fato de o enredo não possuir nenhuma reviravolta maravilhosa e absurda. E por conta de estarmos extremamente ligados a esse estilo de escrita de Martin, o livro deixa um gosto de “queria ter sofrido mais, queria ter chorado, queria ter jogado o livro da parede mais vezes e gritado – EU QUERO MINHA VIDA DE VOLTA, como fiz tantas vezes antes”. Além da clara sensação claustrofóbica das personagens femininas: o sufoco de Cersei e Arianne em certo momento da trama são idênticos, além de Alayne que o tempo todo não pode ser nada além de uma prisioneira. Isso reflete muito uma longa e angustiante espera que parece ser a nossa também, por tabela. Apesar de tudo e tanto, é uma leitura maravilhosa, da qual temos muita sorte de ter sido publicada e traduzida com menos de 5 meses de intervalo em relação ao próximo livro.Pelo número de capítulos, este livro é de Cersei, que possui dez. Brienne possui oito, Jaime sete. É quase um livro dos três, mas Cersei é estrela. É quase engraçado o fato de que ela não possuiu pontos de vista antes deste livro… Mas é claro, George gosta de mostrar as coisas na hora que tem vontade. Um claro exemplo disso é o “absurdo spoiler” que a gente ganha no meio da cara sobre Davos. Cersei é maravilhosa, porque é uma tragédia e não se dá conta disso, nem por um momento. Por mais que em alguns momentos ela esteja certa como mãe, a certo ponto da trama, isso não importa mais.Algumas pessoas dizem que esse livro é quase que uma nova organização das peças no tabuleiro, com diversas associações ao cyvasse ou aos gatinhos de Tommem, por exemplo. Acho que não, porque em todo livro da saga isso acontece. Acredito que o livro mostra, mais do que nunca, o potencial de explorar as pequenas tramas dentro de tramas maiores e a insignificância delas nesse universo onde tudo é permitido, nada tem começo, e nada tem fim. São fábulas dentro de fábulas, na Canção de Gelo e Fogo. É tudo muito maravilhoso de ler.
A narrativa é lenta, mas deliciosa. Se você chegou até aqui, é porque está apaixonado por ela, não seja hipócrita: você amou.Acredito que é possível sim ver este livro e Dança dos Dragões de maneiras separadas (embora se você quiser se aventurar, é possível ler os dois livros ao mesmo tempo). Porém, muitas coisas que você deixou passar batido aqui explodirão na sua cara no próximo volume, o que é maravilhoso.
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