Não é sem um pouco de contrariedade que escrevo este artigo. Fui um ferrenho opositor da teoria de que Tyrion pode ser filho de Aerys II Targaryen, ao invés de Tywin Lannister. Sempre considerei os argumentos que sustentavam essa hipótese um tanto inconclusivos, e sempre apontei falsas evidências que por vezes são lançadas para tanto (a suposta “imunidade Targaryen a doenças”, por exemplo).
Entretanto, com o lançamento de O Mundo de Gelo e Fogo, novas informações surgiram. E como sou adepto primeiramente da análise das informações que nos são fornecidas pelo autor para fundamentar teorias, não posso simplesmente ignorar o que apareceu e fingir que tudo continua na mesma.
É por isso que banco o advogado do diabo e trago esta pequena análise, com a velha teoria agora revista e um pouco mais sólida. É bom avisar: o texto contém, é claro, informações (não vou chamar de spoilers) contidas em O Mundo de Gelo e Fogo. As passagens do livro foram traduzidas livremente do original, e não correspondem à versão nacional da Leya. O artigo contou com colaboração de conteúdo e consultoria médica de Felipe Lobato.
Se você está lendo isto, provavelmente já está familiarizado com a teoria em questão, mas não custa relembrar alguns pontos para nos situarmos melhor. A ideia central da teoria é que Tyrion pode ser um filho bastardo do Rei Louco, Aerys II Targaryen.
As bases para tanto são conversas de Sor Barristan Selmy com Daenerys Targaryen, em que o cavaleiro revela que Aerys teria, quando jovem, sido apaixonado (ou obcecado) por Lady Joanna Lannister (prima e esposa de Tywin, e mãe de Tyrion), e mais tarde teria tomado certas “liberdades” em relação a ela em sua noite de núpcias com Tywin. É de se lembrar que Joanna era uma das damas de companhia da Princesa Rhaella, esposa de Aerys, quando jovem em Porto Real.
A partir dessas declarações de Selmy, algumas inferências puderam ser feitas sobre outros fatos da vida de Tyrion, que poderiam ter reação com uma possível paternidade Targaryen: a cor mais loura de seus cabelos em relação à dos irmãos, o fascínio por dragões, além da fala de Tywin para o anão quando de sua morte: “você não é meu filho”.
Supunha-se também que o nanismo de Tyrion e a morte de Joanna pudessem ter sido causados por tentativas infrutíferas de aborto com o uso de chá da lua. Nada conclusivo, porém: as peças só se encaixavam com base num pressuposto inicial, mas poderiam ser completamente independentes dele.
Entretanto, alguns problemas se afiguravam: a questão temporal principalmente. Até o lançamento de Mundo, sabia-se que Tyrion teria nascido em 272 ou 273 CA (não se podia afirmar com certeza). Cersei e Jaime nasceram em 266 CA, então o casamento (o último encontro entre Aerys e Joanna noticiado nos livros) teria necessariamente que ter ocorrido antes disso. Seria impossível, portanto, que Tyrion fosse fruto de uma relação na noite de núpcias. Ainda havia, porém, a possibilidade de um novo encontro entre rei e Lady Lannister que pudesse ter culminado em relação sexual e gravidez.
Entretanto, seria improvável também que, na eventualidade de Aerys ter tido relações com Joanna, Tywin, não tivesse ficado sabendo do ocorrido. A concordância de Tywin com a sobrevivência de uma criança que não fosse sua, ostentando o nome de sua família e vivendo como seu filho legítimo, e ainda com uma deficiência física notável e que seria sabidamente motivo de chacota para sua Casa ancestral, é também algo difícil de engolir. Era (e ainda é) um motivo de forte rejeição à teoria.
É sempre bom lembrar que um dos argumentos utilizados web afora para sustentar “Tyrion Targaryen” seria o fato de ele ter caído no Rhoyne perto de Chroyane e não ter contraído escamagris (ao passo que Jon Connington sim). Isso coincidiria com uma suposta imunidade dos Targaryen a doenças.
A despeito de Daenerys pensar e acreditar nessa imunidade durante os livros, é crucial que nos lembremos que a fonte de informações dela a respeito era seu irmão Viserys, cuja credibilidade no geral é altamente duvidosa devido à própria educação dele e aos seus distúrbios e megalomania. Nessa questão específica, está notadamente errado: diversos Targaryen morreram ao longo da história em razão de doenças. Como exemplos, podemos citar o Rei Daeron II e seus netos Valarr e Matarys, que morreram na Grande Doença da Primavera de 209, e o irmão de Meistre Aemon e Aegon “Egg” V, Daeron “Bêbado”, que morreu de varíola. Targaryens não são, portanto, imunes a doenças.
Ainda que se comprove eventualmente que Tyrion tenha um pai Targaryen, a sua não-contaminação pela escamagris se deve provavelmente mais a plot armor e pela notória preferência de George R. R. Martin pelo personagem. Definitivamente não seria consequência de um possível sangue de dragão.
Por outro lado, existe ainda um argumento não muito divulgado, mas que pessoalmente considero que pode emprestar uma força a mais à teoria. Em maio de 2007, GRRM participou de um evento de leitura e perguntas e respostas no Second Life para promover sua coletânea Dreamsongs (o evento, por acaso, ainda contou com participação David Benioff e D. B. Weiss, que falaram sobre a série de TV, ainda em estágio embrionário).
Ao que importa, enfim: o avatar de George naquele evento do Second Life era ninguém menos que Tyrion, seu personagem favorito. Acontece que quando GRRM relatou essa história em seu (Not A) Blog, ele descreveu a situação da seguinte maneira:
Bem, fiz minha aparição em Sheep Island há algumas horas, espertamente disfarçado como Tyrion o Duende para uma leitura e uma sessão de perguntas e respostas na livraria virtual da Bantam. Só que essa versão de Tyrion podia voar! Ah, se apenas o Tyrion dos livros pudesse voar, que bagunça ele vai… ah… poderia… ah, deixa pra lá.
O trecho em destaque pode significar que GRRM deixou deliberadamente escapar a informação de que Tyrion voaria nos livros (como podia fazer no Second Life). Daí, se poderia fazer algumas assunções, uma vez que a única forma de vôo literal que conhecemos atualmente na história é montar em um dragão.
Se Tyrion tivesse paternidade Targaryen, isso significaria que ele poderia montar um dragão (se se confirmar que para tanto é necessário ter o chamado “sangue do dragão”), e por consequência voar e aprontar “bagunças”, como sugeriu George no blog.
Pode não significar nada, mas dada a sabida preferência do autor pelo personagem – que ele já declarou em diversas entrevistas – e a própria desnecessidade de se deixar uma pista nesse sentido, não se pode simplesmente descartar. Pode ser que não seja um red herring (uma pista falsa), e realmente signifique alguma coisa.
Enfim, até o lançamento do Mundo de Gelo e Fogo, era basicamente esta a situação da teoria. Aos fatos novos, então.
O Mundo de Gelo e Fogo emula um livro escrito por Meistre Yandel da Cidadela, em concomitância com os eventos das Crônicas. O meistre teria inicialmente redigido essa compilação de informações para presentear o Rei Robert. Com a morte deste, o presente passaria então para Joffrey, e depois passou para Tommen (o “atual” rei), que finalmente o teria recebido. Dessa forma, a redação do livro não é completamente isenta, e contém um quê de parcialidade – afinal o meistre quer agradar seus leitores.
Essa parcialidade é mais notada em assuntos que concernem Tywin Lannister: geralmente ele é exaltado e apresentado sob uma luz um tanto favorável, contando em vários momentos com citações de puxação de saco por parte de Pycelle, um notório lannisterista. A seção dedicada a Aerys II é em boa parte dominada por relatos dos feitos e das qualidades de Lorde Tywin.
Em determinado momento, o meistre relata que Tywin e Joanna se casaram em 263 CA, depois de um ano de serviço de Tywin como Mão (à época, Tytos ainda era o Senhor de Rochedo Casterly). Fica esclarecido também que Joanna havia chegado a Porto Real em 259 (para a coroação de Jaehaerys II), e permanecido como dama de companhia da então Princesa Rhaella. Pycelle informa que Tywin e Joanna tinham um casamento felicíssimo, enquanto que o de Aerys e Rhaella era bastante conturbado.
Aerys era frequentemente infiel à irmã-esposa, a ponto de Rhaella dispensar várias de suas damas de companhia por acreditar que Aerys as fazia de “suas putas” (incluindo Lady Joanna). Yandel também informa que seguidos abortos, natimortos e bebês frágeis deterioraram ainda mais a relação do casal. Aerys eventualmente começou a desconfiar que Rhaella o traía e praticamente a aprisionou na Fortaleza de Maegor.
Quando do nascimento dos gêmeos Lannister, as coisas começam a ficar mais “interessantes”. Aerys ficou um tanto insatisfeito e a tensão entre Rei e Mão, que já era crescente, aumentou ainda mais. É bom lembrar que quando mais jovens, Aerys, Tywin e Steffon Baratheon haviam sido grandes amigos em Porto Real. Ao relato de Yandel, porém:
(…) em 266 CA, em Rochedo Casterly, Lady Joanna deu à luz um par de gêmeos, uma menina e um menino, “saudáveis e belos, com cabelos como ouro”. Esse nascimento apenas exacerbou a tensão entre Aerys II Targaryen e sua Mão. “Parece que me casei com a mulher errada,” se noticia que Sua Graça disse, quando informado do feliz evento. Não obstante, ele enviou a cada criança seu peso em ouro como presente de dia-do-nome e comandou Tywin a levá-los à corte quando estivessem com idade bastante para viajar. “E traga também a mãe deles, pois foi há muito que contemplei aquela bela face”, insistiu.
Em 267, quando Lorde Tytos morreu e Tywin voltou a Rochedo Casterly para o funeral de seu pai, Aerys o acompanhou, e o Reino foi comandado de lá por alguns meses, onde Rei e Mão temporariamente residiram, até o retorno a Porto Real em 268.
Em nota à parte do relato cronológico, Yandel faz questão de desconsiderar rumores sobre a perda da virgindade de Joanna para Aerys:
O rumor indecente de que Joanna Lannister teria perdido sua virgindade para Príncipe Aerys na noite da coroação de seu pai e sido durante um breve período como sua amante depois que ele ascendeu ao Trono de Ferro pode seguramente ser desconsiderado. Como Pycelle insiste em suas cartas, Tywin Lannister dificilmente teria tomado sua prima como esposa se isso fosse verdade, “porque ele sempre fora um homem orgulhoso, e não acostumado a se banquetear com sobras de outros homens.”
Foi noticiado por fontes confiáveis, porém, que o Rei Aerys tomou liberdades invulgares em relação à Senhora Joanna durante sua cerimônia de casamento, para o descontentamento de Tywin. Não muito depois, a Rainha Rhaella dispensou Joanna Lannister de seu serviço. Nenhuma razão para tal foi dada, mas a Senhora Joanna partiu imediatamente para Rochedo Casterly e raramente visitou Porto Real desde então.
É notável que o próprio meistre trate a primeira situação como um rumor, e a segunda, que nós, leitores, também conhecemos por outra fonte (Barristan Selmy) e cuja credibilidade é maior, seja mais claramente aceita.
Ocorre, entretanto, que em 272 Joanna visitou novamente Porto Real, quando do Torneio de Aniversário que comemorava dez anos de reinado de Aerys II. Lady Lannister levou os gêmeos à corte, e ouviu de um Aerys bêbado o questionamento de se amamenta-los teria “arruinado seus peitos, que eram tão elevados e altivos”. Depois desse incidente, Tywin quis renunciar ao cargo de Mão na manhã seguinte, mas foi recusado pelo Rei.
Em 273 nasceu Tyrion, e morreu Joanna. Aerys declarou sobre o nascimento que “Os Deuses não podem tolerar tanta arrogância. Eles colheram uma bela flor de sua mão e o deram um monstro em seu lugar, para finalmente lhe ensinar alguma humildade”. A relação entre os dois se deteriorou ainda mais nos anos que se seguiram, ao passo que a de Aerys e Rhaella se beneficiou do fato de Viserys ter nascido e sobrevivido (não sem muita paranoia por parte do Rei), e de uma aparente fidelidade por parte dele.
Bem, agora sim podemos dizer: há bases concretas para se apoiar e defender essa teoria polêmica. Para além do mero resumo dos fatos contidos em Mundo, é importante notar algumas informações talvez não tão explícitas, mas que podem significar alguma coisa.
A relação de Aerys e Rhaella degringolou, segundo Meistre Yandel, pela incapacidade dela de gerar novos filhos ao Rei, contando 8 filhos mortos em 13 anos, até o nascimento (e posterior sobrevivência) de Viserys em 276:
As relações entre o rei e a rainha ficaram ainda mais tensas quando Rhaella se provou incapaz de dar a Aerys novos filhos. Abortos em 263 e 264 foram seguidos por uma filha natimorta em 267. O Príncipe Daeron, nascido em 269, sobreviveu por apenas um ano. Então veio um novo natimorto em 270, outro aborto em 271, e o Príncipe Aegon, nascido dois ciclos prematuro em 272, morto em 273.
(…)
O avanço da loucura do rei pareceu arrefecer por um tempo em 274 CA, quando a Rainha Rhaella deu a luz a um filho. Tão profunda foi a alegria de Sua Graça que pareceu que ele tinha voltado ao seu eu antigo… mas o Príncipe Jaehaerys morreu mais tarde naquele mesmo ano, mergulhando Aerys em desespero.
Essa informação pode ter outro significado para além dos problemas conjugais dos Targaryen e da piora na condição psíquica de Aerys. Yandel dá a entender que a deficiência estaria em Rhaella, mas e se fosse o contrário, ou se ambos tivessem problemas para gerar filhos? Na possibilidade de uma relação entre Aerys e Joanna ter realmente existido, uma deficiência da parte dele poderia explicar a malformação de um eventual filho, nesse caso o bebê Tyrion.
Depois da exposição de fatos antigos e novos, acho que é bom que cada um faça seu exercício sobre acreditar ou não na teoria, inteira ou em partes. A conclusões definitivas não se pode chegar, absolutamente. O propósito aqui não é convencer ninguém, mas um convite à análise da teoria. Não que eu não tenha minha opinião, porém.
Depois de atuar como advogado do diabo, volto às origens. Como disse no começo do texto, continuo sendo contrário à teoria, e apresento meus motivos para tanto. Ainda penso assim porque as informações continuam inconclusivas, e porque um fortíssimo argumento ainda perdura: por que Tywin concordaria em manter vivo e criar um bebê que não era seu, e seria motivo da maior desonra de sua vida?
Se por um lado o novo livro trouxe novas possibilidades de ter havido relação consumada entre Aerys e Joanna, por outro lado ficou praticamente descartada a hipótese de que Tywin simplesmente não soubesse que o rei e sua esposa tivessem tido uma. A fase em que há mais chances (não confirmadas, frise-se) de terem tido relação sexual seria quando Joanna viveu na capital.
Pelo relato de Yandel, sabemos que Joanna pouco visitou Porto Real depois de sua dispensa por Rhaella. Seria absurdo supor que nessas raras visitas ela tivesse mantido relações com Aerys (ainda que fossem estas não-consensuais por parte dela), e Tywin não soubesse do fato. Dada a antiga obsessão de Aerys por sua esposa e sendo quem é, seria natural que Tywin tomasse todas as precauções possíveis para impedir qualquer situação nesse sentido ou ao menos saber dela. Tão absurdo quanto, seria conceber que Tywin soubesse de uma relação nessas visitas e tivesse anuído em manter um filho fruto dela.
Como Pycelle disse, e nesse ponto é inegável que ele esteja certo (pois mais uma vez somos privilegiados enquanto leitores), Tywin era um homem orgulhoso. Nem o amor a sua esposa seria uma justificativa plausível para que ele criasse esse filho, penso eu, afinal ela justamente havia morrido em função dele. A própria condição frágil do bebê seria um trunfo enorme para que Tywin – também sabidamente destituído de pudores para alcançar seus objetivos – pudesse se livrar dele: um falecimento por doença, ou em um acidente que lhe custou a vida seriam facilmente passáveis.
Outro ponto que me faz resistir ao “Tyrion Targaryen” é a contradição inerente à relação entre Tywin e Tyrion, que eu considero um ponto fortíssimo da construção dos seus personagens. O anão é tudo o que o Lorde de Rochedo Casterly sempre sonhou para um herdeiro. É parecidíssimo consigo mesmo, ao contrário dos gêmeos: pragmático, resoluto e cerebral (a despeito do eventual sentimentalismo). Genna Lannister, irmã de Tywin, percebeu e disse o mesmo a Jaime.
Ao mesmo tempo, porém, Tyrion está para sempre maculado por ter “matado” Joanna quando nasceu, e por ser o que é: um anão, que em Westeros está fadado a ser motivo de piadas entre os lordes (como de fato ocorreu, segundo relata Yandel no livro) e manchar ainda mais o nome Lannister. O Lannister ideal, que veio “com defeito” no entender de Tywin, e à custa da morte da coisa que ele mais amava, talvez a única.
Sendo Tyrion um Targaryen, essa situação paradoxal seria vazia de significado, e eu pessoalmente consideraria isso uma grande perda para a narrativa e a história pessoal dos personagens. Em A Dança dos Dragões, o conflito interno por ser um patricida representou grande parte dos inúmeros POVs do anão. Teria sido tudo isso desnecessário, no final das contas?
Ocorreria ainda outra situação, que eu considero também um duro golpe para a história: Tyrion filho de Aerys seria praticamente sedimentar a ideia da superioridade Targaryen e a necessidade de que um personagem seja dessa Casa para ascender aos mais altos níveis de proeminência na história. Admitindo-se que Jon Snow também o seja (no que acredito fortemente), teríamos a trinca mais popular da série sendo do sangue do dragão.
Um ponto notável de O Mundo de Gelo e Fogo é que o livro, por seu próprio formato de ter sido “escrito” por um narrador não-tão-confiável, não tenciona ser a “palavra definitiva” sobre os diversos assuntos que aborda. Pode ser, inclusive, que essa questão sequer seja mencionada novamente nos livros e a intenção de George seja que a polêmica sobre a paternidade de seu anão perdure ad eternum entre os fãs.
Atualmente, porém, a teoria a favor da ancestralidade Targaryen de Tyrion está inegavelmente mais forte que antes, e pode ser discutida e debatida por propositores e por opositores com mais bases. Se o intuito do novo livro é estimular a discussão e a polêmica entre os fãs, nesse aspecto ele é notavelmente bem-sucedido.