Traduzo aqui a resenha de Miles Schneiderman do episódio “Unbowed, Unbent, Unbroken” para o Tower of the Hand. Schneiderman faz reviews de todos os episódios para o site já há um bom tempo, com opinião isenta e longe do que se pode chamar de extremista. Este texto em específico traduz com enorme clareza as minhas próprias impressões sobre o episódio, mais especificamente os argumentos que apareceram para justificar a cena do estupro de Sansa, e os rumos que Game of Thrones vem tomando geral, e por isso resolvi traduzi-lo e publicá-lo. Boa leitura.
O texto a seguir é de autoria de Miles Schneiderman e o original pode ser encontrado aqui.
“Uau. Obrigado por nada, Bryan Cogman. Eu gasto mais de 3.000 palavras te exaltando na semana passada, e em troca… isso? Sério? Como pode possivelmente ser verdade que a mesma série de TV, contando com os talentos do mesmo escritor, pode nos dar o excelente “Kill the Boy”e o absolutamente terrível “Unbowed, Unbent, Unbroken” em semanas seguidas? Talvez eu não devesse estar surpreso; afinal, mesmo dentro de sua própria duração de uma hora, o Episódio 6 conseguiu flertar com “isso é ótimo” por uns 20 minutos antes de degringolar vagarosamente para um penhasco. Foi um microcosmo de toda essa temporada até o momento: pequenos trechos de excelência pontuados por completa incompetência; a obra-prima da semana passada seguida pela atrocidade desta semana. A 5ª Temporada tem alguns picos, mas seus vales tem sido de uma profundidade vacilante, e para ser brutalmente honesto, não sei se Game of Thrones vai voltar deste.
Olha, todos sabemos sobre o que estamos aqui para falar, então sem enrolação. Vamos fazer isso logo. A cena do estupro é imperdoável. Existem inúmeros lugares em que você pode ir na Internet para ler sobre por que ela foi imperdoável (eu recomendo o artigo de Joanna Robinson; ela diz isso tudo muito mais eloquentemente do que eu jamais conseguirei) então ao invés de explicá-la claramente, vamos tomar uma abordagem diferente e nos direcionar às justificativas mais comuns para ela que pipocaram online nos últimos dias.
1. Não foi estupro.
Sim, na verdade, foi. Você sabe, eu sei, Game of Thrones sabe. Nós vimos que foi na cinematografia e ouvimos na música. Se a intenção fosse uma cena de sexo consensual, a câmera teria se demorado em cada parte do corpo de Sophie Turner que fosse possível enquanto Mindinho explicaria seu plano de mestre para se tornar Senhor de Rochedo Casterly, Magíster de Pentos e Alto Sacerdote do Deus Afogado. Isso não aconteceu.
2. OK, mas Sansa concordou em se casar (“Eu aceito este homem,” especificamente), o que implica consentimento para pelo menos uma relação sexual. Essa era essencialmente a noite de núpcias padrão de Westeros.
Acho que sim… se você considerar a definição de “padrão” como incluindo se casar com um psicopata na total ausência de família e amigos, nos destroços esfarelados de sua casa de criança que foi destruída pelo seu futuro marido, depois de ser entregue pelo homem que traiu sua Casa e assassinou seus irmãos. Noite de núpcias padrão, claro.
Isso não faz com que não seja estupro, porém. Novamente, a série sabe disso; na mesma situação no casamento anterior de Sansa, Tyrion usa exatamente as palavras “Eu não vou estuprá-la” para soletrar sua recusa em consumar (isso está na série, não nos livros). A despeito do que você pode ouvir de certos co-autores creditados de certos livros de referência, estupro conjugal existe, e o fato de que ele ocorre mais ou menos o tempo todo em ambientações medievais como esta não muda a natureza do ato. Nem a prevalência de valores medievais em uma ambientação fictícia (isto é, consentimento implícito para consumação do casamento) nega o fato de que estamos assistindo a uma série de TV, no mundo real, no ano de 2015. A definição relevante de consentimento aqui é a sustentada pela audiência, não pelos personagens. Uma cena de estupro foi filmada; uma cena de estupro foi televisionada. Fim de papo.
3. Cena de estupro bem fraca, então. Poderia ter sido bem pior.
Você não vai encontrar ninguém argumentando que o estupro foi ofensivo porque foi explícito demais. Esse não é o ponto. O ponto é que o estupro foi completamente gratuito. Ele não avançou nenhuma narrativa e não revelou nenhum elemento de personagem. Nós sabíamos que Ramsay era um sádico. Nós sabíamos que mulheres eram suas vítimas preferidas. Tanto Sansa quanto Theon já tinham motivos mais que suficientes para odiá-lo sem a necessidade de mais um. Não havia nenhuma necessidade para essa sucessão de eventos, o que sugere que Bryan Cogman e/ou David Benioff e D.B. Weiss na verdade gostam da ideia de ter personagens principais mulheres estupradas pelo VALOR DE CHOQUE.
4. Espera aí. Mas isso basicamente não acontece nos livros, também?
E muito mais! Na verdade é bem pior no livro, apesar de a vítima ser uma personagem relativamente secundária ao contrário da Sansa Stark do caralho. Jeyne Poole sofre um puro e absoluto suplício em A Dança dos Dragões, e a versão dos livros dessa cena de estupro é realmente horrível, ao ponto de que o papel de Theon no sofrimento e no abuso de Jeyne é uma das coisas que finalmente o forçam a desafiar Ramsay e reclamar alguma parte do quem e do que ele era antes.
Mas a série não é os livros, lembra? Quem diabos decidiu que a cena de A Dança dos Dragões com Ramsay, Theon e Jeyne Poole estava implorando para ser adaptada e filmada? Não é o Casamento Vermelho, pelo amor de deus; não precisava estar lá. Depois de quatro temporadas e meia de contorcionismo mental, dobras de lógica, desenvolvimentos de plots do tipo “que-porra-está-acontecendo” projetados especificamente para chegar a ou evitar um evento particular – consistência dentro do universo que se exploda – você não vai me dizer que não havia outra forma de avançar essa história. De cabeça eu posso pensar em uma dúzia de alternativas a Sansa ser estuprada que teriam conseguido exatamente a mesma coisa. E por exatamente a mesma coisa, é claro, eu me refiro a uma redução, preguiçosa, apelativa de um arco narrativo que Sansa teoricamente já completou.
Porque esta cena não simplesmente falhou em avançar o personagem da Sansa; ela essencialmente a retornou a ser espancada por Meryn Trant na 2ª temporada, sem reconhecimento de seu desenvolvimento desde então ou da história que o roteiro tem nos contado sobre ela pelos últimos cinco episódios. Diabo, sequer concordou com a Sansa Stark que tínhamos visto antes no próprio episódio, saindo por cima de Myranda e se recusando a sentir medo. Sansa não tentou lutar com Ramsay, não tentou manipulá-lo, não tentou se salvar de nenhuma forma. Tudo o que ela fez foi sentir medo e chorar.
Isso é porque a cena de estupro de Sansa não era sobre Sansa. Era sobre Theon. O diabo do casamento era sobre Theon, também. O desafio da parte de Sansa, junto com seu papel central, durou exatamente até quando Theon a acompanhou até o bosque sagrado, ponto em que o script perdeu todo o interesse nele. É como se Cogman escrevesse a cena do banho entre Sansa e Myranda e pensasse “Certo, Sansa definida. Mulher forte e tudo mais. Agora estou livre para usá-la como objeto para o ângulo de Redenção do Fedor.” É por isso que Sansa olha para Theon tão pesarosamente momentos antes de seu estupro. Pobre Theon, forçado a assistir. É por isso que a câmera permanece firmemente focada nas lágrimas dele, enquanto firmemente se recusa a nos mostrar as dela. Não foi gratuito; foi pensado.
A contraparte dos livros dessa cena, até o ponto em que uma coisa dessas pode ser medida, é fundamentalmente sobre Theon. Ele é o personagem POV; faz sentido que a cena sirva só a sua história, porque nem Jeyne nem Ramsay têm uma história independente. Os produtores da HBO pensaram que poderiam jogar Sansa no lugar de Jeyne, simplificar sua narrativa, e dar a Theon seu “momento de esclarecimento” redentor, às custas de uma personagem que não só tem uma história independente própria, mas quase certamente uma mais importante. O resultado foi o massacre do personagem de Sansa, e para quê? Para que Ramsay pareça mais mau? Para que Theon pareça mais atormentado? Para que Sansa faça, mais uma vez, o papel da eterna vítima? Eu pensei que Game of Thrones fosse melhor que isso, e também muita gente que conheço. Me entristece e me dá raiva descobrir que estávamos errados.
5. O que, você queria que isso fosse algum conto de fadas? Não devemos nunca mostrar estupro na TV? Coisas ruins acontecem com pessoas boas. Desculpe se você não consegue lidar com o realismo, mas como o cara disse, “se você acha que isso tem um final feliz, você não está prestando atenção.”
Tá, sobre isso. Então a cena de abertura de “Unbowed, Unbent, Unbroken” inclui Arya Stark lavando e limpando cadáveres na Casa do Preto e Branco. No processo, ela lava o cabelo de um cadáver, passando os dedos por ele enquanto a água escorre para uma bacia abaixo. Mais tarde, Arya mente para uma menininha, dizendo a ela que se ela beber daquela fonte, ela vai ser curada, quando na verdade ela vai morrer.
Em Winterfell, Myranda lava o cabelo de Sansa, passando os dedos por ele enquanto a água escorre para uma bacia abaixo. Mais tarde (apesar da existência de inúmeras linhas de roteiro e personagens que poderiam ser invocados para evitar, incluindo a vela na janela, Brienne e Pod, o Peixe-Negro, Theon, e a própria Sansa) Sansa é brutalmente estuprada pelo homem com quem ela foi forçada a se casar.
As conexões não são difíceis de ver, e quando você as nota, o tema do episódio aparece. Sansa é a menininha, e também a audiência, a quem foi contada uma fábula por meia temporada (e mais) sobre seus recém descobertos poder e agência. Arya é Cogman, Weiss, e Benioff, nos contando a fábula para nos acalmar enquanto o horror é trazido a nós em um copo. A lição, como muitos apontaram, é a seguinte: A vida é injusta, o mundo está cheio de coisas horríveis, e às vezes os vilões vencem.
Muito obrigado por essa profunda observação, Game of Thrones. Aqui reside a mais profunda falha deste episódio. Depois de quatro temporadas e meia, ele não tem nada de novo a dizer. Ele não mais sabe como contar histórias que desafiem tanto os personagens envolvidos quanto os espectadores. Ele só sabe como nos chocar, nos fazer engasgar e protestar e inserir #GameOfThrones nos nossos posts no Twitter. E está confortável em fazê-lo, porque sempre pode se apoiar em “se você achou que isso tem um final feliz, você não está prestando atenção.”
Uma cena de estupro pode significar alguma coisa. Pode dizer algo profundo. Pode nos fazer pensar. Esta cena de estupro, apesar do fato de que foi tanto desnecessária quanto indesejável, poderia ter feito qualquer dessas coisas, se quisesse. O quanto Bryan Cogman teria mais credibilidade em sua defesa natimorta deste episódio se (por exemplo) a câmera tivesse permanecido só na face de Sansa, forçando Sophie Turner a nos mostrar o que acontece quando uma garota que já perdeu tudo é vitimizada mais uma vez? Teria sido horrível, mas teria havido um propósito. Poderia ter tido algo interessante a dizer. Ao invés disso, Game of Thrones tomou o caminho covarde. Não quer nos fazer pensar sobre estupro. Simplesmente acha que estupro é provocante e conveniente. É por isso que essa cena foi absolutamente, totalmente inescusável.
E agora, algumas notas sobre o resto do episódio.
O arco de Arya foi bastante bom esta semana, mas talvez eu esteja apenas agradecido que o script finalmente conseguiu colocar uma história razoável de “personagem principal passa em um teste” depois de várias falhas. Eu gostei da ênfase no jogo das faces, particularmente a parte em que Jaqen sabe que a Arya está mentindo mesmo que ela mesma não saiba. O salão cheio de faces foi impressionante, também. Trabalho sólido, no geral, mas é claro, Maisie Williams tem sido a MVP dessa série já há algumas temporadas.
A continuação das aventuras de Jorah e Tyrion foi boa a princípio, particularmente a reação de Jorah à notícia de seu pai. Ótima performance de Iain Glen. Eu também estava gostando muito da linha de perguntas de Tyrion sobre o que acontece se Dany um dia ascender ao Trono de Ferro… até que foi abruptamente cortada por, de todas as coisas, um ataque de escravagistas. Isso porque escravagistas não viajam para Valíria, hein? Agora está claro que o atalho da semana passada pelo Mar Fumegante era basicamente só uma razão para dar escamagris a Jorah antes que a dupla fosse desajeitadamente redirecionada, o que é desapontante. Tyrion se salvando com sua falação interminável foi divertido, mas o script fez um trabalho bem porco para fazê-lo crível. “O anão vive até que encontremos um mercador de paus” é uma ótima linha de diálogo, mas como uma racionalização real, deixa algo a desejar, como toda essa sucessão de eventos.
O retorno de Diana Rigg a Porto Real foi bem-vindo, mas os Tyrells como um todo pareceram muito facilmente manipulados neste episódio, até na excelente cena entre Rigg e Lena Headey. É completamente possível, até plausível, que a expressão na cara de Lady Olenna no final daquela conversa fosse menos “Estou derrotada” e mais “Eu vou tentar parar de ser razoável com você agora, mulher louca”, mas ainda fica por saber como a série vai lidar com a queda de Cersei, isso assumindo que ela vá cair. Além disso, toda a “santa inquisição” se provou mais um exemplo da temporada 5 reciclando histórias da temporada passada. Primeiro a narrativa “Robb vs. Lord Karstark” foi transportada para Mereeen, e agora o Episódio 6 inclui uma re-contagem do julgamento de Tyrion, com Sor Loras como Tyrion e Olyvar como Shae. Se eles estão satisfeitos em simplesmente recontar a Temporada 4, posso simplesmente aplicar meu mantra sobre a Temporada 4 ao arco do Alto Pardal em geral e chamá-lo Corrido e Preguiçoso?
E isso sem nem mencionar Cersei e Mindinho, que deve ser a cena mais burra em que eu já vi Aidan Gillen tentar miseravelmente atuar. Eu tentaria desembrulhar toda a merda idiota empacotada nessa cena, mas francamente, eu não tenho nem o interesse nem a paciência necessárias para fazê-lo. Foi estúpido. Continuando…
… para Dorne! Oh, Dorne. Como eu te odeio? Vamos contar. À parte de uma referência à “Mulher do Dornês”, essa sequência não tem qualidades que a redimam, e eu perdi as esperanças de que este plot vai render algo mais que frustração. Jaime e Bronn casualmente passeando Jardins de Água adentro, em plena luz do dia, para tentar convencer Myrcella a fugir com eles, foi risível. Ter as Serpentes de Areia então atacarem Myrcella nos Jardins de Água, em plena luz do dia, exatamente no mesmo momento, foi simplesmente triste. Essa também foi uma das piores cenas de luta que eu já vi em TV/filme, e eu não sou geralmente o cara que reclama de coreografia de lutas. Eu não conseguia dizer o que estava acontecendo, eu não sabia quem ninguém era… era como assistir Equilibrium como um show de marionetes. Felizmente nada disso importou, porque Areo Hotah apareceu e muito razoavelmente solicitou que todos parassem de tentar sequestrar Myrcella dos Jardins de Água em plena luz do dia. Boa, Sr. Hotah. Oh, e Bronn foi cortado logo no final, o que significa que ele provavelmente foi envenenado, a não ser que o “você luta bem para uma menininha” dele tenha sido um prelúdio para ele dormir com aquela Serpente de Areia em particular (eu não sei qual foi) e ser morto por ela de uma forma diferente. Hurra! Esse foi o tipo de diálogo e estrutura de história que eu esperaria de um vídeo de YouTube, não da HBO. Não fez sentido, e é claro, não teve nada a ver com os livros… mas Ramsay estuprar sua nova noiva em sua noite de casamento? Bem, tínhamos que ter aquilo. O casamento não teria feito sentido do contrário!
O que nos traz de volta aonde começamos. No geral, os produtores tiveram uma certa petulância em chamar esse episódio de “Unbowed, Unbent, Unbroken”. Game of Thrones é atualmente tão insubmisso, não-curvado e não quebrado quanto Sansa Stark. Porque mesmo que tenha havido coisas nesse episódio de que gostei, eu finalmente atingi o ponto em que não vale a pena. Eu não posso permanecer fã de um programa que claramente não tem nenhuma consideração nem por seu material fonte nem pela qualidade de sua escrita original, e certamente já cansei de dar o benefício da dúvida para uma equipe de criação que continuamente se aproveita de violência sensacionalística contra mulheres. Quando mudaram o casamento de Daenerys de consentimento duvidoso-mas-discutível para estupro explícito, eu voltei para a 2ª Temporada. Quando eles aleatoriamente mataram Ros em uma reviravolta exibicionista de erotismo homicida, eu voltei para a 4ª Temporada. Mesmo depois que Jaime estuprou Cersei em uma cena que não significou nada porque nunca mais foi mencionada, aqui estou, analisando a 5ª Temporada. E aqui estou, me envolvendo em mais condenação moral de mais uma retratação sem sentido de estupro e abuso. Se é isso que Game of Thrones pensa dos seus fãs, eu estou parando de ser um deles.
Vou terminar a 5ª Temporada porque eu tenho um compromisso com o Tower of the Hand, com meu colega revisor, Stefan Sasse, e o podcast UNspoiled! para falar sobre a 5ª Temporada em vários formatos. Eu também vou fazê-lo porque eu não quero deixar que Game of Thrones disponha de seus críticos tão facilmente. Mas esses serão meus quatro últimos episódios. Eu não estarei por aqui na 6ª Temporada.”
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