“The King Who Knelt”, por Chase Stone para O Mundo de Gelo e Fogo.

A singularidade da Casa Targaryen e de seu “sangue do dragão” é algo inegavelmente notável dentro do universo de Gelo e Fogo: eles definitivamente não são uma casa como outra qualquer de Westeros. Não à toa, foram os primeiros a conquistar, unificar e governar os territórios westerosi de Dorne à Muralha. A peculiaridade Targaryen é suficiente para que boa parte de O Mundo de Gelo e Fogo seja dedicada a eles, e para que George R. R. Martin já tenha declarado que pretende escrever ainda um livro, após a conclusão da série principal, dedicado inteiramente à história da Casa, provisoriamente intitulado Fire and Blood.

Entretanto, no mundo das discussões sobre as Crônicas, vemos frequentemente afirmações errôneas sobre os Targaryen, muitas vezes motivadas por passagens dos próprios livros, que se tomadas isoladamente podem gerar confusão. O que se pretende aqui é esclarecer alguns mitos que são propagados a respeito do “sangue do dragão”, crenças que em alguns momentos são também utilizadas para fundamentar teorias, que ficam comprometidas por se basearem em falsos argumentos.

É claro que tudo o que será apresentado aqui tem fundamentação nos próprios livros que compõem o cânone de Gelo e Fogo: a série principal, os contos de Dunk & Egg, O Mundo de Gelo e Fogo, The Princess and the Queen, e O Príncipe de Westeros, e em declarações de George R. R. Martin em entrevistas ou sessões de perguntas em evento. A adaptação da HBO não é considerada como parte dos conteúdos oficiais das Crônicas de Gelo e Fogo, compondo um cânone próprio de Game of Thrones.

Breve histórico e características dos Targaryen

Um breve resumo com algumas características marcantes de membros dos Targaryen pode ser interessante e ajudar a contextualizar algumas explicações.

Os Targaryen inicialmente eram uma das chamadas Quarenta Famílias de Valíria, a nobreza que controlava os dragões e detinha o poder na Cidade Franca. Não estavam os Targaryen, porém, entre as casas mais poderosas. A decisão de deixarem Valíria e se dirigirem a Pedra do Dragão se deu por sonhos proféticos de Daenys, a Sonhadora, que previu que um cataclisma se abateria sobre a Cidade Franca. Aenar, senhor dos Targaryen à época e pai de Daenys, confiou nos sonhos da filha. Ele e sua família deixaram Valíria e desembarcaram em Pedra do Dragão, a mais ocidental das colônias valirianas, em 114 AC, levando consigo cinco dragões (dentre eles Balerion) e acompanhados por casas vassalas, da nobreza menor valiriana: Velaryon, Celtigar e provavelmente também Qoherys.

Como consequência da mudança para Pedra do Dragão, os Targaryen foram uma das únicas casas a escapar da Perdição de Valíria (a catástrofe profetizada por Daenys) que ocorreu 12 anos depois, e a única dentre os senhores de dragões. Após aproximadamente um século de sedimentação do poder Targaryen na região da Baía do Água Negra, houve interesse de alguns para que eles, enquanto senhores de dragões, liderassem uma retomada do poder de Valíria em Essos a partir de uma aliança com Volantis. Aegon, o posterior Conquistador, porém, tinha outros planos, e se resolveu a unificar Westeros sob o domínio de um único monarca: ele mesmo. A Guerra da Conquista empreendida por Aegon, cujos detalhes não serão aprofundados, foi bem sucedida e assim se alastrou a influência do sangue do dragão por todo o continente westerosi.

“Dragonstone”, por Philip Straub, para O Mundo de Gelo e Fogo. Pedra do Dragão era a mais ocidental colônia valiriana e se tornou a sede dos Targaryen em Westeros.

O termo “sangue do dragão” é costumeiramente utilizado para designar pessoas com as características valirianas. Na aparência física, eles comumente têm olhos púrpuras ou violetas e cabelo dourado-prateado, ou platinado. É importante notar que essas características não são exclusivas dos Targaryen, sendo apresentadas também pelos Velaryon, que além de serem eles mesmos também valirianos, se casaram inúmeras vezes com os dragões ao longo da história. Como uma espécie de ramo cadete da casa principal, os Blackfyre também herdaram essas características, afinal seu fundador, Daemon, era filho de dois Targaryen (Aegon IV e Daena), e a aparência se transmitiu também a seus descendentes. Eventuais filhos de Targaryens com pessoas de outras casas e “sangues” também herdam os atributos.

Um traço historicamente marcante em alguns membros da casa é a capacidade de ter sonhos proféticos, os chamados “sonhos de dragão”. É claro que Daenys é o exemplo maior desse dom, mas há outros exemplos de descendentes que demonstraram experiências similares: Daeron “Bêbado” (filho de Maekar), meistre Aemon e muito provavelmente também a “atual” Daenerys. O dom foi transmitido também para os Blackfyre, com Daemon II comprovando também ter essa capacidade.

É notável, portanto, que de fato o sangue do dragão tem suas particularidades. Passa-se então a uma análise sobre quais aspectos delas são reais e quais são crenças que exageram ou distorcem a realidade.

A “mácula”: são os Targaryen mesmo propensos à loucura?

É uma condição frequentemente associada aos Targaryen a propensão à loucura. Trata-se, porém, de uma questão debatível, afinal é difícil “diagnosticar” e diferenciar insanidade mental de episódios problemáticos isolados de um indivíduo.

“The Mad King”, por Z. G. Fisher. Aerys II foi o expoente mais famoso da loucura Targaryen.

É fato, entretanto, que ao longo da história houve Targaryens visivelmente loucos. O mais famoso deles, é claro, é Aerys II, cuja paranoia levou em última instância à queda da Casa e lhe rendeu o apelido de “Rei Louco”, o que é um feito notável em uma família que já possuía a fama de ter historicamente membros insanos. Seu filho Viserys, “o Rei Pedinte”, também é identificado como louco, segundo sua própria irmã DaenerysIllyrio Mopatis. Outros exemplos incontestáveis são Rhaegel, que dançava nu pela Fortaleza Vermelha, e Aerion “Chamaviva”, que morreu ao ingerir fogovivo acreditando que isso iria transformá-lo em um dragão. Os reis Maegor e Baelor são também tidos como insanos, o primeiro deles por sua absurda crueldade e psicopatia e o segundo pela extrema castidade que em muito ultrapassava os níveis razoáveis. Aemond, filho de Viserys I e um personagem importante da Dança, também apresentava sinais de psicopatia.

Há quem suscite a possibilidade de Daenerys “Filha da Tormenta” ter também sua sanidade comprometida no futuro, tendo ela pai e irmão loucos e já demonstrado certa propensão a atos de crueldade quando em eventuais acessos de fúria, como torturas e execuções atrozes. O próprio Rei Louco quando jovem não era ainda conhecido como tal: Aerys era tido como bastante generoso, atraente e decidido, mas facilmente irritável, características curiosamente coincidentes com sua filha. Alguns episódios posteriores em sua vida, somados a seu sequestro durante o Desafio de Valdocaso, foram o gatilho para a manifestação de sua paranoia e insanidade. Alguns personagens dentro da própria história, como Quentyn e Arianne Martell, Daemon Sand e Mace Tyrell chegam a questionar se a dita mácula atingiria Daenerys.

A aparente propensão à insanidade levou à famosa frase dita por Barristan Selmy e atribuída por ele a Jaehaerys II:

(…) a loucura e grandeza são dois lados de uma mesma moeda. (…) Sempre que um novo Targaryen nasce, os deuses atiram uma moeda ao ar e o mundo segura a respiração para ver de que lado cairá.
(A Tormenta de Espadas, cap. 71, Daenerys VI)

A alegoria de Jaehaerys é um tanto exagerada, afinal a quantidade de Targaryens sãos ao longo da história em muito supera a dos loucos (confirmados ou aparentes), e a maioria esmagadora dos membros da casa não se destacou nem por grandeza nem por loucura. Não se pode, porém, ignorar que houve uma quantidade no mínimo digna de ser notada de Targaryens aparentemente insanos ao longo da história, possivelmente em decorrência de suas práticas incestuosas.

A imunidade Targaryen a doenças existe?

Passa-se, então, a uma análise da tão popularizada e polêmica crença na imunidade a doenças, que supostamente seria um traço daqueles do sangue do dragão. Essa noção é baseada em uma conversa entre Daenerys e Barristan quando ela visita e anda entre os astapori contaminados com o fluxo sangrento (popularmente conhecido como égua descorada). Daenerys argumenta sobre essa suposta característica de sua família para tranquilizar Selmy sobre o perigo de estar ali:

Sor Barristan franziu o nariz e disse: – Vossa Graça não deveria estar aqui, respirando estes humores negros.
– Sou o sangue do dragão – Dany lhe recordou. – Alguma vez já viu um dragão com o fluxo? – Viserys sempre afirmara que os Targaryen eram imunes às pestilências que afligiam as pessoas comuns e, tanto quanto ela podia dizer, era verdade. Conseguia se lembrar de estar com frio, com fome e com medo, mas nunca doente.
(A Dança dos Dragões, cap. 36, Daenerys VI)

A partir dessas linhas, a imunidade a doenças passou, para muitos, a ser uma característica incontestável dos Targaryen. Essa ideia algumas vezes serve até como pretenso argumento para fundamentar teorias, particularmente a hipótese de Tyrion Lannister ser filho de Aerys II. Suscita-se que o fato de o Duende não ter contraído escamagris quando caiu nas águas contaminadas do Roine na região dos Sofrimentos seria uma evidência de seu sangue Targaryen. Várias outras passagens dos livros, no entanto, desmentem a pretensa imunidade e desmontam esse argumento.

Na verdade, quando a fala de Daenerys foi publicada pela primeira vez, ela já era problemática pois contrariava informações anteriormente publicadas, que já indicavam Targaryens doentes. A ideia de imunidade foi suscitada nos livros pela primeira vez com a publicação de A Dança dos Dragões em 2005. Quando isso ocorreu, porém, já havia no próprio cânone relatos de Targaryens acometidos e mortos por doenças que afligiam também as “pessoas comuns”.

Em A Fúria dos Reis, publicado pela primeira vez em 1998, Jeor Mormont, ao contar a Jon Snow sobre a história de Meistre Aemon Targaryen, menciona o seguinte:

– Aemon estava às voltas com seus livros quando o mais velho dos seus tios, herdeiro da coroa, foi morto num acidente de torneio. Deixou dois filhos, mas seguiram-no para a sepultura não muito tempo depois, durante a Grande Peste da Primavera. O Rei Daeron também foi levado, e por isso a coroa passou para o segundo filho de Daeron, Aerys.
(A Fúria dos Reis, cap. 6. Jon I)

Mormont menciona ainda, na mesma conversa, que o irmão de Aemon,  Daeron (o Bêbado, o mesmo que tinha sonhos proféticos) morreu de doença venérea. No original se usa o termo “pox“, que serve para designar genericamente várias doenças infecciosas, dentre elas a sífilis. Foi esta a adotada na tradução de Jorge Candeias, provavelmente porque Mormont acredita que ele tenha contraído a doença de uma prostituta:

(…) O novo rei convocou todos os filhos para a corte, e queria que Aemon participasse do seu conselho, mas este recusou, dizendo que isso usurparia o lugar que pertencia por direito ao Grande Meistre. Em vez disso, serviu na fortaleza do irmão mais velho, outro Daeron. Bem, esse também morreu, deixando como herdeira só uma filha de fraco entendimento. Alguma sífilis que pegou de uma puta, acho. O irmão seguinte era Aerion.
(A Fúria dos Reis, cap. 6. Jon I)

Importante notar que em O Cavaleiro Juramentado, segundo dos contos de Dunk & Egg e publicado em 2003, a informação de Mormont é corroborada e somos novamente informados, desta vez com um pouco mais de detalhes, que entre as milhares de vítimas da Grande Praga da Primavera estavam o rei  Daeron II e os herdeiros Valarr e Matarys.

Há ainda outra prova de doença em Targaryens antiga na cronologia de publicação (e também na cronologia do universo): em O Cavaleiro Andanate, primeiro conto de Dunk & Egg e publicado pela primeira vez em 1998, o pai de Aegon V (Egg) e Meistre Aemon, Maekar I, é descrito como tendo as bochechas marcadas por varíola, o que naturalmente implica que em algum momento anterior ao do conto ele tivesse contraído a doença.

O próprio Aemon é também um exemplo da falta de imunidade: além da cegueira que o aflige há anos, seu falecimento, que ocorre em O Festim dos Corvos, se deu em decorrência de ter se adoentado por exposição a condições climáticas inclementes, durante a viagem de Atalaialeste a Vilavelha.

A lista, porém, não se resume a esses nomes. As publicações de O Mundo de Gelo e Fogo e de O Príncipe de Westeros trouxeram à tona mais pessoas do sangue do dragão doentes, acometidas por enfermidades das mais diversas naturezas. Segue uma lista, com as obras e os capítulos em que se encontram as referências:

  • Aenys I, segundo rei da dinastia dos dragões, morreu sob circunstâncias obscuras: alguns acreditam que por desgaste físico e mental, outros que foi assassinado pela Rainha Visenya para que esta pudesse colocar seu filho Maegor no Trono. O que não se discute, porém, é que Aenys já estava doente por no mínimo dois antes antes de morrer, tendo de ser cuidado pela própria Visenya. Grande Meistre Gawen relata que Aenys tinha a aparência de um homem de 60 anos, apesar de ter menos de 35. (O Mundo de Gelo e Fogo, Os Reis Targaryen: Aenys I);
  • Baelon Targaryen, filho de Jaehaerys I e Alysanne e pai de Viserys I e Daemon, conhecido como o “Príncipe da Primavera”, reclamou de uma pontada na lateral da barriga durante uma caçada. Faleceu alguns dias depois em decorrência de “ventre estourado” (O Mundo de Gelo e Fogo, Os Reis Targaryen: Jaehaerys I);
  • Maegelle Targaryen, oitava filha de Jaehaerys I e Alysanne, foi dada à Fé e se tornou uma septã com talentos para a cura. Ela cuidava especialmente de crianças contaminadas pela escamagris, mas foi eventualmente contaminada ela mesma e morreu da doença em 96 DC. (O Mundo de Gelo e Fogo, Os Reis Targaryen: Jaehaerys I);
  • Viserys I, o rei cuja morte desencadeou a Dança dos Dragões, teve a mão cortada pelo Trono de Ferro. Sofreu febre por uma infecção adquirida ali e esteve à beira da morte, só se recuperando depois que dois de seus dedos foram amputados por Meistre Gerardys (O Príncipe de Westeros);
  • Laena Velaryon, filha de Rhaenys e Corlys Velaryon e esposa de Daemon, deu à luz um bebê malformado, e foi acometida de febre puerperal que lhe custou a vida, a despeito dos esforços empreendidos pelo mesmo Meistre Gerardys, que posteriormente se tornaria Grande Meistre. (O Príncipe de Westeros);
  • Aegon III, chamado Dragonbane (“veneno de dragão”) pelo fato de o último dragão ter morrido durante seu reinado, morreu em 157 DC de tuberculose. (O Mundo de Gelo e Fogo, Os Reis Targaryen: Aegon III);
  • Viserys II, que havia servido como Mão de seu irmão Aegon III e dos sobrinhos Daeron I e Baelor I, ascendeu ao trono após o falecimento deste último e pretendia ser um novo Jaehaerys, mas morreu de uma doença repentina. Especulou-se, posteriormente, que essa doença súbita na verdade fosse envenenamento por seu próprio filho e sucessor, Aegon IV. (O Mundo de Gelo e Fogo, Os Reis Targaryen: Viserys II);
  • jaehaerys_amok_roman_papsuev
    Jaehaerys II, por Roman Papsuev (Amok). A ilustração foi feita seguindo instruções diretas do próprio Martin, que descreveu Jaehaerys como “doentio”.

    Aegon IV, o Indigno, pai de Daeron II, Daemon Blackfyre e demais Grandes Bastardos e indiretamente causador da Rebelião Blackfyre, foi um rei notável por sua promiscuidade e seus excessos na corte, mesmo depois de casado. Aegon adquiriu sífilis de uma prostituta com quem se deitou após a morte de sua ex-amante, Bethany Bracken, e a transmitiu a Jeyne Lothston, a amante seguinte, que faleceu em decorrência da doença. O próprio Aegon não faleceu por conta dessa enfermidade, mas sua morte foi horrenda, indicando também doença: seu corpo ficou tão inchado que ele não podia mover seus membros e seu colchão ficava coberto por suas fezes. Seus membros apodreceram e foram consumidos por vermes, o que os meistres, que não conseguiram nada fazer a não ser lhe dar leite da papoula, disseram ser algo nunca antes visto. (O Mundo de Gelo e Fogo, Os Reis Targaryen: Aegon IV);

  • Jaehaerys II, pai de Aerys II e avô da atual Daenerys, era “amigável, esperto, doentio”, segundo o próprio George R. R. Martin. Sofreu a vida inteira com enfermidades, e reinou por apenas três ano, falecendo após uma curta doença, aos 37 anos, após reclamar de uma repentina falta de ar.  (O Mundo de Gelo e Fogo, Os Reis Targaryen: Jaehaerys II; So Spake Martin: Targaryen Kings. Westeros. 1 de novembro de 2005).

O caso de Viserys II é especialmente notável: ainda que não haja certezas quanto à causa mortis, a própria versão oficial sustentada à época de seu falecimento prova que a possibilidade de um Targaryen doente não era vista como absurda nem incomum, mas natural. Na hipótese de a tradição dentro do universo sustentar que o sangue do dragão não ficaria doente, a doença sequer seria suscitada ou acreditada como causa da morte de Viserys.

É seguro dizer, portanto, que a fala de Daenerys em Dança não corresponde à realidade. O fato de ela não ter contraído o fluxo sangrento quando cuidou dos contaminados e esteve próxima dos mortos pela doença às portas de Meereen não pode tampouco ser utilizado como argumento, afinal outras pessoas, não-Targaryens, também participaram da tarefa e tampouco foram acometidas pela enfermidade. Quando foi tratar dos astapori doentes, Daenerys na verdade corria um risco inconsciente, pois acreditava estar imune à égua descorada por seu “sangue de dragão”, o que não ocorria. No final de A Dança dos Dragões, ela mesma manifesta sintomas de alguma doença, apresentando diarreia, sangramentos e fortes dores na barriga.

É importante notar que ainda que não houvesse as diversas evidências apresentadas, a fonte de informação para várias coisas em que Daenerys acredita, principalmente no que concerne à história dos Targaryen, é seu próprio irmão Viserys, que não era exatamente um especialista nas tradições de sua própria Casa. Tendo vivido praticamente a vida toda fora de Westeros em exílio, a crediblidade das afirmações de Viserys é altamente duvidosa, e ainda mais por sua insanidade. A ideia de que “o sangue do dragão não fica doente” é aparentemente mais uma manifestação de megalomania de Viserys transmitida para Daenerys, que, não tendo acesso a outra fonte de informações, a tomou como verdade com naturalidade.

Seriam os Targaryen imunes ao fogo?

Outra questão polêmica e confusa é aquela referente à relação dos Targaryen com o fogo. É também uma crença comum entre muitos leitores que os membros do sangue do dragão sejam imunes a ele, principalmente por episódios envolvendo Daenerys “Filha da Tormenta”. Essa ideia é também disseminada em discussões sobre teorias, sendo levantada para rejeitar a hipótese de Jon Snow ser filho de Rhaegar Targaryen sob o argumento de que se o rapaz fosse realmente do sangue do dragão, sua mão não queimaria com a lamparina no episódio envolvendo o ataque de Othor, transformado em criatura, a Jeor Mormont, em A Guerra dos Tronos. A hipótese da imunidade Targaryen ao fogo, no entanto, é infundada, como se verá a seguir.

"Daenerys the Unburnt", por Michael Kormack. O evento do nascimento dos dragões foi um "milagre", segundo George R. R. Martin.
“Daenerys the Unburnt”, por Michael Kormack. O evento do nascimento dos dragões foi um “milagre”, segundo George R. R. Martin.

O primeiro dos episódios que dão a ideia de imunidade ao fogo ocorre no final de A Guerra dos Tronos: é nada menos que a pira funeral de Drogo que queimou também viva Mirri Maz Duur e culminou no nascimento de Drogon, Viserion e Rhaegal. Daenerys andou fogueira adentro e após o ritual mágico que ela inconscientemente (ou intuitivamente) realizou, saiu sem nenhuma queimadura, mas nua e careca. Neste episódio é inegável que Daenerys esteve em contato direto com bastante fogo e não foi consumida por ele como seria normal. A singularidade do evento lhe rendeu o epíteto “A Não-Queimada”.

Outro momento em que Daenerys não teria se queimado em contato direto com o fogo ocorre em A Dança dos Dragões, quando Drogon retorna a Meereen atraído pela confusão na Arena de Daznak e Daenerys tenta controlá-lo e domá-lo. Interpreta-se nessa passagem que Drogon teria cuspido fogo diretamente em Daenerys e ela mais uma vez não teria queimado. Vejamos a passagem:

– Não – gritou, agitando o chicote com toda a força que tinha. O dragão lançou a cabeça para trás. – Não – ela gritou novamente. – NÃO! – As farpas arranharam o focinho do animal. Drogon se ergueu, suas asas cobrindo-a com sombras. Dany bateu com o chicote na barriga dele, uma vez após outra, até que seu braço começou a doer. O longo pescoço de serpente do dragão parecia um arco. Com um shiiiiiiiissssss, cuspiu fogo negro sobre ela. Dany correu embaixo das chamas, agitando o chicote e gritando. Não, não, não. Para BAIXO!
(A Dança dos Dragões, cap. 52, Daenerys IX)

Aqui temos interpretações diversas sobre o que realmente ocorreu. Há a interpretação de que o fogo de Drogon não atingiu Daenerys em cheio, passando acima dela, e a de que de fato as chamas atingiram mas novamente queimaram apenas seu cabelo. É disto o que a própria Daenerys diz se recordar, apesar de admitir que as lembranças daquele momento são confusas: “O fogo queimou meu cabelo, mas, fora isso, não tocou em mim. Acontecera o mesmo na Arena de Daznak. Disso ela se lembrava, embora muito do que se seguiu estivesse obscuro.” (A Dança dos Dragões, cap. 71, Daenerys X).

Neste capítulo, percebemos também que Daenerys está de fato careca e tem as mãos queimadas e com bolhas: “Sua pele estava rosada e macia, e um claro líquido leitoso vazava das rachaduras nas palmas, mas as queimaduras estavam sarando.” (A Dança dos Dragões, cap. 71, Daenerys X).

O que parece confuso, é que se as chamas de Drogon tiverem de fato atingido Daenerys em cheio e ela for realmente imune a fogo, não haveria necessidade de ela correr embaixo das chamas: poderia simplesmente correr em meio a elas. Barristan Selmy, no capítulo 70, A Mão da Rainha, se lembra de que o cabelo de Daenerys pegava fogo e que ela mesma estava queimando. Apesar de ser aparentemente mais uma momento em que Daenerys não se queimou quando em contato com o fogo, este é um tanto mais confuso e muitos menos certo do que aquele envolvendo o nascimento dos dragões, que é incontestável.

Episódios envolvendo Daenerys à parte, George. R. R. Martin já se pronunciou algumas vezes a respeito de uma possível imunidade dos Targaryen como um todo ao fogo, e em todas elas declarou que ela não existe. A primeira dessas declarações é encontrada em uma resposta de Martin a um e-mail de fã com perguntas sobre Egg e os Targaryen, datado de novembro de 1998, e registrada no banco de dados de entrevistas e declarações de George, os chamados SSM (So Spake Martin), do Westeros.org :

(…)
Por último, alguns fãs estão lendo demais naquela cena de JOGO DOS TRONOS em que os dragões nascem – quer dizer, nunca foi o caso de que todos os Targaryens são imunes ao fogo em todos os momentos.
(So Spake Martin: Egg and the Targaryens. Westeros. 5 de novembro de 1998.)

Nesta resposta as coisas não ficaram muito claras, mas já é possível interpretar que o evento do nascimento dos dragões foi algo único.

A segunda declaração aconteceu em 1999, em um bate-papo online para o já extinto site Event Horizon (traduzida pelo site no ano passado). Na tradução abaixo, “Granny” é a usuária que fez a pergunta e as maiúsculas estão na resposta original de George:

Granny: Os Targaryens se tornam imunes ao fogo quando “se ligam” a seus dragões?
George_RR_Martin: Granny, obrigado por perguntar isso. Me dá uma oportunidade de esclarecer um equívoco comum. TARGARYENS NÃO SÃO IMUNES AO FOGO! O nascimento dos dragões de Dany foi único, mágico, maravilhoso, um milagre. Ela é chamada A Não-Queimada porque andou pelas chamas e viveu. Mas o irmão dela com certeza não era imune àquele ouro derretido.
(Transcript of Chat with George R. R. Martin. Event Horizon. 18 de março de 1999.)

Afirmativa mais expressa do que essa não será fácil de conseguir. Nela, George mais uma vez nota que alguns leitores fazem uma interpretação extensiva do episódio do nascimento dos dragões e faz questão de esclarecer a inexistência de imunidade ao fogo dos Targaryen.

Em 2003 GRRM repetiu praticamente as mesmas coisas em uma entrevista para Robert Shaw:

Shaw: Todos os Targaryens são imunes ao fogo?
Martin: Não, nenhum Targaryen é imune ao fogo. A coisa com Dany e os dragões, aquilo foi simplesmente um evento mágico de uma vez só, muito especial e único. Os Targaryens podem tolerar um pouco mais de calor do que a maioria das pessoas comuns, eles realmente gostam de banhos quentes e coisas desse tipo, mas isso não significa eles são totalmente imunes ao fogo, não. Dragões, por outro lado, são praticamente imunes ao fogo.
(“Interview with the Dragon”. © Robert Shaw. 2003.)

Nesta resposta George entra em detalhes interessantes, que já verificávamos nos livros do cânone. A maior tolerância ao calor e aos banhos quentes já havia sido demonstrada tanto em capítulos de Daenerys em Jogo dos Tronos quanto notada por Duncan a respeito de Egg em A Espada Juramentada. É importante ressaltar que a cena em que Daenerys pega com as mãos nuas os ovos de dragão que estavam no fogo e não se queima e a cena na Casa dos Imortais em que o o fogo de seus dragões passa por ela sem afetá-la são exclusiva da série de TV.

Mais uma vez, The Princess and the Queen nos traz mais alguns esclarecimentos para a questão. A Dança dos Dragões incluiu vários momentos em que membros do sangue do dragão foram atingidos e afetados pelo fogo, tendo alguns deles até mesmo morrido em decorrência dele. Cita-se:

  • Rhaenys, a Rainha Que Nunca Foi, que montava o dragão Meleys e morreu em combate contra Aemond Targaryen em Vhagar e Aegon II em Sunfyre na Batalha de Pouso de Gralhas. Os três dragões caíram em combate, mas apenas Meleys pereceu, e um corpo foi encontrado do lado de sua carcaça tão carbonizado que era impossível reconhecer suas feições, mas ao que tudo indica se tratava de Rhaenys.
  • Aegon II sofreu graves queimaduras durante a mesma batalha. Apesar de não ter falecido, sua armadura derreteu em seu braço esquerdo, e ele demorou um ano para se recuperar, tendo que ficar sob constante efeito de leite da papoula.
  • Baela, filha do Príncipe Daemon, montava o dragão Moondancer e combateu Aegon II e Sunfyre em Pedra do Dragão após a recuperação destes. Durante o duelo, os dois dragões caíram ao chão, e Baela foi encontrada queimada e machucada, mas viva, após a queda.
  • Rhaenyra também foi vítima do fogo de dragão. Ao se recolher para Pedra do Dragão, ignorante do fato de que Aegon II já estava na ilha e havia convencido a guarnição e a população a mudarem de lado, ela foi emboscada, capturada e dada a Sunfyre para que este a devorasse. A princípio o dragão não mostrou interesse em Rhaenyra, mas após um corte em seu peito e a exposição de seu sangue, Sunfyre cuspiu fogo nela e a devorou, à vista de seu filho Aegon III.
“Rhaenyra Facing her Death”, por Arthur Bozonnet para O Mundo de Gelo e Fogo. Rhaenyra foi queimada por Sunfyre antes de ser devorada.

A Tragédia de Solarestival é também outra referência. O evento, que segundo os registros se deu por uma tentativa mágica de Aegon V de fazer chocar ovos de dragão, acabou resultando em um incêndio de grandes proporções que acabou vitimando, entre Targaryens, o próprio Aegon e seu filho Duncan, o Príncipe das Libélulas.

O episódio envolvendo Aerion pode também ser novamente citado: “Chamaviva” acreditava ser um dragão em forma humana e morreu ao ingerir fogovivo pensando que a substância iria libertá-lo.

É válido também lembrar que o costume entre os Targaryen era cremar os corpos dos membros falecidos da família, como confirmou George quando revelou que o destino do corpo de Rhaegar: “Rhaegar foi cremado, como é tradicional para os Targaryen falecidos” (Charla con George R. R. Martin. Asshai. 27 de agosto de 2008). Essa prática pôde ser verificada também com Visenya, a filha natimorta de Rhaenyra durante a Dança, e com Aemon, Meistre de Castelo Negro, falecido na costa de Dorne.

A conclusão a que se chega, portanto, baseada nas próprias declarações expressas do autor da obra e em inúmeras passagens do cânone, é que os Targaryen, em regra, não são imunes ao fogo, apesar de serem tolerantes a altas temperaturas. A questão relativa a uma possível imunidade de Daenerys é menos categórica, apesar da própria declaração de Martin dizendo que o evento no Mar Dothraki foi único. É bom esclarecer que GRRM não tem o costume de mentir e desinformar em suas entrevistas e declarações, como alguns podem acreditar ou suspeitar. Sua praxe em relação a perguntas mais capciosas ou cujas respostas podem comprometer ou revelar spoilers e plot points importantes é simplesmente não responder ou dar respostas como “continue lendo” ou outras evasivas. É especialmente notável, portanto, que Martin não só tenha se mostrado satisfeito ao ser perguntado sobre a questão da suposta imunidade ao fogo do “sangue do dragão”,  como também tenha deliberadamente esclarecido a questão mais de uma vez.

Aegon I, em detalhe de ilustração de Amok. As feições valirianas são visíveis.
Aegon I, em detalhe de ilustração de Roman Papsuev para O Mundo de Gelo e Fogo. As feições valirianas clássicas são notáveis: cabelos louro-platinados e olhos púrpura.

Qual é a aparência do sangue do dragão?

E quanto aos aspectos físicos? Todos os Targaryens e seus descendentes, portadores do sangue do dragão, têm a aparência valiriana clássica, com cabelos dourado-platinados e olhos púrpura, índigo ou lilases? A resposta para essa questão definitivamente é não.

Há nos livros inúmeros exemplos de filhos de Targaryens e membros da própria família, frutos de uniões com outras casas e sangues, que não apresentam o fenótipo valiriano. É impossível determinar, porém, a dominância ou recessividade dos genes valirianos, e sequer deve ser a intenção de Martin que seja possível fazer isso. Há casos em que uniões entre Targaryens e “externos” resultaram em aparência valiriana, bem como há casos que resultaram em aparência não-valiriana, e também aparências mistas.

Os três filhos de Rhaenyra, Jacaerys, Lucerys e Joffrey Velaryon, tinham cabelos e olhos castanhos. Ilustração de Douglas Wheatley para O Mundo de Gelo e Fogo.

Dentre os indivíduos do sangue do dragão com aparência não-valiriana, podemos citar primeiramente, em ordem cronológica, os filhos de Rhaenyra: Jacaerys (“Jace”), Lucerys (“Luke”) e Joffrey Velaryon. Segundo a versão oficial, seu pai é Laenor Velaryon, o primeiro marido de sua mãe, mas a aparência dos príncipes parece indicar não ser esse o caso. Tanto Rhaenyra quanto Laenor tinham a aparência valiriana clássica, mas os três príncipes apresentavam cabelos e olhos castanhos. Diante disso, as suspeitas são de que seu verdadeiro pai seria Sor Harwin Strong, guarda pessoal de Rhaenyra, caso em que teriam os príncipes o sangue do dragão apenas por parte de mãe. É importante notar que os três montaram dragões, sendo suas montarias Vermax, Arrax e Tyraxes, respectivamente.

Algumas gerações mais tarde podemos encontrar um dos exemplos mais conhecidos de um Targaryen com aparência não-valiriana: Baelor “Quebralanças”, filho de Daeron I e de Mariah Martell, saiu à mãe e tinha cabelos e olhos negros. Apesar de aclamado pela maioria como nobre e honrado, seu aspecto dornês era por vezes visto com desconfiança por alguns. A aparência foi transmitida também a seu filho Valarr, o Jovem Príncipe, que parecia uma versão menor e mais magra de seu pai, com uma mecha dourado-prateada no cabelo.

Aegor “Açamargo” Rivers, filho de Aegon IV e Barba Bracken, herdou características do pai e da mãe. GRRM diz, em correspondência com Les Dabel para uma adaptação de um excerto de A Espada Juramentada para os quadrinhos, que “já que sua mãe não era uma Targ, ele não tem as cores. Ele tem os olhos púrpura, mas seu cabelo é preto. (So Spake Martin: Concerning the Great Bastards. Westeros. 6 de abril de 2004).

Ainda na mesma época, encontramos Daeron, “o Bêbado”, filho de Maekar. O irmão de quem Egg (Aegon V) era originalmente escudeiro tinha a pele amarelada, cabelo cor de areia e uma barba loura. Sua aparência era tão comum que facilitava que não fosse reconhecido como um Targaryen, de modo que podia se dedicar a sua vida boêmia com mais tranquilidade.

Aegon V e seus filhos, Duncan (esquerda), Jaehaerys II (centro) e Daeron (direita). Ilustração de Karla Ortiz para O Mundo de Gelo e Fogo.

Duncan Targaryen, o famoso Príncipe das Libélulas, filho de Aegon V que pereceu junto com seu pai em Solarestival, também era um exemplo de Targaryen sem as características valirianas. A esposa de Aegon era Betha Blackwood, chamada Betha Negra por seus olhos e cabelos escuros, traços que foram transmitidos também a seu filho, como podemos ver na ilustração de Karla Ortiz em O Mundo de Gelo e Fogo, que retrata Egg e seus filhos.

Em se tratando de Targaryens mais próximos à atualidade da série principal, encontramos Rhaenys, filha de Rhaegar e Elia Martell. Como o Quebralanças antes dela, Rhaenys herdou os traços dorneses da mãe. Martin foi questionado sobre a aparência dos filhos de Rhaegar, e respondeu que “Rhaenys se parecia mais com uma Martell, Aegon mais com um Targaryen (So Spake Martin: A Number of Questions. Westeros. 26 de agosto de 2000).

Por outro lado, como curiosidade, cita-se o caso de Rhaenys, a Rainha que Nunca foi, que tinha a aparência valiriana clássica, mas uma ancestralidade peculiar. Seus pais eram Aemon Targaryen e Jocelyn Baratheon, esta por sua vez filha de Robar Baratheon e Alyssa Velaron. Rhaenys tinha os cabelos prateados valirianos, a despeito de ter ancestrais Baratheon, cuja aparência de cabelos pretos é historicamente dominante (como se verifica em As linhagens e histórias das Grandes Casas dos Sete Reinos, livro escrito por Meistre Maellon e lido, entre outros, por Jon Arryn e Eddard Stark). No caso de Rhaenys, aparentemente, o “gene” valiriano dos Targaryen foi dominante em relação ao Baratheon.

Os casos citados, portanto, confirmam que os Targaryen e seus descendentes se apresentam com as mais diversas aparências resultantes de uniões com outros “sangues”, não havendo regra quanto a dominância ou recessividade da fisionomia valiriana.

Quem pode domar dragões?

A doma de dragões é um tema que também gera relativo interesse. Com um dos três dragões existentes na série principal já praticamente ligado a sua “mãe” Daenerys, o destino dos outros dois e seus possíveis montadores também são motivos de frequentes especulações pelos leitores. Mas como se dá a doma de um dragão?

Mais uma vez, os conhecimentos de Daenerys vem à tona, mas sua credibilidade é questionada por outras informações encontradas dentro do próprio cânone. Após o episódio da Arena de Daznak e o voo em Drogon, Daenerys percebe que não consegue controlar efetivamente o dragão e submetê-lo a sua vontade, e reflete:

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“Daenerys Astride Drogon”, por Jake Murray. © 2013 Fantasy Flight Games.

Os senhores de dragões da antiga Valíria controlavam suas montarias com feitiços de ligação e cornos mágicos. Daenerys fizera com uma palavra e um chicote. Montada nas costas do dragão, frequentemente se sentia como se estivesse aprendendo a montar novamente. Quando chicoteava sua égua prateada no flanco direito, a égua ia para a esquerda, por causa do instinto primitivo dos cavalos de fugir do perigo. Quando acertava o chicote do lado direito de Drogon, ele desviava para a direita, pois o primeiro instinto do dragão é sempre atacar. Mas, algumas vezes, parecia não fazer diferença onde ela o acertava; algumas vezes ele ia para onde queria e a levava consigo. Nem chicote nem palavras podiam virar Drogon, se ele não quisesse ser virado. O chicote mais irritava o animal do que o feria, ela viera a perceber; suas escamas haviam ficado mais duras do que um chifre.
(A Dança dos Dragões, cap. 71, Daenerys X)

Pelos pensamentos de Daenerys, seu feito de ter montado Drogon se utilizando apenas de um chicote e de sua voz seria, no mínimo, notável. O que a história westerosi mostra, no entanto, é que essa foi uma prática não tão incomum assim: com efeito, ela reproduziu inconscientemente o método comum de seus ancestrais.

Os dragões, pelo conhecimento dos próprios valirianos, surgiram nas Quatorze Chamas, a cadeia vulcânica que se estendia pela Península Valiriana, e em um dado momento da história se espalharam por todo o mundo conhecido. Cinco mil anos antes do início das Crônicas, os valirianos, anteriormente pastores de ovelhas, conseguiram criar dragões e dobrá-los a sua vontade.

Aparentemente, uma parte dos conhecimentos de Daenerys não é desinformação, porém. Não é coincidência que ela mencione os berrantes e a magia dos senhores de dragões valirianos e que um artefato similar apareça na história em posse de Euron Greyjoy, supostamente adquirido nas ruínas da Cidade Franca. Não me delongarei aqui em hipóteses sobre o berrante (sobre o assunto, há um texto texto no Fórum Ice and Fire), mas suspeito que ele seja real, e que a magia deles na Antiga Valíria estivesse mais relacionada com a ligação mágica entre um sangue humano e um sangue de certos dragões, sendo os artefatos os vetores dessa magia que possivelmente envolveria também sacrifício humano, do que efetivamente com a doma de um determinado dragão por um determinado humano. O que se sabe, de fato, é que nenhum dos dragões Targaryen em Westeros foi domado com a utilização de berrantes ou magia.

O conhecimento comum em Westeros, dentro do próprio cânone, é o de que é necessário ter o sangue do dragão para que alguém se ligue a um dragão e o dome. Às crianças Targaryen, quando ainda pequenas, eram dados ovos de dragão para que desde cedo estabelecessem um vínculo com as criaturas. Dessa forma, quando eclodiam os ovos, os jovens Targaryen já entravam em contato com os também jovens dragões, o que aparentemente facilitava a criação da ligação. O vínculo ocorre individualmente entre um montador e um dragão, e é vitalício. Enquanto o humano vive, o dragão não aceita mais nenhum montador, mas depois de seu falecimento pode se ligar a outra pessoa. Da mesma forma, não há relatos de alguém que se tenha vinculado a mais de um dragão.

Durante a Dança dos Dragões, um episódio revela com um pouco mais de detalhes o processo de doma. O Príncipe Jacaerys Velaryon percebeu que sua facção – os Negros – tinha dragões em abundância, mas lhes faltava quem os montasse. Os Negros estavam baseados em Pedra do Dragão, e a região contava com dragões cujos montadores haviam falecido ou que nunca haviam sido montados e viviam como selvagens. Jacaerys, então, ofereceu títulos, riquezas e terras para as “sementes” que conseguissem domar qualquer desses dragões. “Sementes de dragão” era o termo usado para designar os bastardos não-reconhecidos de Targaryens da região de Pedra do Dragão, normalmente nascidos do direito à primeira noite, e seus descendentes.

Muitos candidatos apareceram para tentar domar os dragões selvagens ou “sem dono” e alguns foram bem sucedidos: Hugh Martelo, Ulf o Branco, Addam de Hull e a menina Nettles. Hugh era o filho de um ferreiro e conseguiu se ligar a Vermithor, dragão que havia sido montado por Jaehaerys I e que já havia queimado Sor Gormon Massey (que não era uma semente de dragão) quando este tentou domá-lo. Ulf se ligou a Silverwing, dragão da rainha Alysanne. Addam de Hull, posteriormente legitimado como Addam Velaryon, conseguiu domar Seasmoke, dragão do falecido Laenor Velaryon. Nettles conseguiu montar Sheepstealer.

O caso de Nettles e Sheepstealer é um dos mais emblemáticos e que melhor mostra o processo de doma. Sheepstealer (“ladrão de ovelhas”, no inglês) era um dos três dragões selvagens da ilha, e matou mais pretendentes a montadores do que os outros dois juntos. Alyn de Hull, irmão de Addam, tentou também domar o dragão mas foi mal sucedido, sendo por ele rejeitado e queimado, apesar de ter sobrevivido. Nettles, porém, uma pequena menina de dezesseis anos, de pele morena, olhos castanhos e cabelos pretos, conseguiu se ligar a Sheepstealer alimentando o dragão com uma ovelha todas as manhãs.

Hugh, Ulf e Addam, os outros sementes que conseguiram domar dragões durante a Dança, ao contrário de Nettles, tinham a aparência valiriana clássica, e eram indubitavelmente sementes de dragão. A falta de traços valirianos em Nettles, porém, suscitou dúvidas quanto à veracidade da “regra de ouro”, segundo a qual somente os do sangue do dragão poderiam domar dragões. Nettles poderia não ser uma semente de dragão e ser justamente a exceção que desprovaria a suposta regra.

O entendimento vigente dentro do próprio universo, tido como verdadeiro pelos Targaryen e pelos meistres, é de fato o de que só os do sangue do dragão podem domar, como se verifica em O Mundo de Gelo e Fogo, em que Yandel diz que Sheepstealer foi domado por uma “semente”. Elio García, co-autor do livro foi perguntado sobre essa questão e disse o seguinte:

Meistre Yandel escreve baseado no registro histórico (… na maior parte …), mas esse registro é imperfeito e muitas vezes uma questão de conjectura. Nesse caso específico, Yandel e suas fontes se submetem à ideia de que se você consegue domar, você deve ter sangue Targaryen. É, claro, raciocínio circular de certa maneira, mas há evidência circunstancial (o fato de que ninguém de que se tenha absoluta certeza que não tem nenhum sangue Targaryen jamais conseguiu domar um dragão Targaryen, pelo menos até onde o registro histórico alcança).
(Reddit AMA w/ Elio & Linda of Westeros.org. /r/asoiaf. 17 de março de 2015.)

A única suposta evidência que indicaria Nettles como uma “semente” seria o próprio fato de ter domado um dragão, mas esse poderia ser um caso de falácia de raciocínio circular: o argumento é justamente o que se está tentando provar, não havendo evidência diferente da própria conclusão. É claro que tampouco é impossível provar que Nettles não tinha sangue Targaryen algum, o que significa que a questão sobre seu status de semente ou não nunca poderá ser respondida com absoluta certeza a não ser por declaração expressa de Martin. A situação poderia ser um red herring por parte de GRRM, ou uma forma de inserir um precedente para a eventualidade de alguém que aparentemente não seja do sangue do dragão montar algum dragão na série principal.

A hipótese de que somente pessoas com sangue valiriano podem se ligar aos dragões é fortalecida pelo fato de que os dragões de Daenerys, particularmente Viserion, têm afinidade com Ben “Mulato” Plumm. O mercenário seria descendente de Viserys Plumm e teria, portanto, sangue Targaryen: Viserys era filho de Elaena Targaryen e Ossifer Plumm, mas correm rumores de que na verdade seu pai seria Aegon IV, pois Ossifer morreu na noite de núpcias. Isso significaria que ele seria Targaryen pelos dois lados, e esse sangue teria sido transmitido até o mercenário.

A própria prática do casamento incestuoso, comum entre os Targaryen e herdada das tradições de Valíria, pode também ser um indicativo das propriedades únicas do sangue do dragão para domar as criaturas: a ideia seria que a capacidade de montar dragões não se espalhasse, o que, se acontecesse, seria prejudicial à manutenção dos senhores de dragões no poder.

É importante ressaltar, também, o que George R. R. Martin escreve na introdução de O Cavaleiro dos Sete Reinos, a edição da Leya que reúne os três contos já publicados de Dunk & Egg:

Os senhores de Valíria governavam a maior parte do mundo conhecido; eram feiticeiros, grandes em sabedoria e, sozinhos entre todas as raças humanas, tinham aprendido a criar dragões e a dobrá-los a sua vontade.
(O Cavaleiro dos Sete Reinos, Introdução)

Diante dessa fala de GRRM, em que ele expressamente diz que os valirianos foram os únicos a conseguirem domar os dragões, e do conhecimento geral que o cânone apresenta, a posição mais segura é mesmo assumir que somente indivíduos que tenham o sangue do dragão possam domar dragões.

Sobre a frequentemente suscitada hipótese de que algum troca-peles poderoso possa “wargar” um dragão, George também já foi foi questionado recentemente a respeito:

Pergunta: O que você pode nos dizer sobre um montador de dragões warg?
Resposta: Não há histórico/precedente para alguém wargando um dragão. Há uma rica história sobre o vínculo mítico entre dragão e montador. Houve casos de dragões respondendo a seus montadores mesmo a uma grande distância (hmm) o que mostra que é um vínculo verdadeiro e muito forte. Aprenderemos mais sobre isso. Continue lendo (ouvimos “continue escrevendo” do fundo da sala).
(Off the Dial, George R.R. Martin Q&A. Stacey Simms. 4 de junho de 2014.)

Percebe-se, assim, que o vínculo entre dragão e montador é realmente forte, mas, pelo que indica George, diferente da ligação entre um troca-peles e seu animal. Com efeito, a força desse vínculo pode ser verificada em alguns episódios durante a Dança. Após a Batalha de Pouso de Gralhas, em que tanto Aegon II quanto Sunfyre ficaram feridos, Aegon se recolheu em Porto Real para se recuperar, enquanto que o dragão foi deixado para trás no próprio local de batalha, onde se alimentou de carcaças e gado. Posteriormente, o dragão também se recuperou e saiu do local quando este foi reconquistado pelos Negros. Pedra do Dragão foi o destino de Sunfyre, e há duas versões para os motivo de seu retorno: a primeira sustenta que seria por ser seu local de nascimento, e a segunda que, seu montador, Aegon II, estava escondido na ilha após a queda de Porto Real para os Negros.

A força do vínculo pode também ser notada entre o Príncipe Daeron e e seu dragão Tessarion. Após a morte do príncipe, que representava os Verdes, durante a Segunda Batalha de Tumbleton, o dragão continuou atacando os dragões dos Negros durante a batalha, especialmente Vermithor, dragão de Hugh Martelo, com quem Daeron tinha adquirido especial inimizade. Esse fato levou Arquimeistre Gyldayn a especular em seu relato sobre a Dança que o dragão compartilhe dos sentimentos de seu montador, e que o vínculo possa se estender até mesmo além da morte.

"The Deaths of Prince Lucerys and his Dragon", por Chase Stone para O Mundo de Gelo e Fogo. A ilustração retrata o duelo entre Lucerys em Arrax e Aemond em Vhagar, ambos utilizando selas para montar seus dragões.
“The Deaths of Prince Lucerys and his Dragon”, por Chase Stone para O Mundo de Gelo e Fogo. A ilustração retrata o duelo entre Lucerys em Arrax e Aemond em Vhagar, ambos utilizando selas para montar seus dragões.

O que se percebe pelos contos e por Mundo, é que após a doma e o estabelecimento do vínculo entre o domador e o dragão, este atende a comandos de voz e se dobra mais facilmente à vontade do humano se estiver alimentado e com a barriga cheia. Isso é expressamente dito em The Princess and the Queen, e comprovado pelo método de doma de Nettles. O costume entre os montadores westerosi também incluía a utilização de um chicote para domar as criaturas e de selas para montar.

Nota-se, portanto, que Daenerys, aparentemente, já cumpriu a fase de estabelecer seu vínculo com Drogon, e agora intuitivamente segue os passos dos domadores de dragões antigos para aparender a montá-lo e a controlá-lo efetivamente. Sua ligação, no entanto, só pode se estender a um de seus três dragões, o que significa que os destinos de Viserion e Rhaegal ainda estão em aberto. Pela regra de ouro, apenas uma pessoa do sangue do dragão poderá domá-los, mas o berrante valiriano pode também desempenhar um papel que altere esse cenário.

Conclusões: mitos ou realidade?

Depois de todo o exposto, é impossível não concluir que o sangue do dragão tem realmente suas peculiaridades e características únicas, e algumas confusões quanto às crenças comuns sobre suas propriedades podem ter sido elucidadas.

A existência da “mácula”, a propensão à loucura, pode realmente existir, dado o número notável de Targaryens loucos ao longo da história, mas não se pode dizer que a probabilidade seja assim tão alta. A suposta imunidade a doenças é definitivamente descartada, em razão de inúmeros exemplos ao longo da história que mostram Targaryens acometidos por enfermidades, a despeito do que acreditam Viserys e Daenerys.

Segundo as palavras de George R. R. Martin e outros exemplos históricos, não existe tampouco imunidade ao fogo, apesar de os Targaryen terem de fato uma certa tolerância a altas temperaturas. Descendentes de membros do sangue do dragão podem ter outras aparências que não a valiriana clássica (cabelos dourado-prateados e olhos em tons de púrpura), não sendo possível determinar categoricamente dominância ou recessividade de seus “genes”. E finalmente, quanto à doma de dragões, diante das declarações de Martin e de exemplos históricos do universo, a posição mais segura é a de que apenas o sangue do dragão é capaz de domar as criaturas.