Que George R. R. Martin é um geek histórico é um fato amplamente sabido. O autor das Crônicas de Gelo e Fogo está desde a década de 1950 envolvido, seja na condição de consumidor ou de autor, com histórias em quadrinhos, literatura e programas de TV, de fantasia e ficção científica, além de ser um ávido leitor de História e fã de esportes norte-americanos.
Sendo assim, as Crônicas, além da evidente inspiração histórica, estão também permeadas de influências de várias dessas águas bebidas por GRRM, sendo algumas delas transformadas em pequenas homenagens ou referências, diretas e indiretas, aos autores e obras e elementos da “vida real” dos quais ele é fã. Este artigo, baseado em listas do Westeros.org e da A Song of Ice and Fire Wiki, elenca as homenagens e easter eggs que podem ser encontrados em Gelo e Fogo, incluindo também as auto-referências de George a obras próprias.
A Casa Vance como um todo é uma homenagem a Jack Vance, o autor de ficção científica favorito de Martin. É dito em O Festim dos Corvos que Norbert Vance, o senhor do ramo de Atranta da casa, ficou cego, o que ocorreu também com Jack na década de 2000. Os filhos de Lorde Norbert também estão relacionados com Jack: Ronald, o Mau, faz alusão ao romance Bad Ronald; Hugo faz referências aos Prêmios Hugo vencidos pelo autor; Ellery lembra Ellery Queen, um pseudônimo adotado por vários autores, Vance incluso; e Kirth alude a Kirth Gersen, o protagonista da série The Demon Princes. Os filhos do senhor do ramo Vance de Pouso do Viajante, Lorde Karyl, também são referências: Emphyria remete a Emphyrio, Rhialta se refere a Rhialto the Marvellous, um dos livros de A Agonia da Terra, e Liane a Liane the Wayfarer, um outro livro da série. O próprio nome do castelo, que no original é Wayfarer’s Rest, é uma referência também a Liane, e o brasão desse ramo, que inclui olhos dentro de um anel, também se relacionam com a mesma história. O brasão do ramo de Atranta, que tem uma torre, homenageia The Last Castle, e os dragões nos dois brasões remetem a The Dragon Masters.
Robert Jordan, autor da série A Roda do Tempo, falecido em 2007, também recebeu homenagens de George nas Crônicas de Gelo e Fogo, as quais já abordamos anteriormente em um Game of Thrones BR Recomenda. Jordan, cujo nome original era James Oliver Rigney, Jr., já era um autor consolidado no meio da fantasia quando A Game of Thrones foi lançado em 1996, e contribuiu com o aumento na popularidade do livro ao escrever um para ele um prefácio. Jordan também recebeu uma família como homenagem na obra, a Casa Jordayne. O nome de Lorde Jordayne é Trebor, que ao contrário é “Robert”, e o castelo da casa é o Tor, que é também o nome da famosa editora de fantasia que publicou os livros de Jordan durante anos. Robert recebeu outra homenagem de GRRM na série na figura do Arquimeistre Rigney, que acreditava que “a história é uma roda, porque a natureza do homem é fundamentalmente imutável”, em clara referência à obra prima de Jordan. Rohanne Webber, importante personagem de A Espada Juramentada, tem como traço puxar sua trança quando em momentos de estresse, uma característica compartilhada com Nynaeve al’Meara da Roda do Tempo.
Tad Williams é um dos escritores que mais influenciou As Crônicas de Gelo e Fogo. Sua tetralogia Memory, Sorrow, and Thorn possui elementos que claramente serviram de inspiração para a construção do universo da série de George, que começou a ser escrita três anos depois da publicação do primeiro livro da de Tad. A presença de criaturas inumanas no “Norte” que ameaçam a humanidade depois de tidas como extintas há muitos anos, a profecia de um inverno inclemente que coincide com a invasão dessas criaturas, sacrifícios em nome de um Deus Vermelho, uma menina chamada Marya que se disfarça de menino enquanto foge, uma estrela com cauda no céu que parece significar “mudança”; são esses apenas alguns dos elementos que George aparentemente tomou “emprestados” da obra de Tad. O próprio GRRM já admitiu que Memory, Sorrow, and Thorn realmente foi uma grande inspiração para ele iniciar sua própria série, quando entrevistado por Williams:
A série de fantasia de Tad, The Dragonbone Chair e o resto de sua famosa trilogia de quatro livros foi uma das coisas que me inspirou a escrever minha própria trilogia de sete livros. Eu li Tad e fiquei impressionado com ele, mas os imitadores que se seguiram – bem, a fantasia tem uma má reputação por ser muito estereotipada e ritual. E eu li The Dragonbone Chair e disse, “Meu deus, eles podem fazer alguma coisa com essa forma,” e foi Tad quem fez. E é uma das minhas séries de fantasia favoritas.
É claro que tão grande influência resultou também em homenagem: a Casa Willum tem entre seus membros os irmãos conflituosos Elyas e Josua, em clara referência a Memory, Sorrow, and Thorn, em que um Príncipe Josua ascende ao trono e é usurpado por seu irmão Elyas, o que causa uma guerra civil. O brasão da casa é composto de um dragão esquelético e três espadas. Estas são as que dão nome à tetralogia de Williams (Memory, Sorrow e Thorn), e o dragão faz referência ao nome do primeiro livro, The Dragonbone Chair.
Seguindo a tradição de homenagens através de casas nobres, Thomas B. Costain, um famoso escritor de romances históricos e um dos favoritos de Martin, foi homenageado com a Casa Costayne. O brasão de família é inclui um cálice prateado e uma rosa negra, referências a The Silver Chalice e The Black Rose, obras de Costain que foram adaptadas por Hollywood para o cinema.
H.P. Lovecraft, escritor americano que revolucionou a literatura de terror com elementos de fantasia e ficção científica, é referenciado em Gelo e Fogo na cultura e em personagens dos homens de ferro. O Deus Afogado e os dizeres a ele associados (“O que está morto não pode morrer, mas se ergue novamente, mais duro e mais forte”) se relacionam com a obra mais famosa de Lovecraft, O Chamado de Cthulhu, que inclui uma passagem bastante parecida (“That is not dead which can eternal lie/And with strange aeons even death may die”). Dagon Greyjoy, um membro histórico da casa, também tem seu nome associado a uma deidade nos Mitos de Cthulhu. A lendária cidade essosi de Carcosa também remete a Lovecraft, que por sua vez se inspirou no conto An Inhabitant of Carcosa, escrito por Ambrose Bierce em 1886, e em The King in Yellow, de 1895, por Robert W. Chambers. A cidade é mencionada e se torna um elemento do roteiro também em True Detective. George já escreveu também como seria seu versão para um confronto hipotético entre Jaime Lannister e Cthulhu, pelo Suvudu Cage Match (um torneio virtual entre personagens de várias histórias de fantasia), que pode ser lido aqui (em inglês).
A Casa Peake é uma referência à obra de Mervyn Peake, escritor inglês e autor da influente trilogia Gormenghast. Lorde Titus Peake alude a Titus Groan, o protagonista da citada série, assim como Lorde Gorman Peake. A queimadura no rosto de um personagem que lhe causa pirofobia, no caso de Gelo e Fogo, Sandor Clegane, é um traço compartilhado com um vilão de Gormenghast, Steerpike. Na mesma linha, a Casa Deddings e seu senhor e sua senhora, são homenagens de George a David Eddings e sua esposa Leigh, escritores de fantasia.
Phyllis Eisenstein, grande e antiga amiga de Martin e também autora de ficção científica e fantasia, foi quem convenceu George a incluir dragões e um pouco de magia em sua série, que originalmente conteria menos desses elementos, como o próprio autor explica no prefácio de A Tormenta de Espadas, livro dedicado a ela. A obra de Phyllis foi homenageada nas Crônicas no personagem Alaric de Eysen, um bardo que tocaria no Casamento Púrpura. O nome é o mesmo do heroico menestrel e personagem principal dos romances de Eisenstein Born to Exile e In the Red Lord’s Reach.
Outro amigo escritor de GRRM que foi lembrado na série é Roger Zelazny, que entre inúmeras outras obras, participou do universo de Wild Cards. A Casa Rogers e seu brasão homenageiam Roger e seu livro Nine Princes in Amber, enquanto que o título de R’hllor “Senhor da Luz” faz referência a Lord of Light, um romance de ficção científica de Zelazny. O Labirinto do Criador de Padrões localizado em Braavos remete também ao “Padrão” no universo das Cronichles of Amber de Roger.
Em A Fúria dos Reis, durante o mêlée em Ponteamarga vencido por Brienne de Tarth, entre os derrotados pela guerreira estão dois homens que haviam zombado dela como falsos pretendentes: Harry Sawyer e Robin Potter. Harry foi derrubado do cavalo, enquanto Brienne se lembra de ter deixado Potter com uma feia cicatriz na cabeça. É claro que os nomes imediatamente remetem ao Harry Potter de J.K. Rowling, cujo traço mais característico é uma cicatriz na testa.
George é também um notório fã de futebol americano (dentre outros esportes), torcedor dos dois times de Nova York, os Giants e os Jets. Quem costuma ler o Not A Blog, o blog pessoal do autor, está acostumado a encontrar postagens (às vezes furiosas) com comentários sobre o desempenho das equipes, e o fanatismo de Martin chegou também às Crônicas, com A Dança dos Dragões permeado de referências a atletas e times.
O cavaleiro Sor Patrek da Montanha do Rei, que segue Stannis Baratheon em sua até o Norte, é uma homenagem de George a seu amigo Patrick St. Denis, autor do blog Pat’s Fantasy Hotlist. George apostava com Patrick todos os anos se Giants ou Dallas Cowboys se daria melhor na NFL, e inseriu o personagem ao perder a aposta em uma temporada. St. Denis é natural de Montreal, daí a referência à Montanha do Rei no nome do personagem, e torce pelos Cowboys, time cujo escudo se traduziu no brasão pessoal do Patrek do livro: uma estrela azul sobre um campo cinza.
St. Denis pediu a George que seu personagem sofresse uma morte horrível, e é claro que o autor aproveitou para também cutucar Patrick, afinal Sor Patrek foi morto pelo gigante Wun Weg Wun Dar Wun, popularmente conhecido como Wun Wun. O próprio gigante é referência a Phil Simms, lendário quarterback dos Giants que usava a camisa de número 11 (“one, one”, daí “Wun Wun”), aposentada pelo time em 1995.
Quase tão notável quanto o fanatismo de George pelos Giants é sua antipatia pelos New England Patriots, rivais do time de Nova York, a quem já chamou de “os Lannisters da NFL”. Para o azar de George, os Patriots vêm tendo uma fase especialmente bem sucedida desde os anos 2000, sob o comando do técnico Bill Belichick (a quem George apelidou de “Evil Little Bill”). O carinho de GRRM por Belichick é tamanho que foi referenciado no triarca Belicho, um “famoso patriota volanteno cuja sucessão ininterrupta de conquistas e triunfos terminou abruptamente quando ele foi devorado por gigantes”. Essa história, que Tyrion lê no livro A Vida do Triarca Belicho, alude à temporada 2007 dos Patriots, em que o time ficou invicto durante todo o ano mas perdeu para os Giants de Martin no Super Bowl XLII.
É possível que Clayton Suggs, mais um dos cavaleiros de Stannis, seja também uma referência ao futebol americano. Nesse caso, aos jogadores Terrell Suggs e Mark Clayton, dos Baltimore Ravens. Por acaso, os Ravens são o único time para quem os Giants de George perderam no Super Bowl e, curiosamente, Clayton Suggs anda na companhia de Sor Godry, o “Matador de Gigantes”.
Martin também fez referência nos livros a uma série de outros romances, contos e histórias escritos por ele mesmo antes das Crônicas de Gelo e Fogo, além de a alguns outros hobbies e obras das quais é fã.
Um dos deuses mencionados na Casa do Preto e Branco é Bakkalon, a Criança Pálida. Uma divindidade com o mesmo nome é encontrada no conto de ficção científica And Seven Times Never Kill A Man!, escrito por Martin e publicado em 1975. O navio de Lorde Baelor Blacktyde é chamado Nightflyer (Voador Noturno, na tradução), que remete a Nightflyers, título de uma novela de autoria de George datada de 1980. O Rio Febre (Fever River, no original), localizado no Norte, faz alusão a Fevre Dream (Sonho Febril), o conto de vampiros que foi o maior sucesso de GRRM antes das Crônicas de Gelo e Fogo. As menções a contos da Velha Ama sobre um dragão de gelo parecem indicar que o conto infantil O Dragão de Gelo, publicado originalmente em 1980, foi incorporado por Martin em sua série como um conto lendário da tradição infantil westerosi.
George também é conhecido por ser fã de histórias em quadrinhos, e isso pode ser notado em A Fúria dos Reis, em que entre vários estandartes de casas são citados alguns com “um capuz negro, um besouro azul e uma flecha verde”. Eles fazem referência aos super heróis Black Hood, da Archie Comics, e aos da DC Comics Besouro Azul e Arqueiro Verde. Os Três Patetas também foram introduzidos na série, na forma dos soldados da Casa Bracken chamados Lharys, Kurleket e e Mohor (os nomes dos patetas são Larry, Curly e Moe). A Casa Wyl tem em seu brasão uma víbora negra, referência confirmada por George à série de comédia histórica britânica Blackadder, com Rowan Atkinson (“black adder” é o termo em inglês para “víbora negra”).
E você? Conhece e identificou alguma referência ou homenagem de George nas Crônicas de Gelo e Fogo que não foi mencionada aqui?