Traduzimos uma publicação do reddit, feita pelo Adam Feldman, criador do blog The Meereenese Blot. Em uma análise muito interessante, ele aponta como série não tem espaço para fazer crescer o jardim que George R. R. Martin cultiva a cada dia com As Crônicas de Gelo e Fogo. E que ver esse jardim crescer, no final das contas, é a verdadeira alma da história. Segue o relato.

Jon e Sansa reunidos: Sentimentos bons que ainda não tivemos a oportunidade de sentir com os livros.

Sobre jardinagem, a série e os livros

Assistir a sexta temporada de Game of Thrones foi uma experiência estranha para quem acompanha os livros. Em certo sentido, a série acabou revelando muitas das coisas que ainda serão reveladas nos livros. Jon Snow ressuscitou, foi aclamado Rei no Norte, e sua origem foi revelada. Os Boltons foram depostos. Rei Tommen e a maioria dos Tyrells morreram. Dany e Arya voltaram para Westeros. Mas de certa forma, sinto que quase nada foi de fato revelado.

Sim, grande parte destes eventos provavelmente são parte do grande plano que GRRM tem para a história. A origem de Hodor foi algo grandioso, o tipo de reviravolta que reconhecemos ao ler a obra. Mas, tirando Hodor, praticamente tudo o que aconteceu parece que ocorreu em um vácuo. Porque embora tanta coisa tenha acontecido, a maneira que elas aconteceram, a sensação que deixaram, até mesmo os detalhes que levaram esses eventos a acontecerem… há algo faltando.

D&D nos mostraram vários detalhes em torno destes grandes eventos, isso é verdade… mas estes detalhes não se parecem com Martin. Pareceu, em vez disso, que eles nos mostraram um primeiro esboço de uma história.

 

O Casamento Vermelho não era parte do plano original

“I have won every battle, yet somehow I’m losing the war.”

A maioria de nós já ouviu Martin dizer que ele escreve como um “jardineiro”: planta as sementes e as observa crescerem, ao invés de ser um arquiteto que constrói uma história metodicamente, tijolo por tijolo, de maneira planejada.

Se você quiser entender o quão incrivelmente diferentes a série e os livros podem se apresentar, considere isto: O casamento vermelho não fazia parte do plano original de GRRM para a série.
É isso mesmo, uma das cenas mais memoráveis, icônicas e cruciais, não havia sido algo planejada quando Martin apresentou os primeiros capítulos de A Game of Thrones. Como bem sabemos, no seu esboço em 1993 o plano era:

Robb terá esplêndidas vitórias, e irá mutilar Joffrey Baratheon no campo de batalha, mas no final não conseguirá enfrentar Jaime, Tyrion e seus aliados. Robb morrerá em batalha e Tyrion irá sitiar e queimar Winterfell. (…) Quando Winterfell queimar, Catelyn se verá obrigada a fugir para o Norte com Bran e Arya. (…) Abandonada pela Patrulha, Catelyn e seus filhos encontrarão proteção e esperança apenas no mais extremo norte, além da Muralha, onde eles cairão nas mãos de Mance Rayder, Rei Além da Muralha, e terão um vislumbre dos Outros ao serem atacados no acampamento selvagem. A magia de Bran, a espada Agulha de Arya e a selvageria dos lobos gigantes os ajudarão a sobreviver, mas Catelyn morrerá nas mãos dos Outros.

Sim, Robb morreria em batalha contra os Lannisters, e Catelyn morreria em batalha contra os Outros. E tenho certeza de que essas cenas teriam sido dramáticas e comoventes.

Mas estas ideias, de certa maneira, são mais simplistas e seguem mais clichês literários do que aqueles que vimos no final. Então, suponho que conforme GRRM avançava na escrita do primeiro livro, ele provavelmente sentiu-se insatisfeito com os desfechos originais. Ele sabia que a execução de Ned seria algo difícil de superar, de modo que ele queria fazer algo que fosse brutalmente inesquecível, e algo com muito mais peso temático.

E em algum momento, ele se lembrou de alguns eventos violentos da história escocesa, e decidiu criar um senhor que tivesse uma ponte de importância estratégica.

 

A importância da jardinagem

“Growing Strong”

Imaginar uma adaptação da série sem o Casamento Vermelho – se Martin não tivesse inventado isso ainda – pode ser um experimento útil para nos ajudar a entender o que acabamos de ver na sexta temporada.

Benioff e Weiss foram bastante abertos sobre isso, dizendo que “tirando algumas coisas essenciais” como o arco dramático de Hodor , “estamos muito além dos livros” nesta temporada. Eles chamaram isso de seu “maior desafio”.

E, de fato, muitos dos eventos desta temporada – como a saída de Arya da Casa do Preto e Branco, a “resolução” de Dany e do “nó de Meereen”, a ressurreição de Jon, a saída de Jon da Patrulha da Noite, e a ascensão de Jon ao poder no Norte – simplesmente não parecem que passaram por esse processo de George de reconsiderar, revisar e executar.

Em outras palavras, as sementes plantadas não deram frutos. Portanto, muito do que aconteceu na série não contempla a essência da construção de mundos, a política, a sutileza, a cuidadosa construção de personagens, o profundo conhecimento sobre o que os personagens estão pensando, a vontade de dar aos personagens dilemas morais realmente difíceis e interessantes, e a relutância de GRRM de levar a trama em uma direção convencional.

Mas Martin só consegue chegar a esse ponto depois de dedicar muito trabalho na escrita. Mesmo se voltarmos para a quinta temporada, os enredos de Dany e Jon pareceram adaptações rasas de seus homólogos em A Dança dos Dragões. (…)

Certamente, algumas coisas que aconteceram na 6ª temporada foram bastante poderosas, como a queima do septo. No entanto, como um todo, este ano a história pareceu afinar-se – como se fossem ítens sendo riscados de uma lista, ou como se fossem o rascunho de um esboço. A sensação é de que a história também tornou-se muito mais convencional – por exemplo, como a idéia de Robb e Catelyn serem mortos em batalha, do mesmo jeito que vemos tantos outros personagens coadjuvantes em livros de fantasia morrerem, apenas porque Martin ainda não tinha pensado de uma ideia melhor.

E é por isso que acho que a série não deu spoilers sobre os livros. Por exemplo, além do fato de que Jon retornará (algo que já era óbvio) e, provavelmente, subir ao poder no Norte, eu realmente sinto como se não tivéssemos descoberto nada de realmente importante sobre o seu enredo. Como será o desenvolvimento do personagem? Como será seu arco, que está cada vez mais ligado a elementos mágicos? E quais dilemas morais ele irá enfrentar?

No fim, meus sentimentos mistos sobre esta nova temporada fizeram-me ainda mais animado do que nunca para ver o que Martin irá trazer com The Winds of Winter. Porque ler um esboço não é suficiente. O poder da história vem de sua especificidade. E eu quero ver o que está crescendo neste jardim há tanto tempo.

 

 


Achamos muito interessante o raciocínio de Feldman. Para ler a discussão completa, clique aqui.

Vale lembrar que, no que se refere ao processo de criação da série, a primeira temporada passou pelo mesmo esquema exaustivo de criação que Martin costuma fazer com os livros. Como sabemos, o episódio piloto passou por inúmeras mudanças até que fosse aprovado (leia aquiaqui e aqui). Martin assinou com a HBO no final de 2006, e Game of Thrones só foi ao ar cinco anos mais tarde. D&D tiveram muitos anos para produzir uma única temporada. Hoje em dia eles precisam correr com roteiros e pré-produção (locações, diretores, casting, figurino, arte) em questão de meses. O tempo certamente afeta a dedicação para a criação e adaptação da obra.

Mas no fim das contas, ao “ultrapassar os livros”, Game of Thrones acaba dando espaço para os livros serem ainda melhores, maiores. É claro que, no caminho, coisas trágicas acontecem: Martin não pôde revelar primeiro a origem de Walder/Wylis, não pôde nos levar com Bran até a Torre da Alegria, não pôde mostrar Dany navegando para Westeros, não pôde descrever os sentimentos lindos em se ter Winterfell de volta, e principalmente, Stannis e Shireen não tiveram tempo para que sua tragédia fosse temperada com ingredientes mais adequados.

Apesar disso, é interessante perceber que, talvez, a cena do reencontro entre Jon e Sansa, e os sentimentos bons que ela despertou em todos nós, seja algo que apenas a série de TV possa nos proporcionar. Talvez esse momento seja inspirado em um possível reencontro entre Arya e Jon nos livros. Talvez não.

Game of Thrones apresentou uma de suas temporadas mais celebradas e não teve medo de mostrar que, a partir daqui, está contando sua própria história, em seus próprios termos, seu próprio ritmo, sua própria temática, referências e motivações. A 6ª temporada foi concluída, e é muito mais claro agora que livros e série serão histórias diferentes. Porque mesmo que “diferentes estradas nos levem a um mesmo castelo”, Game of Thrones é uma história sobre essas estradas. E poder caminhar por todas essas possibilidades é um grande privilégio.