Nesta semana, recebemos uma sugestão de pauta da Lousie, com um link para este vídeo: BIRD SONG: A FAN VIDEO OF ICE & FIRE. Trata-se de um curta metragem produzido por fãs de As Crônicas de Gelo e Fogo, que encena o encontro entre Sansa Stark e Sandor Clegane durante a Batalha do Água Negra, do livro A Fúria dos Reis.
Antes de mais nada, é importante deixar claro que esta cena – e toda a relação entre Sandor e Sansa – sempre me deixou bastante desconfortável. Ela é muito jovem. Eu compreendo os temas da cena em questão (George brincando com a Bela e a Fera), as motivações (suas vidas pregressas e como se complementam), e principalmente como a relação entre os dois os modifica, além de ser um comentário sobre a natureza da história. Mas estamos falando de uma criança se envolvendo com um adulto e qualquer digressão com origem nesse tema é perigosa.
No entanto, é interessante como mesmo assim, essa cena gera tanta interesse e discussão. Discussão essa que a gente nunca teve aqui no site, e aqui está uma oportunidade de tê-la. Gostaria primeiramente de apresentar o vídeo que está servindo de base para iniciarmos essa conversa.
O filme “Bird Song“ foi produzido pela dupla Kate e Squid da Pandering to Karma Productions, e é protagonizado por Serena Laurel e David Baxter.
A ideia inicial do vídeo era encenar o encontro entre Sansa e o Cão de Caça usando a versão shakespeariana do diálogo, criada há alguns anos por entusiastas dos livros. No fim das contas, as meninas optaram pelo uso do texto original de George R. R. Martin e o produto final vocês assistem a seguir:
As diretoras fizeram um vídeo explicando o projeto – que na época estava buscando por financiamento coletivo, falando sobre as principais diferenças de Sandor nas duas mídias, e seu descontentamento pela versão da cena de Blackwater para a TV.
Não iremos fazer comentários sobre o filme delas, mas queremos muito saber a opinião de vocês sobre essa versão da cena. Já que nunca comentamos este tema em artigos aqui no site, selecionamos alguns pontos interessantes que poderão ajudá-los a relembrar a versão da série e a versão dos livros, colocando os personagens em perspectiva.
O episódio de Game of Thrones da HBO que cobriu os eventos de famosa batalha fez parte da segunda temporada da série, foi escrito pelo próprio George R. R. Martin, e dirigido por Neil Marshall. George não escreveu para a versão televisiva a cena do encontro entre Sandor e Sansa da maneira que ela está retratada nos livros (assista aqui), e na época o episódio foi tão celebrado, que este foi um detalhe pouco discutido.
No roteiro da cena que foi ao ar, Sansa retorna para os seus aposentos e encontra a boneca que Ned lhe deu. De repente ela se assusta ao perceber que Sandor está atrás dela escondido, talvez esperando por ela. Na conversa que se segue, ele revela que está indo embora da cidade. Sansa pergunta sobre Joffrey e Sandor diz com indiferença que não se importa. Sandor então se oferece para levar Sansa com ele e devolvê-la para Winterfell. Ele diz que poderia mantê-la segura. Sansa responde que ela está segura ali, e que Stannis não irá machucá-la. Ele então a obriga a olhar para ele, assustando-a, dizendo que Stannis e os Lannisters são assassinos. Que Eddard e Robb também são assassinos. E os filhos dela serão assassinos um dia. Sansa então diz com convicção (em um misto de rogatória e realização) que Sandor não irá machucá-la. Ele concorda, chamando-a de Passarinho, e então a deixa.
A HBO tem dois featurettes com David Benioff (primeira temporada) e Rory McCann (segunda temporada) comentando a relação entre os dois personagens. Segundo eles, Sandor odeia ver Sansa nessa situação de violência com Joffrey, o que o faz lembrar da maneira como ele mesmo era vítima do próprio irmão na infância. Dessa maneira ele tenta alertá-la a ser mais forte e mais consciente da verdadeira natureza dos homens. E Sansa é a figura jovem, bela e intocável que jamais olharia para alguém como ele, o que torna o exercício de “desafiá-la” mais interessante para o Cão. Pelo menos do ponto de vista desses comentários, é interessante ver esse recurso onde Sansa apanha e sangra para desenvolver outros personagens masculinos. Nos livros o ponto de vista é literalmente outro, já que estamos caminhando ao lado dos pensamentos dela, somente.
Relembrando os momentos envolvendo Sansa e o Cão na série de TV, temos:
No blu-ray da segunda temporada, tem uma versão do episódio da batalha com um áudio comentário inteiro dedicado apenas à George R. R. Martin. Quando começa a cena do encontro entre Sansa e Sandor, ele revela que havia uma fala no roteiro original que foi cortada pelos produtores. Nela, Sansa perguntaria para Sandor como ele sairia da cidade sendo que há guardas nos portões que testemunhariam sua deserção. A isso, Sandor responderia que “usaria sua espada contra eles, menos se eles estivessem ardendo“. George conta que gostaria que esse diálogo tivesse permanecido, já que ele revela muito sobre a relação de Sandor com o fogo, além de ser um comentários obre a insanidade da batalha em si. Como sabemos, o trecho citado por Martin é extraído diretamente do livro. Este é o único comentário adicional que Martin faz sobre a cena que escreveu para a série. Além disso, ele elogia bastante a atuação de Sophie Turner.
Em tempo, colocamos a descrição da cena da série primeiro, porque é muito sintomático como a série de TV pode ser diferente dos livros, mesmo apresentando um texto muito semelhante ao escrito por Martin. No livro o mergulho é mais profundo. Vamos lá.
No livro temos uma série de outras cenas referentes aos dois personagens mas, especificamente em relação aquelas que a série adaptou, alguns detalhes interessantes foram feitos de maneiras diferentes:
Há uma série de pensamentos que Sansa tem em relação à Sandor nos livros, como ela o interpreta, como ele constantemente a assusta e assedia, e como ele está longe de ser fisicamente e verbalmente um cavaleiro como os das canções que ela gosta. A cena do livro que mais exemplifica isso é justamente a cena da batalha.
Reproduzimos a seguir a cena de Blackwater como está escrita em A Fúria dos Reis. No livro, Sansa é uma garota com 12 anos de idade recém completos, enquanto Sandor tem aproximadamente 30.
Sansa afastou-se da janela, retirando-se para a segurança de sua cama. Vou dormir, disse a si mesma, e quando acordar será um novo dia, e o céu estará de novo azul. A batalha estará acabada e alguém me dirá se vou viver ou morrer.
— Lady — lamuriou-se em voz baixa, perguntando-se se voltaria a encontrar sua loba quando morresse.
Então, algo se agitou atrás dela, e uma mão saiu da escuridão e agarrou seu pulso.
Sansa abriu a boca para gritar, mas outra mão prendeu seu rosto, asfixiando-a. Os dedos eram ásperos e cheios de calos, e estavam pegajosos de sangue.
— Passarinho. Sabia que você viria — a voz era um ruído bêbado.
Lá fora, uma lança rodopiante de luz jade saltou para as estrelas, enchendo o quarto com um clarão verde. Viu-o por um momento, todo negro e verde, com o sangue no rosto escuro como alcatrão, os olhos brilhando como os de um cão no súbito clarão. Então, a luz sumiu e ele se transformou apenas numa sombra pesada com um manto branco manchado.
— Se gritar, mato-a. Acredite — tirou a mão de sua boca. A respiração de Sansa estava entrecortada.
Cão de Caça tinha posto um jarro de vinho na mesa de cabeceira. Bebeu um longo trago.
— Não quer perguntar quem está vencendo a batalha, passarinho?
— Quem? – ela aquiesceu, demasiado assustada para contrariá-lo.
Cão de Caça soltou uma gargalhada.
— Só sei quem perdeu. Eu.
Está mais bêbado do que jamais o vi. Estava dormindo na minha cama. O que quer aqui?
— Que foi que perdeu?
— Tudo – a metade queimada de seu rosto era uma máscara de sangue seco. —Maldito anão.
Devia tê-lo matado. Há anos.
— Dizem que está morto.
— Morto? Não. Que se dane. Não o quero morto — atirou o jarro vazio para o lado. — Quero-o queimado. Se os deuses forem bons, hão de queimá-lo, mas não vou estar aqui para ver. Vou embora.
— Embora? – ela tentou se libertar, mas a mão dele era de ferro.
— O passarinho repete tudo o que ouve. Embora, sim.
— Para onde vai?
— Para longe daqui. Para longe dos incêndios. Acho que sairei pelo Portão de Ferro. Para algum lugar, qualquer lugar, para o norte.
— Não sairá — Sansa o avisou. — A rainha fechou Maegor e os portões da cidade também estão fechados.
— Para mim, não. Tenho o manto branco. E tenho isto — deu pancadinhas no botão da espada.
— O homem que tentar me parar é um homem morto. A menos que esteja ardendo — soltou um riso amargo.
— Por que veio até aqui?
— Prometeu-me uma canção, passarinho. Já se esqueceu?
Sansa não sabia o que ele queria dizer. Não podia cantar para ele naquele momento, ali, com o céu num turbilhão de fogo e homens morrendo às centenas e aos milhares.
— Não posso — ela respondeu. — Largue-me. Está me assustando.
— Tudo a assusta. Olhe para mim. Olhe para mim.
O sangue tapava o pior de suas cicatrizes, mas os olhos estavam brancos, dilatados e aterrorizadores.
O canto queimado de sua boca torceu-se e voltou a se torcer. Sansa conseguia cheirá-lo; um fedor de suor, vinho amargo e vômito seco, e, por cima de tudo, o cheiro nauseabundo de sangue, sangue, sangue.
— Podia mantê-la a salvo — ele disse com sua voz áspera. — Todos têm medo de mim. Ninguém voltaria a lhe fazer mal, caso contrário, eu os mataria — puxou-a para mais perto, e por um momento ela pensou que pretendesse beijá-la. Era forte demais para resistir. Fechou os olhos, desejando que se apressasse, mas nada aconteceu. — Ainda não suporta olhar, não é? — ouviu-o dizer. Torceu seu braço com força, fazendo-a virar-se e atirando-a na cama. — Eu quero essa
canção.
Falou de Florian e Jonquil – tinha o punhal desembainhado, apontado à sua garganta.
— Cante, passarinho. Cante por sua pequena vida.
Sansa tinha a garganta seca e apertada de medo, e todas as canções que aprendera tinham fugido de sua cabeça. Por favor, não me mate, quis gritar, por favor, não. Conseguia senti-lo virando a ponta, empurrando-a de encontro à sua garganta, e quase voltou a fechar os olhos, mas então
lembrou-se. Não era sobre Florian e Jonquil, mas era uma canção. A voz soou fraca, fina e trêmula aos seus ouvidos.
Gentil Mãe, de clemência fonte,
nossos filhos livre da disputa,
pare espadas, pare flechas,
deixe-os ver um melhor dia.
Gentil Mãe, das mulheres força,
ajude nossas filhas nesta luta,
acalme a ira, dome a fúria,
ensine a todos outra via.
Tinha se esquecido dos outros versos. Quando a voz se desvaneceu, temeu que ele pudesse matá-la, mas após um momento Cão de Caça tirou a lâmina de sua garganta, sem uma palavra.
Um instinto qualquer fez Sansa levantar a mão e pousá-la no rosto dele. O quarto estava escuro demais para que o visse, mas sentiu o sangue pegajoso e uma umidade que não era sangue.
— Passarinho — ele voltou a falar, com a voz dura e áspera como aço riscando pedra. Então, levantou-se da cama. Sansa ouviu pano rasgando-se, seguido pelo som mais suave de passos que se afastavam.
Quando se arrastou para fora da cama, longos momentos mais tarde, estava só. Encontrou o manto dele no chão, muito torcido, com a lã branca manchada de sangue e fogo. A essa altura, o céu lá fora estava mais escuro, apenas com alguns pálidos fantasmas verdes dançando diante das estrelas. Soprava um vento gelado, fazendo as venezianas baterem. Sansa sentiu frio. Sacudiu o manto rasgado e enrolou-se debaixo dele no chão, tremendo.
Não saberia dizer quanto tempo ficou ali, mas, depois de um longo intervalo, ouviu um sino tocar, longe, do outro lado da cidade. O som era um ressoar profundo de bronze, tornando-se mais rápido a cada badalada. Sansa perguntava a si mesma o que aquilo poderia querer dizer, quando um segundo sino se juntou a ele, e um terceiro, vozes que chamavam por sobre as colinas e os vales, os becos e as torres, até chegarem a todos os cantos de Porto Real. Afastou o manto e foi até a janela.
O primeiro tênue sinal da alvorada era visível a leste, e os sinos da Fortaleza Vermelha estavam agora soando, juntando-se ao crescente rio de som que jorrava das sete torres de cristal do Grande Septo de Baelor. Sansa lembrou-se de que tinham feito repicar os sinos quando Rei
Robert morrera, mas o toque que ouvia agora era diferente, não um lento e doloroso repique de morte, e sim um trovão de alegria. Conseguia ouvir também homens gritando nas ruas, só podiam ser aclamações.
Foi Sor Dontos quem lhe trouxe a notícia. Entrou cambaleando pela porta aberta, envolveu-a em seus braços flácidos e a rodopiou pelo quarto, gritando com tanta incoerência que Sansa não entendeu uma palavra. Estava tão bêbado como Cão de Caça, mas nele a bebedeira era feliz e
dançante, Sansa estava sem fôlego e tonta quando ele a largou.
— O que se passa? — agarrou-se a uma das colunas da cama. – Que aconteceu? Diga-me!
— Acabou! Acabou! Acabou! A cidade está salva. Lorde Stannis morreu, Lorde Stannis fugiu, ninguém sabe, ninguém se importa, sua tropa está desfeita, o perigo passou. Massacrado, desbaratado ou mudado de lado, segundo dizem. Ah, os brilhantes estandartes!
Ainda falando sobre a questão dos livros, sabemos que toda vez que Sansa se recorda desta cena com o Cão de Caça, mais tarde na história, ela fala sobre um beijo. “ Beijou-me e ameaçou me matar e me obrigou a cantar uma canção para ele” – é o que se recorda. Em outro momento: “Ainda recordava a sensação de ter a cruel boca dele comprimida contra a sua. Viera ter com Sansa na escuridão, enquanto um fogo verde enchia o céu. Levou uma canção e um beijo e não me deixou nada além dum manto ensanguentado.“
George R. R. Martin comentou diretamente as lembranças de Sansa sobre Blackwater nos livros, dizendo que não revelaria muito sobre o assunto, mas que ele (como escritor) possui a ferramenta do “narrador não confiável“, sugerindo que Sansa recordar a cena como parte de um momento romântico pode se encaixar nessa categoria. Fica portanto implícito que Sansa inventou o beijo (ou Não-Beijo). Há também um vídeo de Martin comentando sobre o assunto em um evento na Espanha, reforçando a ideia de que voltará a endereçar a cena do não-beijo nos próximos volumes de As Crônicas.
Dizer que Sansa não é uma narradora confiável faz qualquer pessoa pensar que pode haver algo de errado com as lembranças que ela tem da cena, do Cão de Caça e possivelmente de muitas outras coisas. Talvez essa seja uma maneira de lidar com seus traumas, ou algo ainda muito mais sombrio. Além disso, nos faz perceber que qualquer outro personagem com ponto de vista pode ser um mentiroso potencial, e que várias outras cenas em As Crônicas de Gelo e Fogo podem não ser exatamente o que parecem ser. Honestamente, temos muitos personagens nos livros que claramente estão falando abobrinhas, como por exemplo Barristan (que erra datas, confunde eventos, e curiosamente é nele que depositamos confiança sobre o conhecimento da corte de Aerys), ou Daenerys (que recorda ter sentido medo dos homens que Robert enviava atrás dela e Viserys em sua infância, sendo que sabemos que Robert nunca fez isso e se arrepende de não ter feito). No caso de Daenerys, é parte do medo que o irmão plantava em sua mente, já que eles pulavam de casa em casa por não ser aceitos por ninguém, e não por perseguição. No caso de Barristan, a idade avançada, ingenuidade ou visão de mundo limitada (homem, branco, feito cavaleiro ideal muito cedo, obedeceu ordens a vida inteira, enfeitiçado sobre suas próprias histórias de glórias vividas).
Um outro exemplo sempre bastante discutido é a visão que Ned tem de Jaime Lannister. Descobrimos quem é Jaime somente quando entramos na cabeça dele. Além disso, na série de TV vimos que Ned omitiu o fato de ter vencido o duelo com Arthur Dayne de maneira nada honrosa. Omitiu por vergonha. Existe muitas oportunidades onde os personagens podem escolher florear uma história, ou ver apenas o que lhe é conveniente. E Sansa escolheu fazer isso para si mesma. Por quê?
Vou antecipar os comentários ansiosos que podem questionar a possibilidade de Sandor ter violentado Sansa em seu quarto naquela cena. Eu realmente não saberia dizer com propriedade se essa é uma perspectiva, porque o Cão confessa para Arya em A Tormenta de Espadas que gostaria de ter feito isso. Que gostaria de ter machucado Sansa. Portanto, tudo indica que ele não o fez.
Aliás, George foi entrevistado pelo Geek and Sundry em 2012 e, revelou não entender muito bem o motivo pelo qual muitas de suas leitoras (sim, ele cita exclusivamente mulheres) afirmam gostar intensamente de personagens como Jaime, Theon ou Sandor, justamente por conta de suas naturezas violentas e atos monstruosos. Na verdade George sabe muito bem o motivo pelo qual gostamos desses personagens, afinal de contas ele escreve fazendo com que eles de fato sejam simpáticos apesar de todas as falhas de caráter.
caráter.
Gostaria de agradecer novamente à Louise pela sugestão do vídeo feito pelas fãs, e convidar vocês a conhecerem o trabalho das meninas e, quem sabe, discutir esse tema que Martin criou com seus livros. O que vocês acham da cena entre Sansa e o Cão de Caça em Blackwater? Qual versão vocês consideram a mais interessante?
Divida sua opinião conosco nos comentários!