O leitor, ao se deparar com o título deste artigo, pode se perguntar: “De novo essa questão? Isso já não foi discutido mil vezes e mais uma? A série de TV Game of Thrones já não caminha para seu final e para um esclarecimento definitivo sobre esse assunto? Isso já não foi respondido?” Talvez a resposta seja sim, para tudo isso. E é justamente por esse motivo que agora parece ser o último momento para discorrer sobre quem é Azor Ahai nos livros. Esclareço, primeiramente, que utilizarei, aqui, informações canônicas de As Crônicas de Gelo e Fogo e declarações externas aos livros do autor, George R. R. Martin.
Deixo claro, também, que esse é um artigo de opinião que não é fundado em gosto pessoal ou viés a favor da personagem Daenerys Targaryen, ou em antipatia por outros que possam ser identificados como o herói profetizado. Na verdade, nunca fui especialmente fã de Daenerys (pelo contrário até, durante um bom tempo, e ainda não sou), mas procuro sempre não agir nem pensar como um “torcedor” em relação aos personagens de As Crônicas de Gelo e Fogo, e não me render à tendência inconsciente (que presumo que a maioria de nós tenha) de estabelecer protagonistas absolutos em uma história, esquecendo do contexto maior.
Assim, preferência pessoal por personagens não me impediu, de chegar, de forma que julgo razoável e lógica, à conclusão que será exposta aqui: a de que Daenerys Targaryen é Azor Ahai renascido. Não tomo isso como uma certeza absoluta, porém, e o “porquê” acaba sendo tão central para a análise quanto a própria identidade sugerida para o herói prometido. Não apenas liguei pontos para criar uma explicação razoável para uma conclusão pré-estabelecida. Ao contrário, ao analisar a base textual e refletindo sobre a história como um todo e o que interpreto como as intenções de Martin para ela, é que Daenerys surgiu como conclusão. A seguir explico como e por que acredito que ela é quem é Azor Ahai nos livros.
Para se iniciar qualquer análise no sentido da proposta aqui, deve-se necessariamente recorrer aos conteúdos do texto original, para que sejam estabelecidas as bases canônicas sobre o assunto discutido. Neste caso, o que devemos buscar primeiro é o que os livros dizem sobre Azor Ahai e sobre o Príncipe que foi Prometido. Estar a par de tudo o que é dito sobre esse herói no cânone é crucial para evitar confusões e desinformações, que podem enviesar uma conclusão. As passagens mais importantes sobre a figura presentes no texto dos livros serão citadas, e a identidade comum entre Azor Ahai e o Príncipe que foi Prometido será também explicada.
O primeiro livro da série, A Guerra dos Tronos, não contém nenhuma referência direta a um herói prometido, apesar de algumas passagens adquirirem significado retroativamente por elementos presentes nos livros posteriores (as quais serão abordadas adiante). É a partir de A Fúria dos Reis que o leitor tem o primeiro contato com Azor Ahai, e as menções a essa figura estão presentes em todos os livros seguintes.
No primeiro capítulo de Davos Seaworth em Fúria, o ex-contrabandista tornado cavaleiro testemunha uma cerimônia em que Melisandre, sacerdotisa de R’hllor, declara que Stannis Baratheon é Azor Ahai renascido. A partir da fala de Melisandre, o leitor pela primeira vez é apresentado ao que dizem as profecias de Asshai sobre o ressurgimento de um herói prometido:
“– Nos livros antigos de Asshai está escrito que chegará um dia, após um longo Verão, em que as estrelas sangrarão e o bafo frio da escuridão cairá, pesado, sobre o mundo. Nessa hora de terror, um guerreiro retirará do fogo uma espada em chamas. E essa espada será a Luminífera, a Espada Vermelha dos Heróis, e aquele que a pegar será Azor Ahai renascido, e a escuridão fugirá perante ele – e levantou a voz, para que fosse ouvida pela tropa ali reunida. – Azor Ahai, o amado de R’hllor! O Guerreiro da Luz, o Filho do Fogo! Avance, a sua espada o espera! Avance, e tome-a em sua mão!
(MARTIN, George R. R. Davos I. A Fúria dos Reis. São Paulo: Leya, 2011, cap. 10. Tradução de Jorge Candeias.)
Dessa primeira citação, depreendemos que profecias antigas indicam que um herói guerreiro de nome Azor Ahai renascerá para salvar o mundo da escuridão que se abaterá sobre ele. O momento do aparecimento dessa figura é indicado por alguns sinais: o fim de um Longo Verão, estrelas sangrantes, o bafo frio da escuridão. A forma como Azor Ahai ressurgirá também é apontada: ele retirará uma espada flamejante do fogo.
Mais tarde, no mesmo capítulo, Salladhor Saan, pirata lyseno de ascendência valiriana ao serviço de Stannis, conta a Davos sobre como se deu a forja da espada Luminífera original, a dita “Espada Vermelha dos Heróis”. Segundo as lendas, Azor Ahai, para combater a escuridão que tomou conta do mundo, resolveu-se a forjar uma poderosa espada; depois de infrutíferas tentativas de temperá-la com água e sangue de leão, finalmente foi bem sucedido ao usar o sangue de sua própria esposa Nissa Nissa, à custa da vida dela.
No terceiro capítulo de Davos em A Tormenta de Espadas, Melisandre conversa com o Cavaleiro das Cebolas sobre ter identificado em Stannis a figura profetizada, e indiretamente dá mais detalhes sobre a própria profecia, com uma descrição um pouco diferente sobre quando e como o herói retornará:
O velho meistre olhava para Stannis e via apenas um homem. Você vê um rei. Ambos se enganam. Ele é o escolhido do Senhor, o guerreiro do fogo. Vi-o à frente da luta contra a escuridão, vi-o nas chamas. As chamas não mentem, caso contrário você não estaria aqui. Isso também está escrito na profecia. Quando a estrela vermelha sangra e as trevas reúnem forças, Azor Ahai renascerá por entre fumaça e sal, para acordar dragões da pedra. A estrela sangrenta já chegou e partiu, e Pedra do Dragão é o local de fumaça e sal. Stannis Baratheon é Azor Ahai renascido!
(MARTIN, George R. R. Davos III. A Tormenta de Espadas. São Paulo: Leya, 2011, cap. 25. Tradução de Jorge Candeias.)
Aqui, uma informação já mencionada, mas um pouco diferente, e duas novidades sobre forma e momento do retorno do herói: as estrelas que sangram passaram ao singular, e agora sabe-se que, segundo as profecias, Azor Ahai renascerá em meio a fumaça e sal, “para acordar dragões da pedra”. Essa descrição da profecia é repetida ipsis litteris no décimo capítulo de Jon Snow em A Dança dos Dragões, no qual Melisandre mais uma vez identifica Stannis como Azor Ahai. Também em Dança, no sexto POV de Tyrion Lannister, quando o anão e Haldon Meiomeistre estão em Selhorys, eles veem um sacerdote vermelho que, em nome de Benerro, o Alto Sacerdote de R’hllor, convoca os volantinos para a guerra ao lado de Daenerys Targaryen:
– Benerro enviou a palavra de Volantis. A vinda dela é o cumprimento de uma antiga profecia. Da fumaça e do sal ela nascerá, para fazer um mundo novo. Ela é Azor Ahai retornado… e o triunfo dela sobre a escuridão trará um verão sem fim… a morte dobrará os joelhos, e aqueles que morrerem lutando pela causa dela renascerão.
(MARTIN, George R. R. Tyrion VI. A Dança dos Dragões. São Paulo: Leya, 2012, cap. 22. Tradução de Marcia Blasques.)
Nota-se, por essa passagem, que a versão da profecia trazida por Melisandre a Westeros é a mesma conhecida também pelos sacerdotes r’hlloristas em Essos, com a menção ao renascimento da fumaça e do sal. Cabe aqui um esclarecimento de que o tempo verbal dessa fala foi alterado na tradução para o português brasileiro. No texto original, o sacerdote diz “From smoke and salt was she born…” (MARTIN, George R. R. Tyrion VI. A Dance with Dragons. Nova York: Bantam Spectra, 2011, cap. 22). Isso significa que ele acredita que Daenerys já nasceu da fumaça e do sal, e não que “nascerá“, como diz a versão da Editora Leya de 2012.
Em O Mundo de Gelo e Fogo, Meistre Yandel, o autor do livro (sob a perspectiva imersiva no universo), também menciona as lendas e profecias de Azor Ahai, existentes tanto em Asshai quanto em outras regiões do continente essosi:
Também está escrito que há anais em Asshai sobre tal escuridão, e sobre um herói que lutou contra ela com uma espada vermelha. Dizem que seus feitos se deram antes da ascensão de Valíria, nos tempos primordiais quando a Velha Ghis começava a formar seu império. Essa lenda se espalhou a oeste de Asshai, e os seguidores de R‘hllor afirmam que esse herói se chamava Azor Ahai, e profetizaram seu retorno. No Compêndio de Jade, Colloquo Votar relata uma lenda curiosa de Yi Ti, que afirma que o sol escondeu seu rosto da terra por toda a vida, envergonhado de algo que ninguém jamais descobriu, e que este desastre foi revertido graças aos feitos de uma mulher com uma cauda de macaco.
(MARTIN, George R. R.; GARCÍA JR.; Elio, ANTONSSON, Linda. A Longa Noite. O Mundo de Gelo e Fogo. São Paulo: Leya, 2015. Tradução de Marcia Blasques.)
Nos anais de Mais a Leste, foi a Traição de Sangue, como sua usurpação foi chamada, que inaugurou a era de escuridão chamada Longa Noite. Desesperada com o mal que fora solto na terra, a Donzela-feita-de-Luz deu as costas para o mundo, e o Leão da Noite chegou com toda sua ira para punir as fraquezas dos homens.
Quanto tempo a escuridão durou nenhum homem pode dizer, mas todos concordam que foi só quando um grande guerreiro ‒ conhecido como Hyrkoon, o Herói, Azor Ahai, Yin Tar, Neferion e Eldric Caçador de Sombras ‒ surgiu para dar coragem à raça dos homens e liderar os virtuosos em batalha com sua espada brilhante Luminífera que a escuridão foi condenada à derrota, e a luz e o amor retornaram mais uma vez ao mundo.
(MARTIN, George R. R.; GARCÍA JR., Elio; ANTONSSON, Linda. Os Ossos e além: Yi Ti. O Mundo de Gelo e Fogo. São Paulo: Leya, 2015. Tradução de Marcia Blasques.)
Importante ressaltar que o “Compêndio de Jade”, de Colloquo Votar, é o livro que Meistre Aemon Targaryen deixou com Jon Snow antes de partir da Muralha rumo à Cidadela. A obra conta também a história da forja da Luminífera, além de uma lenda sobre uma ocasião em que Azor Ahai lutou contra um monstro, cujo sangue ferveu e teve seu corpo derretido e incendiado quando perfurado com a espada pelo herói. (MARTIN, George R. R. Jon III. A Dança dos Dragões. São Paulo: Leya, 2012, cap. 10. Tradução de Marcia Blasques.)
Incluindo as passagens já citadas, Azor Ahai é mencionado, por este nome, um total de 18 vezes ao longo de todo o cânone de Gelo e Fogo. O “Príncipe que foi Prometido”, no entanto, é citado outras sete vezes. E muitas vezes surge, entre os leitores, a dúvida se Azor Ahai e o Príncipe que foi Prometido são a mesma figura. Apesar de não haver confirmação expressa disso, digo, com um grau considerável de certeza, que sim, e explico o porquê.
A primeira menção ao Príncipe que foi Prometido ocorre no capítulo de A Fúria dos Reis em que Daenerys visita a Casa dos Imortais, em Qarth. Entre as inúmeras visões que ela experimenta sob efeito da sombra da tarde, uma bebida alucinógena, está uma em que ela vê seu irmão Rhaegar, e ele faz menção a esse herói:
Seu primeiro pensamento, na vez seguinte em que parou, foi Viserys, mas um segundo olhar fez Dany mudar de ideia. O homem tinha os cabelos do irmão, mas era mais alto, e seus olhos eram de um tom escuro de índigo, e não lilases.
– Aegon – ele disse para uma mulher que amamentava um recém-nascido numa grande cama de madeira. – Que nome seria melhor para um rei?
– Fará uma canção para ele? – a mulher perguntou.
– Ele já tem uma canção. É o príncipe que foi prometido, e é sua a canção de gelo e fogo – ergueu o olhar quando disse aquilo, e seus olhos encontraram os de Dany, e pareceu que a via ali em pé através da porta.
(MARTIN, George R. R. Daenerys IV. A Fúria dos Reis. São Paulo: Leya, 2011, cap. 48. Tradução de Jorge Candeias.)
Daenerys, como o leitor, era ignorante a respeito dessa figura, e depois de destruir a Casa, questiona Sor Jorah Mormont sobre essa questão. O cavaleiro nortenho, no entanto, tampouco é capaz de lhe dar mais informações sobre o tal Príncipe. Posteriormente, em A Tormenta de Espadas, três outros capítulos contêm menções ao Príncipe que foi Prometido, dois de Davos e um de Samwell Tarly. No primeiro deles, o quarto de Davos no livro, o cavaleiro, seu rei e Melisandre discutem sobre as batalhas que virão, e a sacerdotisa menciona a “Grande Batalha”, e mais uma vez identifica Stannis como o herói que deverá liderar os homens, o que faz também no sexto POV de Davos. Nessas ocasiões, porém, não o chama por Azor Ahai:
A convicção na voz do rei assustou Davos profundamente.
– Um monte numa floresta… silhuetas na neve… eu não…
– Significa que a batalha começou – disse Melisandre. – A areia corre agora mais depressa pela ampulheta, e o tempo do homem sobre a terra está quase no fim. Temos de agir com ousadia, senão toda a esperança estará perdida. Westeros tem de se unir sob seu único rei verdadeiro, o príncipe que foi prometido, Senhor de Pedra do Dragão e escolhido de R’hllor.
– Então R’hllor faz estranhas escolhas. – O rei fez uma careta, como quem saboreia algo desagradável. – Por que eu e não meus irmãos? Renly e seu pêssego. Em meus sonhos, vejo o sumo escorrendo da boca dele, e o sangue da garganta. Se tivesse cumprido seu dever para com o irmão, teríamos esmagado Lorde Tywin. Uma vitória de que até Robert poderia se orgulhar. Robert… – Seus dentes rangeram, de um lado para o outro. – Ele também aparece em meus sonhos. Rindo. Bebendo. Vangloriando-se. Eram as coisas que ele fazia melhor. Isso, e lutar. Nunca o venci em nada. O Senhor da Luz devia ter feito de Robert o seu campeão. Por que eu?
(MARTIN, George R. R. Davos IV. A Tormenta de Espadas. São Paulo: Leya, 2011, cap. 36. Tradução de Jorge Candeias.)
– Eu sei como ele se chama. Poupe-me de suas censuras. Não gosto mais disso do que você, mas o meu dever é para com o reino. O meu dever… – Voltou a virar-se para Melisandre. – Jura que não há outra maneira? Jure por sua vida, porque juro que morrerá devagarinho se mentir para mim.
– O senhor é quem tem de se erguer perante o Outro. Aquele cuja vinda foi profetizada há cinco mil anos. O cometa vermelho foi o seu arauto. O senhor é o príncipe que foi prometido, e se cair, o mundo cairá junto. – Melisandre aproximou-se dele, de lábios entreabertos, com o rubi a latejar. – Dê-me este garoto – sussurrou – e eu darei o seu reino.
(MARTIN, George R. R. Davos VI. A Tormenta de Espadas. São Paulo: Leya, 2011, cap. 63. Tradução de Jorge Candeias.)
Nota-se por essas passagens, portanto, que Melisandre usa a denominação “Príncipe que foi Prometido” exatamente no mesmo contexto em que usou “Azor Ahai renascido”, e usa o mesmo argumento (do cometa como estrela sangrante) para justificar a identificação de Stannis como tal figura. Importante ressaltar, também, a nova informação de que a profecia da vinda do herói aconteceu cinco mil anos antes dos eventos de As Crônicas de Gelo e Fogo, algo que ainda não havia sido dito.
Mais tarde, ainda em A Tormenta de Espadas, Aemon conversa com Melisandre em Castelo Negro também sobre a “Batalha pela Alvorada” (a mesma grande batalha anteriormente mencionada), e pergunta onde estaria o Príncipe que foi Prometido, ao que ela responde que ele está bem ali (se referindo a Stannis). Desta vez, ela usa os dois termos na mesma frase:
– Sim. – A mulher levantou-se num turbilhão de seda escarlate, com os longos cabelos acobreados caindo em volta de seus ombros. – As espadas, sozinhas, não podem deter esta escuridão. Só a luz do Senhor consegue fazer isso. Não se iludam, bons sores e valentes irmãos, a guerra que viemos travar não é uma querela mesquinha a propósito de terras e honrarias. A nossa é uma guerra pela própria vida, e se falharmos o mundo morre conosco.
Sam viu que os oficiais não sabiam como entender aquilo. Bowen Marsh e Othell Yarwyck trocaram um olhar de dúvida, Janos Slynt estava furioso e Hobb Três-Dedos tinha a expressão de quem preferia estar cortando cenouras naquele momento. Mas todos pareceram surpreendidos ao ouvir Meistre Aemon murmurar:
– A guerra de que fala é a guerra pela alvorada, senhora. Mas onde está o príncipe que foi profetizado?
– Ele está na sua frente – declarou Melisandre –, embora não tenha olhos para ver. Stannis Baratheon é Azor Ahai regressado, o guerreiro do fogo. Nele, as profecias cumprem-se. O cometa vermelho ardeu no céu para anunciar a sua vinda, e ele traz a Luminífera, a espada vermelha dos heróis.
Sam viu que as palavras dela pareceram deixar o rei desesperadamente desconfortável. Stannis rangeu os dentes e disse:
– Chamaram, e eu vim, senhores. Agora têm de sobreviver comigo, ou morrer comigo. É melhor que se habituem a isso. – Fez um gesto brusco. – É tudo. Meistre, fique por um momento. E você também, Tarly. Os outros podem ir.
(MARTIN, George R. R. Samwell V. A Tormenta de Espadas. São Paulo: Leya, 2011, cap. 78. Tradução de Jorge Candeias.)
Aqui, também, um pequeno desvio na tradução: no original, Aemon diz “prince that was promised”, (MARTIN, George R. R. Samwell V. A Storm of Swords. Nova York: Bantam Spectra, 2000, cap. 78.) —”príncipe que foi prometido” — exatamente como em todas as outras menções do termo, que apenas desta vez foi traduzido como “profetizado”. Nota-se, enfim, que a sacerdotisa usa os dois termos alternadamente para se referir à mesma figura, enquanto que Aemon se atém a utilizar o “Príncipe que foi Prometido”. Em O Festim dos Corvos, o meistre faz ainda outra menção a essa figura, ao identificar Daenerys como tal:
“Nunca ninguém procurou uma garota”, dissera, “Fora um príncipe a ser prometido, não uma princesa. Rhaegar, pensava eu… a fumaça era do incêndio que devorou Solarestival no dia de seu nascimento, o sal vinha das lágrimas derramadas por aqueles que morreram. Ele partilhou minha crença quando era novo, mas mais tarde persuadiu-se de que seria o filho a cumprir a profecia, pois um cometa foi visto no céu de Porto Real na noite em que Aegon foi concebido, e Rhaegar tinha certeza de que a estrela sangrando era um cometa. Que tolos fomos por nos julgarmos tão sábios! O erro teve origem na tradução. Os dragões não são nem machos nem fêmeas, Barth viu aí a verdade, mas ora uma coisa, ora outra, tão mutáveis como chamas. A língua nos induziu em erro durante mil anos. A escolhida é Daenerys, nascida entre sal e fumaça. Os dragões assim nos provam.”
(MARTIN, George R. R. Samwell IV. O Festim dos Corvos. São Paulo: Leya, 2012, cap. 35. Tradução de Jorge Candeias.)
É perceptível, assim, que a despeito de Aemon nunca utilizar o termo Azor Ahai, o Príncipe que sempre menciona também teve seu retorno profetizado em termos iguais aos mencionados por Melisandre: fumaça, sal e estrela sangrando, o que permite inferir uma identidade comum entre as figuras. Saindo do cânone em sentido estrito, e recorrendo à “palavra de Deus“, o próprio George R. R. Martin já chamou a figura de “prince that was promised” em um contexto em que seria mais comum se referir a ele como Azor Ahai (uma vez que envolvia Melisandre). A fala pode ser ouvida a partir dos 06:55, aproximadamente, de um vídeo explicativo das religiões de Westeros:
Assim, conclui-se que “Príncipe que foi Prometido” e “Azor Ahai renascido” são duas denominações diferentes para uma mesma figura profetizada. Abrindo um parêntese especulativo, suponho que o “Príncipe” seja o nome do herói na tradição valiriana, a que tiveram acesso os Targaryen, visto que tanto Rhaegar quanto Aemon usaram essa expressão, enquanto que Azor Ahai seria um termo da tradição asshai’i, herdado e adotado pelos seguidores de R’hllor. Essa hipótese de nomes diferentes para uma mesma figura em diferentes tradições ganha força pelo texto de O Mundo de Gelo e Fogo, que traz a informação de que o Azor Ahai original também teve vários nomes lendários em diferentes regiões de Essos, como Hyrkoon, Neferion e Eldric Caçador de Sombras.
Estabelecida uma identidade comum com duas denominações, adiante com outra menção ao herói. A despeito de não usar nenhum dos dois nomes para ser referir à figura, o Arquimeistre Marwyn também se mostra familiarizado com a profecia de seu ressurgimento nos termos conhecidos e propagados por Aemon, Melisandre e os sacerdotes vermelhos:
Não era homem a quem se pudesse dizer não. Sam hesitou por um momento, e então voltou a contar sua história, enquanto Marwyn, Alleras e o outro noviço escutavam. – Meistre Aemon acreditava que Daenerys Targaryen era a realização de uma profecia… Ela, não Stannis nem Príncipe Rhaegar, nem o principezinho cuja cabeça foi atirada contra a parede.
– Nascida entre o sal e o fumo, sob uma estrela sangrenta. Conheço a profecia – Marwyn virou a cabeça e escarrou uma bola de muco vermelho para o chão. – Não que confie nela. Gorghan de Velha Ghis escreveu um dia que uma profecia é como uma mulher traiçoeira. Mete o seu membro na boca, você geme de prazer e pensa, “que maravilha, que agradável, que bom isto é”… E então seus dentes se fecham e seus gemidos se transformam em gritos. É essa a natureza da profecia, Gorghan disse. A profecia sempre arranca seu pau a dentada – mascou durante algum tempo. – Mesmo assim…
(MARTIN, George R. R. Samwell V. O Festim dos Corvos. São Paulo: Leya, 2012, cap. 45. Tradução de Jorge Candeias.)
Finalmente, uma última passagem digna de nota que faz menção ao Príncipe tem lugar em A Dança dos Dragões, quando Barristan Selmy e Daenerys conversam sobre casamentos arranjados e por amor:
– Vi o casamento de seu pai e sua mãe também. Me perdoe, mas não havia carinho ali, e o reino pagou caro por isso, minha rainha.
– Por que se casaram se não amavam um ao outro?
– Seu avô ordenou. Uma bruxa do bosque dissera para ele que o príncipe prometido nasceria da linhagem deles.
– Uma bruxa do bosque? – Dany estava atônita.
– Ela chegou à corte com Jenny de Pedrantiga. Uma coisa atrofiada, grotesca de se ver. Uma anã, a maioria das pessoas diria, apesar de cara à Senhora Jenny, que sempre afirmou que a mulher era uma das filhas da floresta.
– O que aconteceu com ela?
– Solar de Verão. – As palavras estavam cheias de condenação.
Dany suspirou.
– Deixe-me agora. Estou muito cansada.
(MARTIN, George R. R. Daenerys V. A Dança dos Dragões. São Paulo: Leya, 2012, cap. 30.)
Embora Daenerys interrompa a fala de Barristan (como de costume quando o cavaleiro está prestes a revelar informações potencialmente importantes para o plano maior da série), é notável que uma pessoa aparentemente dissociada das tradições milenares tivesse não apenas conhecimento da existência de uma profecia como também feito uma sua própria a seu respeito. A pessoa em questão, a “bruxa do bosque”, não é outra senão a Fantasma de Coração Alto, com quem Arya Stark se encontra em A Tormenta, ao que tudo indica mais associada à magia dos Filhos da Floresta do que qualquer tradição de Essos.
É bom ressaltar que a pequena bruxa, apesar de misteriosa, se mostrou infalível em suas visões, prevendo vários eventos importantes dos livros. Merece destaque também o fato de que a profecia era aparentemente do conhecimento dos Targaryen, e relevante para no mínimo alguns deles. Foi, afinal, motivo suficiente para que Jaehaerys II organizasse o casamento entre Aerys e Rhaella, mesmo indo contra os desejos de seu próprio pai, Aegon V. (MARTIN, George R. R.; GARCÍA JR., Elio; ANTONSSON, Linda. Aegon V. O Mundo de Gelo e Fogo. São Paulo: Leya, 2015.)
A conclusão a que se chega após essas passagens, portanto, é que Azor Ahai foi um herói lendário que viveu durante um período em que uma grande escuridão se abateu sobre o mundo, a Longa Noite, mais de cinco mil anos antes dos eventos de As Crônicas de Gelo e Fogo, e cujo retorno foi profetizado em várias tradições, tanto em Essos quanto em Westeros. Segundo contam as lendas, o herói empreendeu um grande sacrifício para temperar sua lâmina, a Luminífera, também chamada a Espada Vermelha dos Heróis.
O retorno de Azor Ahai foi profetizado e ele se tornou uma figura messiânica para a religião de R’hllor, cujos seguidores creem que ele retornará em um momento de escuridão para novamente salvar os homens. O Príncipe que foi Prometido é uma outra denominação para o herói dessa profecia, que é conhecida por vários personagens nos livros. Trata-se, à primeira vista, portanto, de uma versão do clássico trope do “escolhido”, o arquétipo messiânico, um herói salvador que liderará a humanidade contra o mal e triunfará.
Após a revisão com as menções a Azor Ahai e a aquisição da base canônica sobre o herói e sua identidade, podemos passar a um segundo passo: estabelecer de forma mais didática uma série de “requisitos” objetivos para que se dê seu renascimento, e listar também alguns atos atribuídos ao Príncipe Prometido pelas profecias. Além disso, buscaremos quais personagens já foram identificados como esse herói messiânico por outros, dentro da própria história.
Quanto às profecias, é importante que nos atenhamos à literalidade do que dizem sobre elas os personagens nos livros, e que não extrapolemos com suposições. Segundo a aparente tradição “clássica”, dos sacerdotes de R’hllor, compartilhada pelos Targaryens (no mínimo Aemon) e Marwyn, os seguintes eventos são associados com o renascimento de Azor Ahai:
Além das partes comuns a vários personagens, existem alguns pontos proféticos sobre o retorno do herói a que apenas alguns deles fazem menção. Como vimos na citação presente no primeiro item, Benerro, o Alto Sacerdote de R’hllor em Volantis, por exemplo, afirma que Azor Ahai refará o mundo e triunfará sobre a escuridão. Rhaegar Targaryen, por outro lado, é único ao afirmar que é do Príncipe a “canção de gelo e fogo” (o que quer que seja ela), além de relacionar o herói prometido com as “três cabeças do dragão”, um entendimento compartilhado por meistre Aemon Targaryen. Stannis revela indiretamente uma outra fala de Melisandre sobre a profecia, mencionando que o herói renascerá “no mar”:
– Quantos garotos vivem em Westeros? Quantas garotas? Quantos homens, quantas mulheres? A escuridão vai devorá-los todos, diz ela. A noite que não tem fim. Fala de profecias… um herói renascido no mar, dragões vivos chocados a partir de pedra morta… fala de sinais e jura que apontam para mim. Nunca pedi isso, assim como não pedi ser rei. Mas vou me atrever a não lhe dar ouvidos? – rangeu os dentes. – Não escolhemos o nosso destino. Mas temos… temos de cumprir o nosso dever, não é? Grande ou pequeno, temos de cumprir o nosso dever. Melisandre jura que me viu em suas chamas, enfrentando a escuridão com a Luminífera erguida bem alto. Luminífera! – Stannis soltou uma fungadela derrisória.
(MARTIN, George R. R. Davos V. A Tormenta de Espadas. São Paulo: Leya, 2011, cap. 54. Tradução de Jorge Candeias.)
Além da relação com as “três cabeças do dragão”, Aemon acredita que houve um erro na tradução, e que o Príncipe pode também ser uma Princesa, e que essa figura deve vir do “sangue do dragão” (que, na conjuntura de As Crônicas de Gelo e Fogo está presente apenas nos Targaryen e seus descendentes). O meistre crê também que o retorno dos próprios dragões está relacionado com a vinda desse Príncipe Prometido. Aqui, um aparte relevante: a volta dos dragões à vida, ao que tudo indica, também era uma profecia antiga com a qual os Targaryen estavam familiarizados. Além de registrada por escrito, foi também vista por Daeron, o Bêbado (irmão de Aemon e Aegon V, “Egg”), em um sonho de dragão:
Egg abaixou a voz. – Algum dia os dragões vão voltar, meu irmão Daeron sonhou com isso, e o Rei Aerys leu na profecia. Talvez seja meu ovo que vai eclodir. Isso seria esplêndido.
(MARTIN, George R. R. O Cavaleiro Misterioso. O Cavaleiro dos Sete Reinos. São Paulo: Leya, 2014.)
Terá de ser você. Conte-lhes. A profecia… O sonho do meu irmão… A Senhora Melisandre leu mal os sinais. Stannis… Stannis tem em si um pouco de sangue de dragão, é verdade. Os irmãos também tinham. Rhaelle, a filhinha do Ovo, foi através dela que o arranjaram… A mãe do pai deles… Costumava chamar-me Tio Meistre quando era pequena. Lembrei-me disso, por isso me permiti ter esperança… talvez quisesse… Todos nos enganamos a nós mesmos quando queremos acreditar. Acima de todos Melisandre, creio eu. A espada é a errada, ela precisa saber disso… Luz sem calor… Um brilho vazio… A espada é a errada, e a falsa luz só pode nos levar para uma escuridão mais profunda, Sam. Nossa esperança é Daenerys. Diga-lhes isso, na Cidadela. Obrigue-os a escutá-lo. Têm de lhe mandar um meistre. Daenerys deve ser aconselhada, instruída, protegida.
(MARTIN, George R. R. Samwell IV. O Festim dos Corvos. São Paulo: Leya, 2012, cap. 35. Tradução de Jorge Candeias.)
Não apenas os Targaryen, ao que parece, associavam o retorno dos dragões com o Príncipe que foi Prometido. Selyse Baratheon, devota da religião de R’hllor em frequente contato com Melisandre, acredita que as tentativas dos Targaryen de eclodirem os ovos foram infrutíferas porque quem as empreendeu não era o herói prometido:
– Senhor esposo – disse a Rainha Selyse –, tem mais homens do que Aegon tinha há trezentos anos. Tudo que lhe falta são dragões.
O olhar que Stannis lhe dirigiu era sombrio.
– Nove magos cruzaram o mar para chocar os ovos de Aegon Terceiro. Baelor, o Abençoado, rezou sobre o seu durante meio ano. Aegon, o Quarto, construiu dragões de madeira e ferro. Aerion Chamaviva bebeu fogovivo para se transformar. Os magos falharam, as preces do Rei Baelor não obtiveram resposta, os dragões de madeira queimaram, e o Príncipe Aerion morreu aos gritos.
A Rainha Selyse mostrou-se inflexível.
– Nenhum desses homens era o escolhido de R’hllor. Nenhum cometa vermelho ardeu nos céus para anunciar a sua chegada. Nenhum brandia a Luminífera, a espada vermelha dos heróis. E nenhum deles pagou o preço. A Senhora Melisandre dirá, senhor. Só a morte pode pagar pela vida.
(MARTIN, George R. R. Davos V. A Tormenta de Espadas. São Paulo: Leya, 2011, cap. 54. Tradução de Jorge Candeias.)
Por último, mas não menos importante, a Fantasma de Coração Alto profetizou que o Príncipe nascerá da linhagem de Aerys II Targaryen e sua esposa-irmã Rhaella.
Assim, listamos de forma mais simples alguns outros pontos que não fazem parte do “corpo comum” da profecia de Azor Ahai, mas que são mencionados por alguns personagens:
É notável que não há nenhuma menção, em qualquer das diversas versões, a que deva haver uma reforja da Luminífera para o renascimento do herói, mas apenas que Azor Ahai retirará do fogo uma espada flamejante. Tampouco qualquer das profecias menciona a existência de uma nova Nissa Nissa ou um novo sacrifício quando do ressurgimento da figura (apesar de Davos, por exemplo, refletir sobre o sacrifício do Azor Ahai original quando pensa em alguns atos de Stannis).
A visão da bruxa da floresta estabelece um filtro que diminui imensamente as possibilidades, visto que só poderiam ser identificados como Azor Ahai renascido seis personagens: Rhaegar, Aegon, Rhaenys, Viserys, Daenerys e o bastardo Jon Snow (é claro que, a despeito de não haver ainda confirmação categórica, tomarei R+L=J como certo aqui). Destes, estão vivos com certeza Daenerys e Jon, e possivelmente também Aegon. Na melhor das hipóteses, três personagens apenas, portanto. No entanto, a profecia da Fantasma não é do conhecimento de todos os personagens dentro do universo dos livros, e por isso analisaremos quantos e quais personagens são identificados por outros, dentro da própria história, como Azor Ahai.
O primeiro de que o leitor tem conhecimento (apesar de não ser o primeiro na cronologia da história) é Stannis Baratheon. Ele é exaltado por Melisandre como o herói a partir de A Fúria dos Reis, e as passagens nesse sentido já foram extensivamente citadas no item anterior, de modo que não precisamos repeti-las. É importante ressaltar, porém, que segundo George R. R. Martin, em correspondência com fãs, Melisandre foi ao encontro de Stannis totalmente por conta própria:
Por que Melisandre procurou Stannis? Ela o viu nas chamas e decidiu procurá-lo por conta própria, ou está em uma missão representando os sacerdotes vermelhos? Não aparece em momento algum que a última opção seja o caso, quando se compara com Moqorro que foi enviado pelo sacerdócio.
Você está certo. Melisandre foi até Stannis inteiramente por conta própria, e tem sua própria agenda.”
(Asshai.com Interview in Barcelona. Westeros.org. 28 de julho de 2012. Tradução minha.)
Os excertos dos livros indicam que Melisandre interpretou, em suas visões, Pedra do Dragão como o local de fumaça e sal, e também do renascimento no mar: a ilha tem atividade vulcânica notória e naturalmente está cercada pelo Mar Estreito. Como visto na passagem de O Festim citada acima, Aemon Targaryen chegou a considerar a possibilidade de Stannis ser mesmo o Príncipe pelo fato de ter sangue do dragão, herdado de Rhaelle Targaryen (filha de Aegon V, “Egg”). O meistre diz que quis se convencer de que ele poderia ser o herói, mas descartou a hipótese após notar que a suposta Luminífera era falsa por não emanar calor, e ainda mais depois de ter notícias sobre Daenerys e o renascimento dos dragões.
Ainda em Fúria, no já citado POV de Daenerys na Casa dos Imortais, o leitor descobre que Rhaegar Targaryen acreditou que seu filho Aegon era o Príncipe que foi Prometido. Essa cena poderia ter sua credibilidade questionada, por ser uma visão de Daenerys sob efeito de uma droga alucinógena (e aparentemente mágica), mas a informação é corroborada mais tarde, em Festim, por Aemon. Ele revela que Rhaegar se convenceu de que seu filho Aegon seria o herói renascido pelo fato de um cometa ter aparecido no céu quando ele foi concebido. Segundo o meistre, Rhaegar estava convicto de que a parte da profecia que menciona uma “estrela sangrando” faz referência a um cometa.
Aemon, nessa mesma passagem e em outras, revela que correspondeu-se com o príncipe Targaryen durante um período, e que a princípio ambos acreditavam que o próprio Rhaegar seria o herói da profecia. O meistre chega a detalhar como interpretava o cumprimento dos requisitos: a fumaça seria oriunda do trágico incêndio em Solarestival (local e momento de nascimento de Rhaegar), e o sal viria das lágrimas que foram choradas pelos falecidos na tragédia. A profecia teve, ao que parece, papel fundamental em toda a vida de Rhaegar a partir de um certo ponto. Supõe-se, pela revelação de Aemon, que tenha sido ela a leitura que o motivou a se tornar um guerreiro:
– Quando criança, o Príncipe de Pedra do Dragão era extraordinariamente dado à leitura. Começou a ler tão cedo que os homens diziam que a Rainha Rhaella devia ter engolido alguns livros e uma vela enquanto ele estava em seu ventre. Rhaegar não tinha nenhum interesse pelas brincadeiras das outras crianças. Os meistres ficavam assombrados com sua inteligência, mas os cavaleiros do pai trocavam gracejos amargos sobre Baelor, o Abençoado, ter renascido. Até que um dia o Príncipe Rhaegar encontrou algo em seus pergaminhos que o mudou. Ninguém sabe o que pode ter sido, só se sabe que o garoto apareceu no pátio uma manhã, no momento em que os cavaleiros vestiam as armaduras. Foi direito a Sor Willem Darry, o mestre de armas, e disse: “Vou precisar de espada e armadura. Parece que tenho de ser um guerreiro.
(MARTIN, George R. R. Daenerys I. A Tormenta de Espadas. São Paulo: Leya, 2011, cap. 8. Tradução de Jorge Candeias.)
Por último, Daenerys. Em O Festim dos Corvos, o já tão citado meistre Aemon é o primeiro personagem dentro dos livros a identificá-la expressamente como Azor Ahai (não contaremos o momento em que o Rhaegar olha diretamente para ela quando fala do Príncipe na visão dos Imortais). Depois de solicitar a Sam Tarly que procurasse informações sobre dragões, o ancião recebe um relato em primeira mão de Xhondo Dhoru, um ilhéu de verão membro da tripulação do Vento de Canela. Aemon se anima com as notícias e conclui que Daenerys é o herói prometido, tendo uma epifania quase no leito de morte sobre um erro na tradução da profecia, que impediu que as pessoas admitissem a possibilidade de ser uma “princesa” e não um “príncipe”. Faz menção a outras profecias e diz que os dragões provam que ela é o herói renascido, sem entrar em detalhes sobre como os outros pontos proféticos teriam sido cumpridos.
Ao mesmo tempo, em Volantis, outro grupo de personagens também identifica a Rainha Targaryen como Azor Ahai: o Templo Vermelho de R’hllor, representado por seu Alto Sacerdote Benerro, chega à mesma conclusão de Aemon e passa a espalhar a “notícia” e a convocar as massas a se juntarem a ela (o que perturba os Triarcas da cidade). Outros sacerdotes propagam a palavra de Benerro em cidades próximas, e Moqorro é enviado com cinco membros da Mão de Fogo (o braço armado do Templo Vermelho) ao encontro de Daenerys em Meereen, para guiá-la como emissário da religião r’hllorista. (MARTIN, George R. R. Tyrion VIII. A Dança dos Dragões. São Paulo: Leya, 2012, cap. 33. Tradução de Marcia Blasques.)
É notável que dois núcleos de personagens já tenham identificado em Daenerys o herói prometido, ainda que não tenham conhecimento (como o leitor) dos eventos que se passaram no mar Dothraki em A Guerra dos Tronos. Na pira funerária de Drogo, que eventualmente transformou-se em palco de um evento mágico do maior calibre (capaz de fazer o que os Targaryen tentaram infrutiferamente durante mais de um século – trazer dragões de volta à vida) ocorreram eventos que são em grande parte compatíveis com os requisitos de que falam as profecias do retorno de Azor Ahai.
Rhaegar, segundo Aemon, era convicto de que a estrela sangrando mencionada pela profecia se tratava de um cometa. Com efeito, o cometa vermelho, que é um elemento de enredo durante boa parte do começo de A Fúria dos Reis, apareceu pela primeira vez ainda em A Guerra dos Tronos. Ele teve um papel fundamental no ato mágico intuitivo realizado por Daenerys no Mar Dothraki no último capítulo do livro, e aparentemente não estava no céu, ou no mínimo não havia sido visto por ela e os dothraki até exatamente aquele momento:
Jhogo a viu primeiro.
– Ali – disse ele numa voz abafada. Dany olhou e a viu, baixa, no leste. A primeira estrela era um cometa que ardia, vermelho. Vermelho de sangue; vermelho de fogo; a cauda do dragão. Não poderia ter pedido um sinal mais forte.
(MARTIN, George R. R. Daenerys X. A Guerra dos Tronos. São Paulo: Leya, 2010, cap. 72. Tradução de Jorge Candeias.)
Coincidentemente, em A Fúria dos Reis, o leitor descobre por Daenerys que o nome para o cometa na língua dothraki é shierak qiya, que significa, traduzido para Língua Comum, “estrela que sangra”. Ressalta-se a improbabilidade altíssima de que os dothraki que compunham o pequeno khalasar de Daenerys tivessem qualquer conhecimento prévio sobre a profecia do Príncipe, que continha um termo similar
Os dothrakis chamaram o cometa de shierak qiya, a Estrela que Sangra. Os velhos resmungavam que era um prenúncio do mal, mas Daenerys Targaryen vira-o pela primeira vez na noite em que cremara Khal Drogo, quando então seus dragões despertaram. É o arauto da minha chegada, dizia a si mesma enquanto fixava os olhos no céu da noite com o coração maravilhado. Os deuses enviaram-no para me indicar o caminho.
(MARTIN, George R. R. Daenerys I. A Fúria dos Reis. São Paulo: Leya, 2011, cap. 12. Tradução de Jorge Candeias.)
A profecia também menciona o fim de um longo verão como o momento do retorno de Azor Ahai. Durante o primeiro livro, diversos personagens mencionam que o verão então corrente está inusualmente extenso, até que o prólogo de Fúria, em que o leitor acompanha o ponto de vista Cressen, Meistre de Pedra do Dragão, traz a notável informação de que se trata do mais longo verão já registrado, e que ele finalmente teve fim recentemente:
O meistre não acreditava em presságios. E, no entanto… Apesar de ser tão velho, Cressen nunca vira um cometa com metade do brilho daquele, nem daquela cor, aquela cor terrível, do sangue, da chama e dos crepúsculos. Perguntou a si mesmo se suas gárgulas já teriam visto algo parecido. Já estavam ali muito tempo antes de ele chegar, e ainda lá permaneceriam muito depois de ele partir. Se línguas de pedra falassem…
(…)
E no entanto… No entanto… Agora, o cometa brilhava até durante o dia, enquanto o vapor cinza-claro se erguia da cratera quente do Monte Dragão, atrás do castelo. E na manhã anterior, um corvo branco tinha trazido notícias da própria Cidadela, há muito esperadas, mas não menos temíveis por isso, notícias do fim do verão. Tudo presságios. Demasiados para ser negados. Que significa tudo isso?, ele quis gritar.
(…)
– Mas… E a coisa no céu? Dalla e Matrice estavam conversando perto do poço, e Dalla disse que ouviu a mulher vermelha dizer à mãe que aquilo é respiração de dragão. Se os dragões estão respirando, não quer dizer que estão ganhando vida?
A mulher vermelha, pensou amargamente Meistre Cressen. Já é ruim o bastante que tenha enchido a cabeça da mãe com as suas loucuras, terá de envenenar também os sonhos da filha? Teria uma conversa severa com Dalla, para que não ficasse espalhando essas histórias.
– A coisa no céu é um cometa, minha doce menina. Uma estrela com uma cauda, perdida nos céus. Desaparecerá em breve, para não voltar a ser vista enquanto estivermos vivos. Espere e verá.
Shireen fez um pequeno, mas corajoso aceno com a cabeça.
– A mãe diz que o corvo branco quer dizer que já não é verão.
– É verdade, senhora. Os corvos brancos só voam da Cidadela. (…) São maiores do que os outros corvos, mais inteligentes, e criados apenas para transportar as mensagens mais importantes. Este veio nos dizer que o Conclave se reuniu, avaliou os relatórios e as medições feitas pelos meistres de todo o reino e declarou que este longo verão finalmente terminou. Durou dez anos, duas rotações e dezesseis dias, o mais longo verão já registrado.
(MARTIN, George R. R. A Fúria dos Reis. São Paulo: Leya, 2011, prólogo.)
Os pontos “estrela que sangra” e “fim de um longo verão” da profecia ficam bastante visíveis, portanto. Incluí outras passagens do capítulo de Cressen para mostrar o quão notável é o cometa em questão, e o fato de que ele é também tido como um presságio pelo meistre, que se desespera com isso. Coincidentemente ou não, Pedra do Dragão, que aparece pela primeira vez “ao vivo” em As Crônicas de Gelo e Fogo nesse capítulo, é justamente o local onde também pela primeira vez surgem menções a Azor Ahai nos livros.
Adiante, o renascimento em meio à fumaça e ao sal. A primeira tampouco carece de muita reflexão ou imaginação: Daenerys literalmente entrou no meio de uma pira funerária, que, naturalmente, expelia muita fumaça. O segundo elemento, aqui, é o busílis. Poderíamos interpretar como Aemon, sugerindo que lágrimas derramadas pela morte de Drogo, as de Mirri Maz Duur sendo queimada viva ou as das pessoas presentes quando da entrada de Daenerys na pira dariam origem ao sal. Minha interpretação, porém, vai um pouco além.
Melisandre reiteradamente interpreta Pedra do Dragão como o local do renascimento de Azor Ahai, por ser uma ilha no meio do mar (naturalmente, rodeada de sal, portanto). A partir daí já seria possível inferir que o sal da profecia poderia fazer referência a um mar, e essa hipótese ganha força por outra passagem, aquela em que Stannis revela que Melisandre falou literalmente sobre “um herói renascido no mar“. Nesse caso, é difícil ignorar que o evento mágico na pira funerária de Drogo teve lugar no Mar Dothraki. A interpretação do ponto profético nesse caso seria cumprida de forma metafórica, portanto.
Os outros dois pontos são bastante simples: a reunião de forças das trevas e o sopro frio da escuridão seriam representados pelo retorno dos Outros à atividade, depois de um longo período de aparente dormência. Por último, o renascimento dos dragões da pedra, que acontece literalmente. Ao longo de todo A Guerra dos Tronos, os ovos de dragão são reiteradamente mencionados como tendo a aparência de pedra, desde o momento em que são apresentados por Illyrio como presente de casamento para Daenerys:
Magíster Illyrio murmurou uma ordem e quatro corpulentos escravos apressaram-se a avançar, trazendo entre eles uma grande arca de cedro com aplicações em bronze. Quando a abriu, encontrou pilhas dos mais finos veludos e damascos que as Cidades Livres podiam produzir… e, em cima de tudo, aninhados nos suaves panos, três enormes ovos. Dany ofegou. Eram as coisas mais belas que já vira, diferentes uns dos outros, com padrões de cores tão ricas que ela a princípio pensou que estivessem incrustados de joias, e tão grandes que precisava de ambas as mãos para pegar num. Ergueu um ovo delicadamente, à espera de encontrá-lo feito de algum tipo de fina porcelana ou delicado esmalte, ou até de vidro soprado, mas era muito mais pesado do que julgara, como se todo ele fosse rocha sólida. A superfície da casca estava coberta de minúsculas escamas, e quando rodou o ovo entre os dedos elas cintilaram como metal polido à luz do sol poente. Um ovo era de um verde profundo, com manchas de lustroso bronze que iam e vinham, dependendo do modo como Dany o virava. Outro era creme-claro listrado de dourado. O último era negro, tão negro como o mar da meia-noite, mas vivo, com ondulações e remoinhos escarlates.
– O que são? – perguntou, com a voz baixa e maravilhada.
– Ovos de dragão, vindos das Terras das Sombras para lá de Asshai – disse Magíster Illyrio. – As eras os transformaram em pedra, mas ainda possuem uma beleza ardente e brilhante.”
(MARTIN, George R. R. Daenerys II. A Guerra dos Tronos. São Paulo: Leya, 2010, cap. 11. Tradução de Jorge Candeias.)
Aqui cabe também um parêntese a título de curiosidade. Illyrio menciona que os ovos vieram de Asshai, mas essa informação é um tanto questionável, à luz do que se descobre a respeito dos planos do Magíster e de Varys ao longo dos livros seguintes: o leitor descobre que o “queijeiro” e o “pantomimeiro” tramavam há anos conspirações relacionadas com os Targaryen. Teoriza-se que os ovos de Daenerys não tenham vindo de Asshai, como afirma Illyrio, mas que tenham originalmente pertencido aos próprios Targaryen em Westeros. Ainda que suas cores não sejam exatamente iguais às de outros ovos mencionados no cânone, existiram ovos dos dragões Targaryen de paradeiro conhecido, mesmo depois do fim dos dragões: Aegon V levou sete ovos para Solarestival, e posteriormente Aerys II encontrou vários outros nas profundezas de Pedra do Dragão.
Vale a pena também ressaltar que, a princípio, no projeto original para As Crônicas de Gelo e Fogo que Martin remeteu a a um colega editor em 1993, Daenerys não recebia os ovos como presente, mas os encontrava por acaso:
Falta, ainda, na tradição clássica da profecia, um ponto importante: Daenerys não retirou do fogo uma espada flamejante. Leitores proponentes da hipótese de que ela seja Azor Ahai teorizam que essa parte seria metafórica, com os dragões fazendo o papel da Luminífera (dado o potencial que podem ter para combater a escuridão que os Outros e suas criaturas representam). Não sou muito adepto dessa interpretação, porém, visto que a profecia menciona também, na literalidade, os dragões em outro ponto, que é seu renascimento da pedra. É notável, entretanto, que haja uma menção expressa nos livros sobre os dragões serem uma espada flamejante (por Xaro Xhoan Daxos, um personagem que, ao que tudo indica, sequer se preocupa com ou conhece profecias):
– Quando fui ao Salão dos Mil Tronos e implorei por sua vida, disse que você não era mais do que uma criança – continuou Xaro –, mas Egon Emeros, o Requintado, levantou-se e disse: “Ela é uma criança tola, louca, imprudente e muito perigosa para viver”. Quando seus dragões eram pequenos, eram uma maravilha. Crescidos, são morte e devastação, uma espada flamejante sobre o mundo. – Ele limpou as lágrimas. – Eu devia ter matado você em Qarth.
(MARTIN, George R. R. Daenerys III. A Dança dos Dragões. São Paulo: Leya, 2012, cap. 16. Tradução de Marcia Blasques.)
Mesmo tendo Martin inserido essa fala de Xaro, penso ser este o ponto da profecia mais frágil em seu cumprimento por Daenerys, por enquanto. Sou aberto à ideia, porém, que a Luminífera possa estar relacionada com a espada Alvorada, da Casa Dayne. Não me parece ser coincidência que Areo Hotah tenha sido desde o começo inserido como um personagem POV (e até agora não ter mostrado coisas de grande relevância), e que em The Winds of Winter ele esteja perseguindo Gerold Dayne. Presumo que informações importantes a respeito de Alvorada (e talvez também dos eventos da Torre de Alegria) serão reveladas nos capítulos do guardião.
A relação de Daenerys com os outros pontos proféticos menos comuns é natural. A questão das três cabeças do dragão é mencionada por Aemon justamente tendo Daenerys como uma delas. Ela obviamente é do sangue do dragão, e também é da linhagem de Aerys II Targaryen e Rhaella, sendo propriamente filha do casal. A possibilidade de “refazer” o mundo, como menciona Benerro, já se encontra, em certa medida, em andamento. Daenerys de fato já empreendeu mudanças drásticas na configuração política e social em Essos: a conquista na Baía dos Escravagistas se fez sentir não apenas naquela região, mas em todo o continente. Sua chegada a Westeros tampouco será pacífica, ao que tudo indica. A “canção de gelo e fogo” permanece inexplicada, bem como um possível triunfo ou não sobre a escuridão.
A identidade masculina para o herói era presente dentro do universo, com a menção a um “Príncipe” e não a uma “Princesa”, mas isso foi quebrado por um personagem na própria história: Aemon, que Martin faz força para apresentar como o personagem mais sábio dos Sete Reinos. O meistre tem uma epifania no leito de morte, sobre um erro milenar na tradução que prejudicou a identificação da figura prometida por conta de seu gênero.
Cabe aqui, ainda, mencionar mais um ponto que pode ou não estar relacionado com a profecia de Azor Ahai, mas que é mencionado várias vezes por Melisandre (familiarizada com as profecias): o sangue de rei para “acordar o dragão de pedra”. A sacerdotisa menciona essa magia várias vezes durante ao longo dos livros. A princípio, usa o sangue de Edric Storm, bastardo reconhecido do falecido Rei Robert, para uma demonstração de seu poder (supostamente para causar as mortes de Balon Greyjoy, Robb Stark e Joffrey Baratheon).
Como as mortes se concretizam (apesar de não se saber se Melisandre apenas as previu nas chamas e teatralmente fingiu serem obra sua), Stannis passa a acreditar no poder mágico desse sangue, e com isso a sacerdotisa tenta convencê-lo a sacrificar o garoto para acordar o tal dragão. Posteriormente, Jon Snow desconfia que ela possa querer usar tanto o sangue de Aemon (filho do Rei Maekar) quanto o do “príncipe selvagem” (filho do Rei Para-lá-da-Muralha Mance Rayder). Provavelmente Shireen Baratheon será sacrificada partindo mesmo princípio.
Por Mance Rayder nota-se, portanto, que o conceito de “rei” não se aplica apenas a sociedades organizadas monarquicamente, aparentemente cabendo também a um líder único de um grande grupo de pessoas. Não se sabe ao certo se o sangue de rei realmente tem algum poder, mas o fato é que no evento mágico no mar Dothraki, Drogo, um Khal dos dothraki, teve seu corpo sacrificado por Daenerys. Melisandre, obviamente, ignora esse fato.
Os outros dois personagens que podem ser identificados como Azor Ahai renascido diante do filtro da Fantasma de Coração Alto, Jon Snow e Aegon Targaryen, ainda não cumpriram satisfatoriamente muitos dos pontos em questão. No caso de Aegon, o primeiro problema que se afigura é relativo a sua identidade: é questionável que Jovem Griff seja mesmo o filho de Rhaegar, que teria sobrevivido ao Saque de Porto Real e criado em Essos.
Não vou me delongar neste artigo sobre as possíveis identidades do rapaz, me atendo a afirmar que acredito que ele é não quem diz ser (ainda que ele mesmo acredite nisso). Logo, não pertencendo à linhagem de Aerys e Rhaella, seria impossível que ele cumprisse o requisito estabelecido pela Fantasma de Coração Alto e fosse Azor Ahai renascido. Para quem se interessar, uma boa compilação da teoria a esse respeito pode ser encontrada aqui. Ainda que se admita que ele é mesmo Aegon, os únicos pontos a seu favor seriam pertencer à linhagem e o cometa no céu no momento de sua concepção (e não nascimento, ressalte-se). Além disso, o personagem não realizou nenhum ato, que seja do conhecimento do leitor, que possa ser identificado com a profecia, à exceção de sua concepção sob um cometa.
Resta Jon Snow, que é tido por muitos, especialmente depois dos eventos recentes de Game of Thrones (em que ele foi alçado praticamente ao status de protagonista heroico central), como indubitavelmente Azor Ahai renascido. Devemos, entretanto, verificar como (e se) ele poderia cumprir os pontos das profecias. Importante ressaltar que Jon não teve, pelo menos ainda, um evento mágico único do calibre do renascimento dos dragões, em que grande parte dos pontos poderiam ser interpretados como cumpridos. O que podemos fazer é observar se os pontos proféticos podem ainda podem ocorrer, ou não.
O longo verão, como já verificado pelas passagens de Cressen, já ocorreu. Tecnicamente, portanto, é possível que esse ponto seja cumprido, ainda que o outono, a estação posterior ao verão, também já tenha terminado (de forma bastante rápida) e o próprio inverno já chegado a Westeros no ano 300.
Se a estrela vermelha sangrante da profecia for mesmo um cometa, como acreditava Rhaegar (e também Melisandre e Aemon), esse seria um ponto prejudicado, visto que ele já não mais está presente no céu. Além de terem cessado as menções dos personagens ao cometa ao longo dos livros, uma passagem de A Dança dos Dragões indica indiretamente que ele não está mais visível (visto que Salladhor o utiliza como um exemplo de um evento que não se sabe quando vai acontecer novamente):
Quando Davos tentou assegurar que ele teria seu pagamento, Salla irrompeu.
– Quando? Quando? Amanhã, na lua nova, quando o cometa vermelho aparecer de novo? Ele me prometeu ouro e pedras preciosas, sempre prometendo, mas nunca vi esse ouro. Ele deu sua palavra, me diz, ah, sim, sua real palavra, e por escrito. Salladhor Saan pode comer as palavras do rei? Pode aplacar sua sede com pergaminhos e selos de cera? Pode derrubar promessas em um colchão de penas e fodê-las até gritarem?
(MARTIN, George R. R. Davos I. A Dança dos Dragões. São Paulo: Leya, 2012, cap. 9. Tradução de Marcia Blasques.)
É claro que isso não é uma evidência categórica de impossibilidade de cumprir esse ponto da profecia. É, afinal, plenamente possível que Rhaegar, Melisandre e Aemon estivessem errados sobre o fato de um cometa ser a estrela vermelha sangrante da profecia. É possível até que essa interpretação seja mesmo correta, e que um novo cometa ainda apareça no céu durante os eventos dos próximos livros de As Crônicas de Gelo e Fogo.
A reunião das forças da escuridão se aplica tão bem ao caso de Jon quanto ao de Daenerys, mas quanto a Snow não é possível, pelo menos ainda, estabelecer um momento satisfatório que cumpra a questão do renascimento em meio a fumaça e sal. Os proponentes da hipótese de Jon como o herói prometido, porém, costumam levantar a possibilidade de que o próprio atentado a ele, que resultou em sua morte, tenha sido esse momento de renascimento.
A ideia é que a fumaça seria representada pelo vapor emanado de suas feridas, as lágrimas de Bowen Marsh forneceriam o sal, e a estrela sangrante seria o uniforme ensanguentado de Sor Patrek da Montanha do Rei. É uma interpretação que não considero ter muita força, porém. Primeiro, porque esse é momento da morte de Jon, e não um momento mágico ou sequer de sua volta à vida. Segundo, porque Sor Patrek, por exemplo, foi inserido em A Dança dos Dragões em decorrência de uma aposta de George R. R. Martin, torcedor dos New York Giants com um amigo, torcedor dos Dallas Cowboys (cujo símbolo é uma estrela prateada em um campo azul, exatamente como o brasão do cavaleiro). Considero improvável que Martin fosse inserir o cumprimento de uma profecia por meio de um personagem cuja presença nos livros foi uma eventualidade não planejada.
Não tendo Jon tampouco retirado do fogo alguma espada flamejante ou renascido dragões de pedra, se conclui que ele, pelo menos ainda, não atende aos requisitos proféticos de forma satisfatória. Isso não significa, porém, que ele possa ser descartado como possível Azor Ahai renascido: ainda é plenamente possível que ele cumpra futuramente os requisitos de formas menos “forçadas” do que as atualmente sugeridas.
Além disso, a aparente obsessão de Rhaegar Targaryen, seu pai, pela profecia, é um ponto aparentemente crucial para toda a história, que não pode ser ignorado. Relevante também uma passagem de A Dança dos Dragões, em que ele sonha que mata selvagens aparentemente mortos-vivos:
Naquela noite, sonhou com selvagens berrando da floresta, avançando com o choro dos berrantes de guerra e o rufar de tambores. Bum BUM bum BUM bum BUM, veio o som, como mil corações em uma única batida. Alguns tinham lanças, alguns tinham arcos e alguns carregavam machados. Outros andavam em carruagens feitas de ossos, puxadas por grupos de cães tão grandes quanto pôneis. Gigantes arrastavam-se pesadamente entre eles, doze metros de altura, com marretas do tamanho de carvalhos. – Permaneçam firmes – Jon Snow exortou. – Vamos mandá-los embora. – Estava no topo da Muralha, sozinho. – Fogo – gritou –, joguem fogo neles –, mas não havia ninguém para prestar atenção.
Todos se foram. Eles me abandonaram.
Flechas incendiárias assobiaram para cima, arrastando línguas de fogo. Irmãos espantalhos caíram, seus mantos negros em chamas. Snow, uma águia gritou, enquanto inimigos escalavam o gelo como aranhas. Jon estava com uma armadura de gelo negro, mas sua lâmina queimava vermelha em seu punho. Conforme os mortos chegavam ao topo da Muralha, ele os enviava para baixo, para morrer novamente. Matou um ancião e um garoto imberbe, um gigante, um homem magro com dentes afiados, uma garota com grossos cabelos vermelhos. Tarde demais, reconheceu Ygritte. Ela se foi tão rápido quanto aparecera.
O mundo se dissolveu em uma névoa vermelha. Jon esfaqueava, fatiava e cortava. Atingiu Donal Noye e tirou as vísceras de Dick Surdo Follard. Qhorin Meia-Mão caiu de joelhos, tentando,
em vão, estancar o fluxo de sangue do pescoço.
– Sou o Senhor de Winterfell – Jon gritou. Robb estava diante dele agora, o cabelo molhado com neve derretida. Garralonga cortou sua cabeça fora. Então, uma mão enrugada segurou Jon pelo ombro. Ele se contorceu…
(MARTIN, George R. R. Jon XII. A Dança dos Dragões. São Paulo: Leya, 2012, cap. 58. Tradução de Marcia Blasques.)
Em resumo, das três únicas possíveis identidades para Azor Ahai renascido – Aegon, Jon Snow e Daenerys – ela é até o momento, inquestionavelmente, a personagem com com mais atos e eventos que podem ser identificados com o cumprimento da profecia. O que não significa que se possa dizer categoricamente que ela é mesmo o herói profetizado.
Até o momento, nossa análise sobre Azor Ahai ficou bastante restrita a uma perspectiva de dentro do universo, baseada no que os personagens dos livros dizem e na mitologia apresentada por eles. A partir de agora, a proposta é expandir nossos comentários para uma visão externa, e analisar a questão por um prisma das possíveis intenções de George R. R. Martin para a história.
O leitor, mesmo depois da extensa revisão, pode continuar se perguntando: “Tudo bem, eu já sabia disso tudo, ainda que talvez tivesse esquecido algumas partes, mas qual é a novidade aqui? É o fato de Daenerys ter cumprido as profecias que faz o autor acreditar nela como Azor Ahai renascido?” A resposta é “não”. O ponto central que me faz acreditar nessa hipótese é o potencial que ela representa para uma desconstrução do arquétipo clássico do herói messiânico.
Em As Crônicas de Gelo e Fogo, Martin tem por tendência (e intenção) desconstruir ou no mínimo subverter alguns estereótipos, tropes e clichês clássicos da fantasia. Trata-se, sem dúvida, de uma história de fantasia épica, com construção de um universo grandioso, mas muito mais focada na psicologia dos personagens do que geralmente ocorre com outras obras desse tipo. De saída, Martin rejeita a ideia de uma grande conflito entre o bem e o mal, por exemplo. O autor já declarou diversas vezes que o que mais lhe interessa é o “coração humano em conflito consigo mesmo”, e, nesse sentido, a escolha por contar a história pelos pontos de vistas dos personagens faz todo sentido.
O argumento central que me faz crer em Daenerys como Azor Ahai renascido, é que, diante dessa tendência desconstrutiva da fantasia clássica por parte de Martin, considero ser bastante improvável que As Crônicas de Gelo e Fogo contenham o arquétipo messiânico clássico, o “escolhido” no molde tradicional: um herói reto, justo, um líder nato, com habilidade marcial individual, altruísta e que tenha o bem e a sobrevivência da humanidade como objetivo precípuo desde o começo de sua jornada. Um herói que se descubra como o grande salvador da humanidade e abrace tranquilamente esse papel.
Além de não ser condizente com o costume estabelecido por Martin, de distorção de estereótipos tradicionais, isso significaria também uma heroicização excessiva de um personagem em específico, o que também contrariaria a tendência à rejeição da costumeira dicotomia “bem e mal” por parte do autor, e sua tentativa de imprimir tons de cinza em suas criaturas.
Analisemos, então, como Daenerys Targaryen representaria uma desconstrução desse arquétipo histórico. De saída, ela é uma mulher, o que já representa uma quebra com o padrão tradicional do herói, que no maior das vezes é do gênero masculino (principalmente levando em conta que essa história começou a ser escrita por Martin no começo da década de 1990). Essa identificação “automática” de um homem como o grande herói existe, a princípio, até mesmo dentro do próprio universo: a profecia mencionou durante milênios um “Príncipe”, até que um personagem (estabelecido como o mais sábio) tem uma epifania em seu leito de morte e conclui que ela pode se aplicar também a uma mulher.
Daenerys tampouco é uma guerreira em sentido estrito (não tem habilidade própria de luta ou no manuseio de armas), o que geralmente também é um traço clássico do “escolhido”. Esse ponto geralmente é suscitado para se argumentar contrariamente à possibilidade de ela ser o herói profetizado: “Daenerys não sabe manusear uma espada, como é que pode ser Azor Ahai?”. A verdade é que a ideia de que o grande líder tem necessariamente de ter habilidade marcial individual superior é uma condição apenas aparente, advinda justamente do costume de os grandes heróis das lendas e da ficção ostentarem esse traço. A rigor, porém, em um mundo mais realístico, essa necessidade inexiste, e a própria Daenerys, em As Crônicas de Gelo e Fogo, é prova disso: ela tem multidões de seguidores mesmo sem essa habilidade (e digo isso não para exaltá-la, mas como mera constatação de fato).
Quanto a ser reta e justa, a personagem pessoalmente (e muitos fãs dela) acreditam que sim, mas esse aspecto da personalidade dela é altamente questionável. Daenerys tem “acessos” de fúria e até crueldade em alguns momentos, e frequentemente confunde justiça com vingança. O episódio da crucificação dos 163 Grandes Mestres de Meereen é especialmente emblemático nesse sentido, assim como a autorização de tortura de inocentes para se obter informações em uma investigação. Não convém, tampouco, esquecer que ela vem de um família notoriamente tendente à loucura, tendo um pai e (no mínimo) um irmão acometidos pela insanidade.
Daenerys é, principalmente depois de A Dança dos Dragões, fogo e sangue. Como Adam Feldman apontou em sua série de ensaios Untangling the Meereenese Knot (que o próprio George R. R. Martin disse ser acertada), a estadia da personagem em Meereen representa uma busca por paz, pela responsabilidade que ela julga ter com a cidade. Ela vem à custa de suprimir seus impulsos e desejos, ceder a pressões políticas, fazer sacrifícios, para quando finalmente a paz é atingida, ao invés de satisfação, Daenerys sentir frustração.
Em decorrência dessa frustração, a personagem quebra essa tentativa de (em termos rasos) “ser quem não é”, para finalmente abraçar de forma definitiva o lema de sua Casa, passando agora a buscar seus próprios objetivos por seus próprios métodos violentos. O objetivo principal de Daenerys, portanto, não é altruísta ou o bem da humanidade: ela quer tomar o que é seu, doa a quem doer. (FELDMAN, Adam. Untangling the Meereenese Knot, Part IV: a Darker Daenerys. 2012.)
Não seria a primeira vez que haveria um Messias “maculado” em obras de fantasia: em A Roda do Tempo, por exemplo, o “Dragão Renascido” é também uma figura heroica profetizada que quebra e salva a humanidade ao mesmo tempo. Naquele universo, criado por Robert Jordan, amigo de Martin (que o homenageou duas vezes em As Crônicas de Gelo e Fogo), uma série de profecias sobre o retorno do Dragão (que é uma pessoa, não um animal) inclui a seguinte passagem:
E há de chegar o dia em que as obras dos homens serão destruídas, e a Sombra cairá sobre o Padrão da Era, e a mão do Tenebroso desabará mais uma vez sobre o mundo dos homens. As mulheres verterão lágrimas, e os homens tremerão quando as nações da Terra forem despedaçadas como trapos. Ninguém se oporá ou lutará.
Mas alguém virá para enfrentar a Sombra, nascido outra vez, como nasceu antes e nascerá novamente, vezes sem-fim. O Dragão Renascerá, e seu retorno será acompanhado de choro e ranger de dentes. Ele cobrirá o povo em cinzas e aniagem e causará uma nova Ruptura do Mundo, destruindo todas as correntes que o prendem. Como a aurora libertadora, ele nos cegará e nos queimará, mas o Dragão Renascido enfrentará a Sombra na Última Batalha, e seu sangue nos trará a Luz. Deixai que as lágrimas escorram, Ó povo do mundo. Chorai por vossa salvação.
(JORDAN, Robert. A Grande Caçada. São Paulo: Intrínseca, 2014. Tradução de Fábio Fernandes e Júlia Henriques.)
As profecias de Azor Ahai se iniciam de forma bastante similar a essa, e as palavras de Benerro, nesse sentido, podem encerrar mais do que aparentam sobre esses possíveis objetivos de Martin, quando ele diz que Azor Ahai “refará o mundo”. Em The Forsaken (“O Abandonado”), capítulo de Aeron Greyjoy em The Winds of Winter, essa ideia de destruição e refazimento do mundo está novamente presente, de forma muitíssimo similar à da obra de Jordan:
– A estrela sangrante pressagiou o fim – disse a Aeron. – Estes são os últimos dias, quando o mundo deverá ser quebrado e refeito. Um novo deus deve nascer dos túmulos e covas.
Então Euron levou um grande berrante aos lábios e soou, e dragões e lulas gigantes e esfinges vieram a seu comando, e se curvaram perante ele. – Ajoelhe-se, irmão – ordenou o Olho de Corvo. – Sou seu rei, sou seu deus. Venere-me, e o erguerei como meu sacerdote.
(MARTIN, George R. R. The Forsaken (“O Abandonado”). 2016. Tradução minha.)
Acredito, porém, que Martin iria além de Jordan, afinal o Dragão Renascido daquela obra tem consciência de seu papel desde o primeiro livro (apesar de o modo como ele lida com isso ser também um dos pontos principais de toda a série de 14 volumes). Como já dito, a presença da Rainha Targaryen em Essos representou um mudança brutal em todo o continente, que já está em grande parte modificado em relação ao status do começo da série de livros. A chegada de Daenerys a Westeros tampouco será pacífica e tranquila: haverá, literalmente, fogo, sangue, choro e ranger de dentes para que ela conquiste o que (julga ser) seu por direito. Sem qualquer juízo de valor, seja para o bem ou para o mal, o mundo de As Crônicas de Gelo e Fogo já está sendo refeito por Daenerys Targaryen e seus dragões.
E, nesse mote de desconstrução, não haveria qualquer problema no fato de os indícios sobre o cumprimento das profecias apontarem para Daenerys como Azor Ahai renascido: o “xis da questão” não residiria na identidade do herói, mas nas reações dos personagens à revelação dessa identidade, incluindo a própria personagem-alvo, e na apresentação de um “Messias” com consequências mais realísticas. Um dos grandes argumentos contrários à possibilidade de Daenerys ser Azor Ahai renascido é que seria “óbvio demais”, dada justamente a quantidade de pontos relacionados à profecia que a personagem aparentemente já cumpriu.
Cumpre, primeiramente, dizer que não existe qualquer necessidade de que a identidade de Azor Ahai renascido seja um mistério guardado a sete chaves até o último dos momentos nos livros ou um plot twist. Essa revelação tem de ocorrer em algum momento, para que seja desenvolvida, e As Crônicas de Gelo e Fogo são uma série de sete livros, dos quais cinco já foram escritos. Analisando-se por uma perspectiva da obra como um todo, uma revelação a essa altura não seria nada absurda.
O foco nas reações a uma profecia não é exatamente novidade nos livros: quando introduziu os capítulos sob o ponto de vista de Cersei Lannister, por exemplo, Martin trouxe também uma profecia relativa a ela em sua infância, que se prova muito influente em sua psicologia. Até mesmo a questão quanto à questão do Príncipe Prometido esse foco já é observável: Stannis é identificado a partir de Fúria como o herói, e tanto ele mesmo quanto Melisandre, Selyse e os demais seguidores de R’hllor em Westeros acreditam nisso, até o presente momento em Dança. É essa crença em um papel mágico próprio em relação à humanidade que muito provavelmente o fará, em última instância, sacrificar a própria filha, por exemplo.
Daenerys, assim, envolvida em uma jornada pessoal por poder eminentemente político, ignora completamente a ameaça dos Outros à humanidade como um todo ou um possível papel profético que poderia ter. Enquanto algumas pessoas presumem que essa ignorância (e distância geográfica) do grande perigo ao Norte de Westeros seria um indicativo de que o arco dela não está relacionado com isso (e que o papel do herói salvador caberia a alguém já está envolvido com essa batalha desde o começo, como Jon Snow), entendo eu que é exatamente o contrário. Esse seria um dos intuitos de Martin: um herói profetizado que ignore completamente seu papel como tal e que, antes de trazer a salvação para a humanidade, cause também destruição por onde passa.
No caso de Daenerys, poderia ocorrer o contrário do que ocorre com Stannis: a personificação do herói prometido não saberia desse seu papel. Após o dosh khaleen ter previsto que seu filho Rhaego seria “Garanhão que monta o mundo” e ele ter morrido, ela parece ter ficado um tanto desconfiada de profecias, o que significa que ela possivelmente pode até rejeitar o papel de heroína salvadora, se algum personagem a identificar pessoalmente como tal:
– Somos um povo antigo. Ancestrais são importantes para nós. Case-se com Hizdahr zo Loraq e tenha um filho dele, um filho cujo pai é a harpia e cuja mãe é o dragão. Nele, as profecias serão cumpridas, e seus inimigos derreterão como neve.
Ele será o garanhão que vai montar o mundo. Dany conhecia profecias. São feitas de palavras, e palavras são vento. Não haveria um filho para Loraq, nenhum herdeiro para unir dragão e harpia. Quando o sol nascer no oeste e se puser no leste, quando os mares secarem e as montanhas forem levadas pelo vento como folhas. Somente então o ventre dela despertaria uma vez mais…
(MARTIN, George R. R. Daenerys IV. A Dança dos Dragões. São Paulo: Leya, 2012, cap. 23. Tradução de Marcia Blasques.)
Quando se diz que seria “óbvio demais” que Daenerys fosse Azor Ahai pelo fato de muitas passagens indicarem isso para o leitor, a sugestão é que isso tudo seria um grande red herring da parte de Martin. E, nessa hipótese de o autor estar na verdade levando o leitor a uma conclusão falsa, apenas duas alternativas se afigurariam para situação de Azor Ahai: ou nenhum personagem seria o herói prometido, ou ele seria Jon Snow (diante dos critérios objetivos que estabelecemos anteriormente). Não descarto essas possibilidades, mas sou reticente em relação a elas por alguns motivos, que explico a seguir.
Primeiro, o caso de Jon Snow: inquestionavelmente Jon tem um papel muitíssimo central no plano maior de As Crônicas de Gelo e Fogo, isso é bastante evidente. Minha reticência em relação a ele como Azor Ahai, porém, reside no fato de o personagem ser muito classicamente heroico e moralmente reto (muito mais do que Daenerys, a alternativa). A despeito de também não ser “puríssimo” (tendo quebrado votos, por exemplo), mesmo seus atos questionáveis têm como objetivo o bem de alguém, e ele definitivamente não apresenta momentos de crueldade ou fúria vingativa sanguinária.
Jon se apresenta praticamente como uma versão 2.0 de seu pai Eddard Stark, a nível moral, e vai ainda além em outras características heroicas clássicas. É um herói homem, com boa habilidade marcial individual, boas capacidades de liderança (apesar de não ser unânime), razoavelmente altruísta, e, principalmente, consciente e preocupado desde o início da história com o “bem maior” da humanidade: a grande batalha contra os Outros.
Como rejeito a possibilidade de que Azor Ahai renascido seja um Messias clássico, me é difícil acreditar que Jon Snow, que pelo menos atualmente personifica bastante o herói “ideal”, possa ser essa figura. Além disso, também não sou afeito à ideia de que Martin decidisse eliminar Eddard, o herói aparente, da história ainda no primeiro livro, (também em uma desconstrução de trope), para que depois uma versão “melhorada” dele fosse mesmo ser o grande herói de sua saga. Se o fator “obviedade” for mesmo um problema, acredito que um personagem com características heroicas a toda vista ser mesmo o cumpridor da profecia seria algo muito mais mais óbvio e “clichê” do que alguém com moral questionável (e causador de destruição) ser, no fim, o salvador da humanidade.
E por que digo que não rejeito Jon Snow categoricamente, a despeito de ele até agora não cumprir os pontos proféticos? Será só para não desagradar as hordas furiosas de fãs do personagem? Também não. Um dos motivos é que o mistério envolvendo a paternidade e a maternidade de Jon é inquestionavelmente um dos pontos centrais de toda a série, e a obsessão de Rhaegar pela profecia do Príncipe que foi Prometido é notória. E há ainda uma possibilidade de que ele também possa representar uma desconstrução do herói ideal em algum momento.
Martin já por diversas vezes demonstrou rejeitar a prática autoral de trazer personagens de volta dos mortos como se nada tivesse ocorrido, como na seguinte entrevista:
Acredito que se você traz um personagem de volta, que se um personagem passou pela morte, essa é uma experiência transformadora. Mesmo lá atrás, na época do Wonder Man e tudo aquilo, adorei o fato de que ele morreu, e apesar de ter gostado do personagem em anos posteriores, não fiquei muito animado quando ele voltou porque isso meio que desfez o poder da coisa. Por mais que admire Tolkien, mais uma vez senti que Gandalf deveria ter continuado morto. Aquela foi uma sequência tão incrível na Sociedade do Anel, quando ele enfrenta o Balrog em Khazad-dûm e cai no abismo, e suas últimas palavras são “Fujam, seus tolos.”
Que poder aquilo teve, como aquilo me pegou. E então ele volta como Gandalf, o Branco, e, se ele teve alguma mudança, foi meio que para melhor. Eu nunca gostei de Gandalf, o Branco, tanto quanto de Gandalf, o Cinzento, e nunca gostei que ele tenha voltado. Acho que teria sido uma história ainda mais forte se Tolkien o tivesse deixado morto.
Meus personagens que voltam da morte estão em más condições. De certa forma, eles nem são mais os mesmos personagens. O corpo pode estar se movendo, mas algum aspecto do espírito foi modificado ou transformado, e eles perderam algo. Um dos personagens que voltou repetidamente da morte é Beric Dondarrion, o Senhor do Relâmpago. A cada vez que ele é revivido ele perde um pouco mais de si mesmo. Ele foi enviado em uma missão antes de sua primeira morte. Ele foi enviado em uma missão para fazer uma coisa, e, assim, é a isso que ele se agarra. Ele está se esquecendo de outras coisas, ele está se esquecendo de quem é, ou de onde viveu. Ele se esqueceu da mulher com quem deveria se casar. Sua carne está se soltando, mas essa única coisa, esse propósito que ele tinha é parte do que o está animando e o trazendo de volta à morte. Acho que se vê ecos disso nos outros personagens que voltaram da morte.”
(SMITH, Julia. George R. R. Martin, Author of “A Song of Ice and Fire” Series: Interview on The Sound of Young America. Bullseye with Jesse Thorn. Maximum Fun. Novembro de 2011. Tradução minha.)
Em razão dessa declaração de Martin e de outras do autor na mesma linha, tomo como certo que o Jon que retornará da morte em As Crônicas de Gelo e Fogo será bastante diferente do personagem anterior (ao contrário do que ocorre em Game of Thrones, em que a consequência foi apenas a troca do penteado para um mais em voga no mundo real, o coque). Essa conclusão somada à premissa (não-comprovada, admito) de que a figura do Azor Ahai não será um herói totalmente “da luz”, me faz crer que Jon possa também, depois de sua morte e retorno à vida, apresentar um “lado escuro”, o que o faria se encaixar muito bem na possível desconstrução do arquétipo.
A outra alternativa a Daenerys ser Azor Ahai renascido seria a de que na verdade tudo o que foi apresentado nos livros até o momento a respeito de profecias de um herói prometido e salvador ser um grande red herring, uma enorme pista falsa por parte de George R. R. Martin, para que no final essa figura reencarnada não existisse, não em uma desconstrução do trope, mas uma subversão.
A ideia ganha força quando o Arquimeistre Marwyn, por exemplo, diz que conhece a profecia, mas que isso não significa que confiaria nela. Ou quando vários personagens falam de forma derrisória sobre o conceito de profecias em geral, e ainda com o próprio Martin declarando em entrevistas que gosta de “brincar” com esse recurso narrativo.
É claro que quando reflito sobre essa hipótese de ninguém ser Azor Ahai não penso que as coisas seriam simplesmente deixadas por isso mesmo, confio o suficiente na capacidade de Martin como autor para saber que ele procuraria dar algum destino à situação como um todo. Por outro lado, ossa revisão de menções sobre o assunto nos livros mostra que elas não foram poucas, e muito pelo contrário: não só Azor Ahai, o Príncipe que foi Prometido e outras profecias relacionadas continuaram a ser mencionados livro após livro da série principal, como também a figura se fez presente em O Mundo de Gelo e Fogo. Assim, o que me faz custar a acreditar na hipótese é o fato de que o autor já foi muito longe com toda essa trama para que ela simplesmente signifique que não haja na verdade esse herói prometido.
A aparente aparente obviedade para o leitor, até o momento, quanto a ser Daenerys a personificação do herói profetizado, portanto, só é um problema se se presume que esse herói seja um salvador imaculado, o que à primeira vista pode parecer ser o caso, mas algo em que definitivamente não acredito, pelas tendências narrativas de Martin. Assim, essas passagens acabam servindo, em meu entender, como ponto de “desempate” a favor de Daenerys: os pontos aparentemente explícitos sobre ela ter cumprido as profecias já me parecem fortes demais para serem depois descartados como mero red herring.
A epifania de Aemon, principalmente, me parece muito reveladora para ser descartada. Ressalte-se que essa revelação súbita, a que só o leitor teve acesso (à exceção de Samwell), foi importante o suficiente para que Martin desviasse a rota dos personagens até Braavos e dedicasse capítulos inteiros a uma expedição que poderia ser contada tranquilamente por flashbacks. Assim, considero tudo o que envolve essa epifania muito elaborado pelo autor para que no fim se trate de um red herring, o que significaria que tudo essa conclusão de Aemon teria sido inútil.
Como se vê, não sou convicto da hipótese de Daenerys ser o herói renascido de forma 100% categórica (como acreditava sem qualquer dúvida, antes da confirmação via Game of Thrones, que Jon era filho de Rhaegar e Lyanna, por exemplo). A identificação dela como Azor Ahai renascido é uma conclusão a que cheguei não por preferência ou por desejo pessoal, mas tentando colocar na balança todas as situações apresentadas nos livros e o que presumo serem as motivações do autor em sua fantasia épica.
Revisamos, portanto, todas as menções a Azor Ahai e o Príncipe que foi Prometido no cânone de Gelo e Fogo, e analisamos os requisitos que as profecias apresentadas no texto mencionam para o retorno desse herói. Verificamos que personagens dentro do universo, em diferentes momentos, identificaram em Rhaegar Targaryen, Aegon Targaryen, Stannis Baratheon e Daenerys Targaryen a personificação do herói profetizado.
Concluímos que, diante de uma profecia que delimita o Príncipe como pertencente à linhagem de Aerys II e Rhaella, apenas Daenerys, Jon Snow e Aegon “Jovem Griff”, sendo este praticamente descartado pela grande possibilidade de não ser de fato filho de Rhaegar. Analisando as evidências textuais até A Dança dos Dragõesi, notamos que os livros, até o momento indicam Daenerys tendo cumprido grande parte da profecia, seja literal ou metaforicamente, o que não se aplica aos outros dois.
Em um exercício especulativo das intenções do autor, baseado em sua tendência de desconstruir tropes e clichês, apresentei a ideia de uma desconstrução do arquétipo do herói messiânico, no que é o ponto crucial da análise e o “porquê” que dá título ao artigo: acredito ser muito improvável que o suposto “salvador” nessa história seja um líder imaculado. Um suposto fator “obviedade” (pelo fato de um personagem se encaixar nos pontos proféticos), nesse sentido, não seria o empecilho que pode parecer à primeira vista.
Nesse contexto, entraria Daenerys, personagem com um “lado escuro” claramente presente, e que, envolvida em sua própria cruzada individual por poder, seria ignorante do papel profetizado que tem a desempenhar na luta contra o inimigo comum, e, tendo abraçado as palavras de sua Casa Targaryen, traria fogo, sangue e destruição à humanidade antes de salvá-la.
Ressalto que o artigo não tem a intenção de ser uma conclusão categórica, mas de expor uma visão sobre a profecia e seu cumprimento que vai além de uma mera ligação de pontos para se concluir quem será um herói protagonista imaculado (ainda que tenhamos que analisar o cumprimento de uma profecia de forma crua). A despeito de grande parte do texto consistir em revisão de passagens dos livros, isso é apenas uma das partes da conclusão, que também se deve em muito por uma análise das intenções maiores do autor em relação à fantasia.
Assim, ainda que a conclusão da “identidade” esteja errada no final das contas, seja pela revelação de que outro personagem é na verdade o herói prometido, ou por essa figura profética sequer existir na prática (no que seria um grande red herring por parte de Martin), acredito que pelo menos a racionalização para se chegar a essa conclusão possa ter algum valor e estar relacionada ao que vai ocorrer nos livros de Martin.
No fim, mesmo que o leitor discorde da conclusão ou mesmo da linha de raciocínio, penso que o artigo pode no mínimo trazer para reflexão a ideia de que a figura de Azor Ahai e o Príncipe que foi Prometido seja um salvador sacrossanto lutando contra as “forças do mal”, sem tons de cinza, não condiz muito com As Crônicas de Gelo e Fogo. Não consigo ignorar a fala de Martin sobre “o coração humano em conflito consigo mesmo” ser um tema central em sua série de livros.