O fandom de As Crônicas de Gelo e Fogo não vive apenas de teorias sobre o futuro do enredo. Os leitores também especulam sobre eventos que já aconteceram nos livros, e tentam explicá-los de formas diferentes do que é apresentado à primeira vista. Uma das teorias mais populares nesse sentido é a de que Tywin Lannister estaria sendo envenenado por Oberyn Martell quando foi morto por Tyrion – o que explicaria o forte mau cheiro que seu cadáver exala posteriormente.
Pessoalmente, considerei a teoria como possível a princípio, mas ao longo do tempo mudei de opinião. Não que eu fosse completamente convicto de que ela fosse verdadeira, mas a considerava uma possibilidade plausível e interessante. Posteriormente, porém, comecei a achá-la improvável por algumas passagens dos livros. Hoje, somando isso a uma declaração relativamente recente de George R. R. Martin, a rejeito. A seguir, explico as razões para isso.
Não vou me estender muito nas explicações da teoria neste artigo (existe um post nosso que traz as passagens que a fundamentam), mas basicamente a ideia é a de que o fedor do cadáver de Tywin Lannister não era natural, e sim causado por veneno administrado por Oberyn Martell.
O objetivo de vingança de Oberyn e dos Martell contra Tywin Lannister – pelo assassinato de Elia – é algo que fica claro ao longo dos livros. O próprio Víbora Vermelha insinua para Tyrion que pretende matar o pai dele em algum momento. O dornês é um notório envenenador, também. Quando tinha dezesseis anos, foi confrontando por Edgar Yronwood em um duelo; os dois saíram feridos, mas só os ferimentos de Yronwood supuraram e o levaram à morte. Mais tarde, Gregor Clegane também é vítima do veneno da Víbora.
Os propositores da teoria também tentam fazer uma ligação entre o fato de Tywin estar na privada e o mau cheiro que emana de suas entranhas com um veneno descrito por Pycelle. O fortíssimo e anormal fedor posterior do cadáver é interpretado como outro indício de que algo a mais estaria em ação. Além disso, há uma passagem no texto que indica que Tywin fez uma refeição com Mace Tyrell e Oberyn. O Víbora Vermelha teria, portanto, o motivo, os meios e a oportunidade para envenenar Tywin.
Ao se ler as explicações simples para meios, motivo e oportunidade, a teoria é realmente atrativa, mas as coisas podem ser um pouco mais complexas do que isso. Existem passagens de As Crônicas de Gelo e Fogo que indicam que um envenenamento a essa altura não seria coerente com os planos dos Martell. Curiosamente, Sean T. Collins, um dos leitores que notoriamente promoveu a teoria, juntou também essas passagens que a contrariam.
Falas de Doran Martell revelam que a vingança que ele e Oberyn queriam empreender tinha prazo longo, e que os irmãos realmente trabalhavam juntos, embora pudesse não parecer assim à primeira vista. Em suma, elas indicam que seria contraproducente Oberyn envenenar Tywin naquele momento. A primeira passagem é de O Festim dos Corvos, no capítulo “A Princesa na Torre”, de Arianne Martell.
Um espasmo de ira percorreu o rosto do pai.
– Previno-lhe, Arianne, estou sem paciência.
– Comigo? – isso é tão típico. – Com Lorde Tywin e os Lannister sempre teve a indulgência de Baelor, o Abençoado, mas para seu sangue, nada.
– Confunde indulgência com paciência. Trabalhei para a queda de Tywin Lannister desde o dia em que me informaram sobre Elia e os filhos. Era minha esperança despi-lo de tudo o que tinha de mais querido antes de matá-lo, mas ao que parece seu filho anão roubou-me este prazer. Retiro um certo consolo em saber que morreu uma morte cruel nas mãos do monstro que ele próprio gerou. Mas não importa. Lorde Tywin uiva nas profundezas do inferno… Onde milhares irão se juntar a ele se a sua loucura se transformar em guerra – o pai fez um trejeito, como se a própria palavra lhe fosse dolorosa. – É isso que você quer?
Observa-se que Doran revela à filha que Tyrion roubou dele a possibilidade de tirar tudo de Tywin antes de matá-lo, o que era seu plano. Isso significa, portanto, que era muito cedo para um veneno que matasse Tywin, uma vez que ele e os Lannister estavam no auge do poder.
Ainda existiria, porém, a possibilidade de que Oberyn não pensasse como Doran, mas ela é refutada em A Dança dos Dragões, no capítulo “O Sentinela”, de Areo Hotah. Nesse capítulo, Doran revela para as sobrinhas, as Serpentes de Areia, que ele e Oberyn trabalhavam realmente muito próximos e conjuntamente, ao contrário do que as elas acreditavam:
Não sou cego, nem surdo. Sei que vocês acreditam que sou fraco, assustado, débil. O pai de vocês me conhecia melhor. Oberyn sempre foi a víbora. Mortal, perigoso, imprevisível. Nenhum homem ousava pisar nele. Eu era a grama. Agradável, complacente, de doce odor, balançando a cada brisa. Quem teme pisar na grama? Mas é a grama que esconde a víbora de seus inimigos e a protege até que ela ataque. O pai de vocês e eu trabalhamos muito juntos, vocês sabem… mas agora ele se foi. A questão é: posso confiar nas filhas dele para que me sirvam em seu lugar?
A tradução brasileira dessa passagem deturpou consideravelmente o texto original, que é o seguinte:
I am not blind, nor deaf. I know that you all believe me weak, frightened, feeble. Your father knew me better. Oberyn was ever the viper. Deadly, dangerous, unpredictable. No man dared tread on him. I was the grass. Pleasant, complaisant, sweet-smelling, swaying with every breeze. Who fears to walk upon the grass? But it is the grass that hides the viper from his enemies and shelters him until he strikes. Your father and I worked more closely than you know … but now he is gone. The question is, can I trust his daughters to serve me in his place?
O sentido do texto de que as Serpentes de Areia não sabiam da proximidade entre o pai e o tio foi totalmente alterado na versão brasileira. De qualquer forma, enfim, a passagem deixa claro que Oberyn e Doran realmente trabalhavam juntos, e seria improvável que a víbora estivesse envenenando o leão sem o conhecimento e a concordância da “grama”.
Em uma entrevista para o portal russo Meduza, em 2017, a pergunta e a resposta seguintes tiveram lugar:
Você já tomou algo emprestado da literatura russa? De nossos clássicos?
Tomei emprestada só uma coisa da literatura russa de que posso me lembrar, que foi a coisinha que fiz com o cadáver de Tywin Lannister, que foi tirado dos “Irmãos Karamázov”. Mas não li muita literatura russa, já que não leio russo. Na faculdade, li os clássicos: “Crime e Castigo” de Dostoiévski e “Irmãos Karamázov”, e “Guerra e Paz”, e depois li “Doutor Jivago”. Tentei ler um pouco de ficção científica russa, mas basicamente tudo o que tínhamos eram os Irmãos Strugatsky. Ao não saber russo, minha exposição ficou limitada.
É fato amplamente sabido que George usa vários elementos e recursos de outras obras na composição das tramas de As Crônicas de Gelo e Fogo. Nesse caso, a situação com o cadáver de Tywin veio de Os Irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski.
Nessa obra clássica da literatura russa, um dos personagens mais importantes é Zósima, um ancião religioso (um starets) venerado quase como um santo. Quando ele morre, seu corpo emana um mau cheiro fortíssimo, fato que é recebido com surpresa pelas pessoas, pois ele era tido como uma pessoa sagrada. Entende-se que a intenção dessa situação com o corpo de Zósima era mostrar que ele, afinal, era tão mundano como qualquer um.
Ao que parece, não é apenas o fedor do cadáver em si que Martin tomou emprestado da obra de Dostoiévski, mas também seu significado temático. Estendendo a simbologia para a situação em As Crônicas de Gelo e Fogo, o mau cheiro no cadáver de Tywin também representaria um contraste com a figura impassível e superior que ele ostentava em vida. Depois de morto, a putrefação de seu corpo deixa claro que ele na verdade não era diferente de qualquer um.
Nesse sentido, seria contraproducente para as intenções temáticas George se o fedor no cadáver fosse causado por um agente externo – um veneno de Oberyn Martell, por exemplo. O significado simbólico provavelmente pretendido para a situação seria muito enfraquecido se a putrefação não emanasse do próprio corpo de Tywin.
Esses são, então, meus motivos para considerar atualmente a teoria do veneno da víbora vermelha como improvável. É claro que a declaração de Martin não é uma refutação categórica, e exige um pouco de abstração para se analisar a questão tematicamente. Porém, se observada em conjunto com as passagens dos livros, acredito que é uma argumentação bastante sólida em contrário da hipótese.
O que acharam, leitoras e leitores? Os comentários estão abertos!