Em português, As Crônicas de Gelo e Fogo. No original, em inglês, A Song of Ice and Fire (“Uma Canção de Gelo e Fogo”). Em qualquer idioma, o título da maior obra de George R. R. Martin é objeto de debate e especulação entre os leitores. O significado do título é um assunto que merece ser analisado, e é isso o que faremos neste artigo.

Ice and Fire
Artes: Marc Simonetti, Chase Stone e Velvet Engine.

A temática do contraste entre fogo e gelo não é exclusiva de Martin, e muito menos inédita na produção cultural. Ela é encontrada em poemas, romances, biografias, documentários, filmes, jogos, músicas e todos os tipos de obras ao longo da história. E não é difícil entender o porquê: trata-se, realmente, de uma figura muito evocativa de oposição entre extremos. Mas o que esse título quer dizer na obra de Martin? O gelo e o fogo têm algum significado específico dentro da história? O que é a tal “canção”?

Neste artigo, vamos revisar tudo o que George R. R. Martin já disse a esse respeito, além de passagens dos próprios livros que falam dos elementos do título. Naturalmente, o texto também contará com alguns pontos especulativos próprios. Acompanhe conosco uma análise sobre o título de As Crônicas de Gelo e Fogo.

Canções e crônicas

Para tratar desse assunto em português, é preciso abordar primeiro a diferença entre os títulos da obra em seu idioma original e nas traduções. George R. R. Martin escolheu para sua série o nome A Song of Ice and Fire (“Uma Canção de Gelo e Fogo”), mas em português, o título é As Crônicas de Gelo e Fogo. Tentaremos especular por que houve essa alteração, além de explicar as diferenças nos sentidos de “crônicas” e “canção” nesse contexto.

Capa A Muralha Portugal
Capa da primeira edição das Crônicas de Gelo e Fogo em português, de 2002. Fonte: George R. R. Martin, site oficial.

Para entender a mudança de título, começaremos com uma pequena viagem pela história da publicação da obra em língua portuguesa. A primeira edição de um dos livros em português foi pela editora portuguesa Entre Letras, em 2002, que editou a primeira metade de A Game of Thrones com o título A Muralha. A editora planejava dar à série o título simples de O Gelo e o Fogo, mas acabou por não continuar a publicação dos livros seguintes.

Em 2005 ou 2006, a editora Saída de Emergência comprou os direitos de publicação da saga em Portugal, e publicou os primeiros livros em 2007. A tradução de A Game of Thrones – dividido em A Guerra dos Tronos e A Muralha de Gelo – e dos livros subsequentes ficou a cargo de Jorge Candeias.

A Saída de Emergência possui um fórum para discussões de seus leitores de fantasia, e, em 2007, foi criado um tópico para perguntas a Candeias. Uma leitora questionou qual seria a razão da alteração de “uma canção” para “as crónicas” no título da série. Ela perguntou se essa decisão teria partido da editora ou do tradutor. A resposta de Candeias foi a seguinte:

Foi uma opção da editora, sim.

Mas não me parece má. Notem que o significado de crónicas não é só aqueles textozinhos curtos e pessoais que aparecem nos jornais. Crónicas são também histórias em geral, muitas vezes de cariz histórico (o Fernão Lopes escreveu uma série delas), e que por vezes tomam a forma de longos poemas mais ou menos épicos, destinados a ser cantados.

Mesmo assim, lá nos idos do início da série, aqui o tradutor sugeriu usar-se canção.

O tradutor deixa claro, portanto, que tratou-se de decisão da editora, e não dele mesmo. No mesmo tópico, ele já havia esclarecido que a opção por “A Guerra” ao invés de “Um Jogo” (a tradução literal), no título do primeiro livro, também havia sido escolha do editor.

No Brasil, quem adquiriu os direitos de publicação da série foi a editora Leya, que comprou a tradução de Candeias da Saída de Emergência, e a adaptou ao português brasileiro nos quatro primeiros livros. Candeias manifestou publicamente sua insatisfação (mais de uma vez) com esse processo de adaptação, do qual ele não participou. O tradutor considera que a versão brasileira poderia ter sido muito mais polida caso ele tivesse sido consultado, dizendo também que alguns detalhes do texto original que ele se esforçou para manter foram eliminados na adaptação. A partir de A Dança dos Dragões, as publicações da Leya foram traduzidas diretamente do inglês para o português brasileiro, assinadas por Marcia Blasques.

De qualquer forma, o fato importante é que no processo de editar a versão brasileira da obra, a Leya utilizou como base a edição portuguesa. Nesse processo, também trouxe a opção editorial de alterar o título da série. As razões para a mudança no título na versão portuguesa (e, consequentemente, na brasileira) nunca foram explicadas publicamente. A hipótese mais provável porém, é que tenha se tratado de uma decisão comercial, no sentido de que as editoras buscaram um título com o qual os públicos leitores-consumidores estariam mais acostumados no âmbito das literaturas de fantasia e ficção histórica.

Manuscrito da Primeira Crónica Geral de Espanha. Fonte: Wikimedia Commons. Domínio público.

Crônicas reais e imaginárias

Como lembrou Candeias, o termo “crônica” designa mais comumente, em português, uma narração curta, geralmente publicada em veículos de imprensa. No entanto, esse não é o único significado da palavra. Na historiografia, “crônica” também serve para se referir a um relato de eventos históricos em ordem temporal. Sua própria etimologia remete ao tempo, sendo a palavra portuguesa derivada da grega chrónos (“tempo”).

O termo se refere muitas vezes a livros escritos na Idade Média, que descreviam eventos históricos em algum território, a vida de algum nobre, ou um registro geral de eventos públicos. Exemplos são a Crônica da Irlanda, a Crónica de el-rei D. João I ou a Crônica Geral de Espanha; um dos exemplares mais famosos é a Crônica Anglo-Saxônica.

Quando a Saída de Emergência adquiriu os direitos para a série de Martin, a popularidade da fantasia se encontrava em um contexto bastante diferente do atual, e o termo “crônicas” já era associado com o gênero. Naquela época, obras como As Crônicas de Dragonlance e As Crônicas de Nárnia, por exemplo, já estavam em evidência (inclusive no cinema).

O termo “canção”, por outro lado, remete instantaneamente a música, o que pode ter sido interpretado pelas editoras como prejudicial para que novos leitores se sentissem atraídos pela obra de fantasia, por confusão. A editora tentou, provavelmente, utilizar uma palavra que tivesse mais apelo com os consumidores mas que ainda estivesse associada ao contexto da obra.

A série de Martin, apesar de ser categorizada como fantasia por seus elementos mágicos e pano-de-fundo inteiramente fictício, contém também muitos elementos derivados da ficção histórica. Assim, além de ter potencialmente maior apelo se comparado a “canção”, um título com “crônicas” é também razoavelmente adequado para designar os relatos dos grandes (e pequenos) eventos e feitos de Westeros.

É importante ressaltar, também, que a Saída de Emergência não foi a primeira a tomar essa decisão. Ainda em 1999, quando a editora italiana Mondadori publicou o primeiro livro, ela já havia traduzido o título da série para um parecido: Cronache del ghiaccio e del fuoco (“Crônicas do gelo e do fogo”).

Canções de feitos heroicos

A verdade, entretanto, é que Martin escolheu nomear sua obra como Song, e em sua língua nativa, o inglês, a palavra também é muito mais associada à música do que qualquer outra coisa. Para os leitores em língua inglesa, o título A Song of Ice and Fire para um romance de fantasia causa tanta estranheza (e curiosidade) à primeira vista quanto “Canção de Gelo e Fogo” causaria para nós lusófonos.

E qual, então, é o significado de song (“canção”) nesse contexto? É claro que é possível que o título se refira a elementos internos do próprio universo, mas o uso da palavra remete também aos poemas épicos, uma espécie de poesia narrativa que conta detalhes de feitos heroicos e eventos importantes para uma cultura ou nação. O gênero existe desde épocas antiquíssimas: a Epopeia de Gilgamesh, por exemplo, data de 2.100 a.C., e outros exemplos famosos são a Odisseia, de mais ou menos 800 a.C., e a Eneida, da década de 20 a.C..

Na França medieval, desenvolveu-se um tipo específico de poema épico, chamado chanson de geste (“canção de gesta”, algo como “canção de feitos heroicos”). Algumas das mais conhecidas são a Canção de Rolando, a Canção de Guilherme e a Canção da Cruzada albigense (evento histórico que Martin já admitiu ser uma influência em sua obra). É aparentemente com esse sentido de “canção”, uma narrativa poética de grandes feitos, que Martin inseriu a palavra Song no título de sua série — ainda que ela seja escrita em prosa, e não em verso como as antigas canções de gesta.

Página do manuscrito da Canção da Cruzada Albigense. Fonte: Wikimedia Commons. Domínio público.

Percebe-se, então, que existem diferenças entre uma “canção” e uma “crônica”. A primeira soa mais como um relato épico, grandioso e poético, enquanto que a segunda remete mais um tratamento historicamente objetivo. O próprio Jorge Candeias, embora não tenha criticado a decisão da editora, disse que sua sugestão original era a de que se mantivesse “canção” no título.

Passando ao campo opinativo, considero, pessoalmente, que a opção de Martin poderia ter sido mantida. A possível estranheza do leitor médio com o título “canção” não me parece razão suficientemente forte. Como vimos, a situação também se aplica ao idioma original, e não parece que a Bantam ou a HarperCollins (as editoras americana e britânica da série) tenham tido prejuízos por essa razão.

Aliás, a tal “estranheza” só tem lugar quando se analisa o título retroativamente (já se sabendo o conteúdo da obra). Para um leitor neutro, trata-se apenas de mais um título curioso. Em quantas obras o título é um tanto estranho ou obscuro, e passa a fazer mais sentido apenas quando o leitor justamente se familiariza mais com o conteúdo, não é mesmo? Parece ser o caso aqui também. Não é obrigatório que um título seja óbvio.

Martin, propositalmente, deu a sua série um título com múltiplas interpretações possíveis: uma “canção de gelo e fogo” é um elemento presente dentro da própria história, por exemplo, e a menção a “canção” no título evoca, como vimos, o sentido de uma narrativa grandiosa e fantástica. Essa diversidade de interpretações (que ele mesmo admitiu e será abordada mais adiante) acabou se perdendo na alteração para “crônicas”, um termo mais objetivo e menos poético.

As falas de George R. R. Martin

Perguntas sobre a origem e o significado do título da série já foram feitas a George R. R. Martin, e um texto que se propõe a tratar do assunto não poderia ignorar as respostas do autor. Evidentemente, ele não discorreu com detalhes sobre o tema, mas já deu declarações significativas a respeito dele – até voluntariamente, sem ser provocado.

É bom reiterar que Martin não tem nenhum costume de mentir em entrevistas ou conversas com fãs — quem já leu e assistiu a dezenas de falas públicas dele sabe disso. Quando acredita que a resposta para alguma pergunta pode ser muito reveladora dos mistérios de sua obra, ele responde de forma pouco clara, desvia o assunto, ou simplesmente se recusa a responder (dizendo “continue lendo”). Assim, o “não-silêncio” de George também é importante, e não corremos o risco de que ele tenha tentado desinformar o leitor em suas falas.

A primeira declaração conhecida de George sobre o assunto é em uma entrevista para a Amazon britânica, alguns meses depois do lançamento de A Tormenta de Espadas, em 2001. Martin foi questionado por Roz Kaveney sobre o quanto sua obra é influenciada por eventos históricos reais, ao mesmo tempo em que é de fato uma série de fantasia (com elementos mágicos). Em parte da resposta, o autor diz o seguinte:

O ponto principal da cena em A Guerra dos Tronos em que Daenerys choca os dragões é que ela faz a magia à medida que avança; ela é alguém que poderia realmente fazer qualquer coisa. Eu queria que a magia fosse algo difícil de ter sob controle e meio instintiva – não a versão de magia de John W. Campbell, como a ciência e tecnologia de outros tipos de mundo, que funciona por regras simples e compreensíveis. E nem como palavras precisas e séries de passes que você esquece quando realiza e então tem que aprender de novo, como na Agonia da Terra de Jack Vance. Quando Vance fez aquilo, foi original – eu acabei de escolher a seção de Liane the Wayfarer para a antologia Fantasy Hall of Fame – mas eu queria fazer outra coisa. E é importante que os livros individuais se referem às guerras civis, mas o título da série nos lembra constantemente que a questão real reside no Norte além da Muralha. Stannis se torna um dos poucos personagens a entender isso completamente, motivo pelo qual apesar de tudo ele é um homem direito, e não apenas uma versão de Henrique VII, Tibério ou Luís XI.

White Walker
Um Outro ataca Waymar Royce. Arte: Magali Villeneuve para a edição ilustrada de A Guerra dos Tronos.

O ponto relevante dessa resposta de Martin é que ele suscita a questão do título sem ter sido provocado a isso pelo entrevistador. Ele é quem toma a iniciativa de apontar o que é que o “título da série nos lembra”. Faz referência, é claro, aos Outros, que são o ponto importante ao norte da Muralha. Isso foi reiterado por GRRM em uma entrevista para o extinto portal Fantasy Online, em 2002. Nessa conversa, Eric Cogan perguntou de onde veio o título, e o que mais ele reflete sobre a série. Martin respondeu:

Não me lembro direito de onde. Eu sabia que o primeiro livro seria A Game of Thrones, mas eu precisava de um título geral também. Tínhamos esses outros elementos na história, além da disputa pelo poder na corte – os Outros além da Muralha e os dragões. Isso sugere Gelo e Fogo, mas esse não é o único significado possível. Gosto de títulos que podem ter vários significados. Acho que tornam a escrita e a ficção mais ricas.

Sempre tive essa obsessão por canções também – os títulos de meus livros estão sempre cheios de referências a “canção”, de Uma Canção para Lya e Songs the Dead Men Sing a coisas como “… For a Single Yesterday”.

Aqui cabe um parêntese para as referências de George a suas obras:

  • Uma Canção para Lya é uma novela de 1974, que se passa no mesmo universo ficcional de outras obras de Martin, os Mil Mundos; seus personagens principais são dois telepatas chamados Robb e Lyanna; o título foi reaproveitado para a primeira coletânea de Martin, de 1976;
  • Songs the Dead Men Sing (“Canções que Homens Mortos Cantam”) é a quarta coletânea de GRRM, publicada em 1983; entre os nove contos está … For a Single Yesterday, cujo título é uma referência à canção Me and Bobby McGee, que diz “I’d trade all my tomorrows for a single yesterday” (“Eu trocaria todos os meus amanhãs por um único ontem”); a música foi interpretada por artistas de quem Martin é grande fã: Kris Kristofferson (que a co-compôs) e a banda Grateful Dead.

Existem ainda outras obras de George com “song” no título ou referências a canções, que ele não cita nessa resposta (algumas porque ainda não haviam sido publicadas):

  • As Canções Solitárias de Laren Dorr, conto de 1976, publicado no Brasil pela primeira vez em 2013;
  • Songs of Stars and Shadows (“Canções de Estrelas e Sombras”), segunda coletânea de Martin, publicada em 1977;
  • Dreamsongs (algo como “Canções de sonhos”), coletânea retrospectiva de 2003, publicada recentemente no Brasil como RRetrospectiva da obra;
  • Songs of the Dying Earth (“Canções da Terra em Agonia”), antologia de 2009 editada com Gardner Dozois, com contos e ensaios sobre a obra de Jack Vance;
  • Songs of Love and Death (“Canções de Amor e Morte”), antologia de ficção científica e fantasia de 2010, também editada com Dozois. O título lembra Songs of Love and Hate (“Canções de Amor e Ódio”), álbum de Leonard Cohen que Martin já disse ter ouvido obsessivamente durante um período de sua vida.
  • The Armageddon Rag, romance de mistério de 1983 que acompanha a banda fictícia Nazgûl; a palavra “rag” no título significa uma composição.

Observa-se que George realmente gosta da palavra song nos títulos de suas obras, sejam elas contos, romances ou antologias (e abarcando vários gêneros). De qualquer forma, a resposta dele a Cogan esclarece que, em sua obra-prima, o significado principal é mesmo o mais óbvio: o fogo se refere aos dragões, e o gelo aos Outros.

Agora, faremos um salto para uma entrevista de Martin à emissora Al Jazeera, em 2016:

Para pessoas que não estão familiarizadas com sua obra, a série se passa em um mundo imaginário. Existe uma disputa pelo controle do reino, essa guerra dinástica é essencialmente uma entre três tramas principais. Há outra trama envolvendo os Outros, essa espécie de personagens sobre-humanos, e há também a filha Targaryen exilada que busca o retorno a seu antigo Trono. Por que essas três tramas principais?

Bem, é claro, os dois extremos, as coisas ao norte da Muralha e Daenerys Targaryen no outro continente com seus dragões são, é claro, o “gelo e fogo” do título, A Song of Ice and Fire. As coisas centrais, as coisas que estão acontecendo no meio, em Porto Real, a capital dos Sete Reinos, são muito mais baseadas em eventos históricos, ficção histórica, livremente inspiradas na Guerra das Rosas e em alguns dos outros conflitos ao longo da Guerra dos Cem Anos, mas, é claro, com um toque de fantasia.

Sabe, uma das dinâmicas com que comecei foi a ideia de pessoas tão consumidas por suas disputas mesquinhas por poder nos Sete Reinos, dentro de Porto Real — “quem vai ser rei?”, “quem vai estar no Pequeno Conselho?”, “quem vai comandar as políticas públicas?” —, que elas estão cegas para ameaças muito maiores e mais perigosas que estão acontecendo ao longe, na periferia de seus reinos, e é claro que se pode ver isso ao longo de toda a História.

A pergunta não era inicialmente sobre o título, mas de forma notável Martin mais uma vez identifica o gelo e o fogo nos dragões de Daenerys e nos Outros. É importante observar também que a resposta de George é feita de uma forma bastante didática, pois o entrevistador e o público da emissora não estão tão envolvidos no universo quanto os fãs hardcore de sua obra.

O complemento dessa resposta é parecido em conteúdo com o da entrevista de Martin à Amazon. Ele aponta que, historicamente, a disputa política tradicional cega as pessoas a inimigos maiores externos. Isso se relaciona com o que ele apontou sobre Stannis Baratheon como exemplo: ao se tornar um dos poucos a compreender a grande ameaça, o personagem se diferencia de seus modelos históricos do mundo real.

George R. R. Martin
George R. R. Martin em 2012, na Espanha. Foto: HombreDHojalata.

Na entrevista ao Fantasy Online, Martin havia afirmado, porém, que a oposição entre os Outros e os dragões de Daenerys não é o único significado que se pode atribuir ao título. Em uma entrevista em 2012, Adrià Guxens perguntou expressamente se havia mais no título, além deles. A resposta foi a seguinte:

Oh! Essa é a coisa óbvia, mas sim, tem mais. As pessoas dizem que fui influenciado pelo poema de Robert Frost, e é claro que fui, quero dizer… Fogo é amor, fogo é paixão, fogo é ardor sexual e todas essas coisas. Gelo é traição, gelo é vingança, gelo é… você sabe, aquele tipo de inumanidade fria e todas essas coisas se desenrolam nos livros.

Nessa entrevista, Martin foi além da explicação óbvia sobre os dragões e os Outros, indo ao encontro do poema Fire and Ice, de Robert Frost, em que o fogo é associado ao desejo e o gelo ao ódio. O poema, que evoca o fim do mundo, foi publicado pela primeira vez em 1920, e é um dos mais populares e conhecidos de Frost. Segundo uma biografia do poeta, teve como uma inspiração uma passagem do Inferno, da Divina Comédia de Dante Alighieri. Supostamente, também teria sido inspirada por um encontro entre Frost e o astrônomo Harlow Shapley, que dissera ao poeta que a Terra seria incinerada com a explosão do Sol, ou escaparia disso e congelaria no espaço. Parece adequado transcrever o poema em sua totalidade, tanto no original quanto em uma tradução (amadora, minha):

Some say the world will end in fire,
Some say in ice
From what I’ve tasted of desire
I hold with those who favor fire.
But if it had to perish twice,
I think I know enough of hate
To say that for destruction ice
Is also great
And would suffice.

Alguns dizem que o mundo terminará em fogo,
Alguns dizem que em gelo.
Pelo que provei do desejo
Fico com aqueles que favorecem o fogo.
Mas se tivesse de perecer duas vezes,
Acho que conheço o bastante do ódio
Para dizer que para destruição o gelo
Também é ótimo
E bastaria.

Retornando à resposta de Martin, a parte que me parece mais significativa é que ele, ainda que indiretamente, faz um espécie de juízo de valor sobre o significado dos dois elementos, ao associar sentimentos e atitudes negativos ao gelo – traição, vingança, inumanidade fria. Por outro lado, relaciona o fogo com outros mais positivos – paixão, ardor e desejo sexual –, embora estes também possam “consumir” alguém.

Fica, assim, aparentemente claro que o autor teve mesmo em mente a ideia de oposição ao escolher o título da obra, ainda que se possa atribuir vários significados a ele. Isso parece se confirmar no conteúdo dos livros, em que os dois elementos são mencionados juntos em algumas passagens, e (quase) sempre como opostos, como observaremos a seguir.

Gelo e fogo nos livros

A temática do antagonismo entre gelo e fogo está no título da obra e em seu pano de fundo principal, mas não é algo mencionado com tanta frequência dentro da própria história. Isso não significa, entretanto, que não existam passagens em que isso ocorra.

Daenerys Targaryen Khal Drogo
Daenerys Targaryen coloca ovo de dragão na pira funeral de Drogo. Arte: Magali Villeneuve para edição ilustrada de A Guerra dos Tronos.

A primeira menção dos dois elementos juntos acontece ainda em A Guerra dos Tronos, quando a pira funerária de Drogo é montada e Jorah Mormont compreende o que Daenerys Targaryen pretende fazer:

Por cima da carcaça do cavalo, construíram uma plataforma de toras decepadas; troncos de árvores menores e braços das maiores, e os mais grossos e retos galhos que conseguiram encontrar. Dispuseram a madeira de leste para oeste, do nascente ao poente. […]

O terceiro nível da plataforma foi tecido com galhos que não eram mais grossos que um dedo, e coberto com folhas e raminhos secos. Dispuseram-nos de norte a sul, do gelo ao fogo, e em cima colocaram uma grande pilha de macias almofadas e sedas de dormir. O sol começava a baixar em direção a oeste quando terminaram. Dany chamou os dothrakis. Restavam menos de uma centena. Com quantos começara Aegon? perguntou ela a si mesma. Não importava.

(A Guerra dos Tronos, capítulo 72, Daenerys X. Tradução de Jorge Candeias. Negritos meus.)

É possível que essa menção não tenha nenhum significado “superior”, sendo apenas uma descrição genérica e a alusão aos elementos seja apenas a ideia de oposição na configuração dos componentes. Por outro lado, considerando-se que se trata de um evento mágico de importância enorme – e um dos poucos vistos mostrados “ao vivo” por Martin –, pode ser que a especificação de como a pira foi montada tenha algum significado ritualístico, ainda que ocorrido de forma acidental e intuitiva.

A menção seguinte ocorre em A Fúria dos Reis, e também em um contexto aparentemente mágico. Trata-se do juramento que os irmãos Meera e Jojen Reed fazem a Bran como seu suserano Stark:

– Senhores de Stark – disse a garota. – Os anos se passaram às centenas e aos milhares desde que meu povo jurou lealdade ao Rei do Norte. O senhor meu pai enviou-nos aqui a fim de proferir novamente essas palavras, em nome de todo o nosso povo.
Ela está olhando para mim, Bran percebeu. Tinha de responder alguma coisa.
– Meu irmão Robb está lutando no sul – ele disse –, mas pode proferir as palavras perante a mim, se quiser.
– A Winterfell juramos a fidelidade da Água Cinzenta – disseram os dois em uníssono. – Cedemos-lhe a lareira, o coração e a colheita, senhor. Nossas espadas, lanças e flechas estão às suas ordens. Conceda misericórdia aos nossos fracos, ajude nossos impotentes e faça justiça a todos, e nunca lhe faltaremos.
– Juro pela terra e pela água – disse o rapaz vestido de verde.
– Juro pelo bronze e pelo ferro – disse a irmã.
Juramos pelo gelo e pelo fogo – os dois terminaram em conjunto.
(A Fúria dos Reis, capítulo 21, Bran III. Tradução de Jorge Candeias. Negritos meus.)

Os Reed são uma Casa nortenha um tanto excêntrica, e mais associada com a magia do que o normal. Jojen tem o dom da visão verde, experimentando sonhos proféticos (os chamados sonhos verdes), e os irmãos demonstram uma conexão com a terra – característica também encontrada nos filhos da floresta  – que fica clara na caverna do Corvo de Três Olhos.

Meera Jojen Reed
Meera e Jojen Reed no Gargalo. Arte: Roman Papsuev.

É difícil especular sobre essa passagem em específico. É claro que se trata de um juramento com teor poético, como soi acontecer – raramente juramentos são literais. No entanto, dada a aparente relação dos Reed com a magia da terra pode-se inferir que há mais do que aparenta ali. Em A Tormenta de Espadas, outra conversa dos irmãos com Bran inclui novamente menção ao gelo e ao fogo, e ao conceito de oposição:

– Para cima e para baixo – suspirava às vezes Meera enquanto caminhavam – e depois para baixo e para cima. E depois outra vez para cima e para baixo. Detesto estas suas malditas montanhas, Príncipe Bran.
– Ontem disse que as adorava.
– Ah, e adoro. O senhor meu pai tinha me falado de montanhas, mas nunca tinha visto nenhuma até agora. Adoro-as mais do que consigo expressar.
Bran fez uma careta para ela.
– Mas acabou de dizer que as detestava.
– Por que é que não pode ser as duas coisas? – Meera esticou a mão para apertar o nariz de Bran.
– Porque são coisas diferentes – insistiu ele. – Como a noite e o dia, ou o gelo e o fogo.
– Se o gelo pode queimar – disse Jojen em sua voz solene –, então o amor e o ódio podem se juntar. Montanha ou pântano, não importa. A terra é só uma.
– Uma – concordou a irmã –, mas enrugada demais.
(A Tormenta de Espadas, capítulo 24, Bran II. Tradução de Jorge Cadneias. Negritos meus.)

É importante aqui o que os Reed tentam dizer: pode haver uma espécie de conciliação entre esses opostos. Além disso, é também notável que Jojen faça menção a sentimentos antagônicos, como Martin fizera na última entrevista analisada e no poema de Robert Frost.

Em outro arco mágico da história encontramos mais uma menção ao gelo e fogo, mas sem o tom conciliatório dos irmãos Reed. Os elementos são mesmo mencionados como exemplos de extremos incompatíveis na seguinte passagem de A Tormenta de Espadas:

– Toda a sua vida, Davos Seaworth? Tanto faz dizer que era assim ontem. – Sacudiu a cabeça, tristemente. – Nunca temeu dizer a verdade a reis, por que é que mente a si mesmo? Abra os olhos, sor cavaleiro.
– O que quer que eu veja?
– O modo como o mundo é feito. A verdade está à sua volta, basta olhar para ela. A noite é escura e cheia de terrores, o dia, luminoso, belo e cheio de esperança. Uma é negra, o outro, branco. Há gelo e há fogo. Ódio e amor. Amargor e doçura. Macho e fêmea. Dor e prazer. Inverno e verão. Mal e bem. – Ela deu um passo em sua direção. – Vida e morte. Em toda parte há opostos. Em toda parte há a guerra.
– A guerra? – perguntou Davos.
– A guerra – afirmou ela. – Existem dois, Cavaleiro das Cebolas. Nem sete, nem um, nem cem ou mil. Dois! Acha que atravessei metade do mundo para colocar mais um rei frívolo em mais um trono vazio? A guerra é travada desde o começo dos tempos, e, antes de chegar ao fim, todos os homens devem escolher de que lado se encontram. De um lado está R’hllor, o Senhor da Luz, o Coração de Fogo, o Deus da Chama e da Sombra. Contra ele ergue-se o Grande Outro, cujo nome não pode ser pronunciado, o Senhor das Trevas, a Alma do Gelo, o Deus da Noite e do Terror. A nossa escolha não é entre Baratheon e Lannister, entre Greyjoy e Stark. O que escolhemos é a morte ou a vida. A escuridão ou a luz. – Agarrou as barras da cela com suas mãos esguias e brancas. O grande rubi em sua garganta pareceu pulsar com esplendor próprio. – Portanto, diga-me, Sor Davos Seaworth, e diga-me a verdade: o seu coração arde com a luz brilhante de R’hllor? Ou é negro, frio e cheio de vermes? – Estendeu a mão através das barras e pousou três dedos no peito de Davos, como que para sentir a sua verdade através de carne, lã e couro.
[…]
Depois que os passos de Melisandre deixaram de ser ouvidos, o único som que ficou foi o arranhar das ratazanas. Gelo e fogo,  pensou. Branco e preto. Trevas e luz.
(A Tormenta de Espadas, capítulo 25, Davos III. Tradução de Jorge Candeias.)

Os envolvidos aqui são, obviamente, Davos Seaworth e Melisandre de Asshai. A sacerdotisa conhece a ameaça dos Outros, e identifica nela a mitologia dualista de opostos de sua religião. Isso não quer dizer, entretanto, que essa crença corresponda à realidade, ou que a existência de R’hllor e do Grande Outro esteja comprovada. Como todas as religiões, os r’hlloristas atribuem a certos fatos e eventos a atuação de seus deuses – o que não necessariamente é verdade. O importante aqui, porém, é que fica clara a interpretação de Melisandre de que gelo e fogo são inconciliáveis e antagônicos.

Davos and Melisandre
Davos e Melisandre em direção a Ponta Tempestade. Arte: David Fedorczuk.

Em O Mundo de Gelo e Fogo, além do próprio título, duas passagens mencionam os dois elementos. No capítulo dedicado ao Norte, mais especificamente em Os Senhores de Winterfell, o leitor conhece um acordo entre as casas Stark e Targaryen, firmado durante a Dança dos Dragões, que nunca se concretizou:

Discutimos anteriormente o papel da Casa Stark na Dança dos Dragões. Deve-se acrescentar que Lorde Cregan Stark recolheu muitas recompensas por seu leal apoio ao rei Aegon III… mesmo que não tenha ocorrido um casamento com um príncipe real em sua família, como fora acordado no Pacto de Gelo e Fogo, feito quando o príncipe condenado Jacaerys Velaryon voou a Winterfell em seu dragão.
(O Mundo de Gelo e Fogo – O Norte – Os Senhores de Winterfell. Tradução de Marcia Blasques.)

Durante a guerra civil, Jacaerys foi enviado a vários castelos ao norte de Pedra do Dragão para tentar conseguir apoio para a causa de sua mãe Rhaenyra. Essa passagem deixa claro que os termos para que Cregan Stark aceitasse apoiar os negros incluíam um casamento entre os Targaryen e os Stark, fato que não havia sido mencionado antes.

Essa nova informação, obviamente, gerou muita curiosidade entre os leitores, que começaram a especular sobre a possibilidade de Martin ter escrito mais coisas sobre o pacto, que teriam sido cortadas na versão final do Mundo de Gelo e Fogo (como aconteceu com várias outras passagens). Em uma entrevista interativa no reddit, Elio García e Linda Antonsson, co-autores do livro, responderam o seguinte:

Vocês podem dar alguma informação sobre o “Pacto de Gelo e Fogo”, mencionado apenas uma vez em O Mundo de Gelo e Fogo? Vocês tiveram alguma discussão sobre ele com George? Algum detalhe adicional sobre ele foi cortado do Mundo de Gelo e Fogo, que vocês saibam? Ou sempre foi só aquela única frase?

Por motivos de espaço, detalhes sobre o pacto – particularmente certos detalhes indecentes da parte de um certo Cogumelo, envolvendo o Príncipe Jacaerys supostamente se apaixonando por e secretamente se casando com a meia-irmã bastarda de Lorde Cregan – tiveram de ser cortados. Porém, a parte central dele é como diz no livro: Cregan concordou em apoiar Rhaenyra pela promessa de uma noiva Targaryen.

A menção mais relevante, porém – por se relacionar com declarações de George fora dos livros – está no capítulo “O Reino Glorioso”. Nele, Meistre Yandel faz uma espécie de conclusão da primeira parte de sua obra, em que reconta os eventos de Westeros em ordem cronológica, e diz:

O mundo conheceu o gelo na Longa Noite, e conheceu o fogo na Perdição. Da Costa Gelada até Asshai da Sombra, esse mundo de gelo e fogo revela uma história rica e gloriosa ‒ embora exista muito a ser descoberto.
(O Mundo de Gelo e Fogo – O Reinado Glorioso. Tradução de Marcia Blasques.)

É possível que nesta passagem Martin, Antonsson e García estejam apenas dando uma certa licença poética para seu historiador fictício discorrer genericamente sobre sua obra. Ele faz isso, porém, de uma forma que associa novamente o gelo aos Outros (a Longa Noite) e e o fogo indiretamente aos dragões, quando alude à Perdição de Valíria.

A menção que abordaremos a seguir talvez seja a mais importante, pois se refere ao título literalmente. Ela acontece, como não poderia deixar de ser, em um contexto de magia ativa, e é outra passagem envolvendo Daenerys Targaryen, desta vez em A Fúria dos Reis:

Seu primeiro pensamento, na vez seguinte em que parou, foi Viserys, mas um segundo olhar fez Dany mudar de ideia. O homem tinha os cabelos do irmão, mas era mais alto, e seus olhos eram de um tom escuro de índigo, e não lilases.
– Aegon – ele disse para uma mulher que amamentava um recém-nascido numa grande cama de madeira. – Que nome seria melhor para um rei?
– Fará uma canção para ele? – a mulher perguntou.
– Ele já tem uma canção. É o príncipe que foi prometido, e é sua a canção de gelo e fogo – ergueu o olhar quando disse aquilo, e seus olhos encontraram os de Dany, e pareceu que a via ali em pé através da porta. – Terá de haver mais um – ele disse, embora Dany não soubesse dizer se estava falando para ela ou para a mulher na cama. – O dragão tem três cabeças – dirigiu-se ao banco da janela, pegou uma harpa e seus dedos correram com leveza sobre as cordas prateadas.
Uma doce tristeza encheu o quarto enquanto homem, esposa e bebê se desvaneciam como a neblina da manhã, deixando para trás apenas a música a fim de apressá-la.
(A Fúria dos Reis, capítulo 48, Daenerys IV. Tradução de Jorge Candeias.)

Trata-se de uma entre várias visões que Daenerys tem na Casa dos Imortais, em Qarth, quando está sob efeito da bebida alucinógena (e aparentemente mágica) sombra da noite. Nessa visão, ela vê o irmão, Rhaegar, junto com sua esposa Elia e o recém-nascido filho Aegon (o que foi confirmado por George R. R. Martin).

Rhaegar Targaryen e Elia Martell, na visão de Daenerys na Casa dos Imortais. Arte: Urugeth.

Rhaegar era famoso por tocar uma harpa com cordas prateadas, e por isso, na visão, Elia pergunta a ele se não comporá uma canção para o filho Aegon (que ele assim nomeou na presunção de que ele se tornaria rei). Rhaegar responde que o filho é o “príncipe que foi prometido”, e que é dele a “canção de gelo e fogo” — exatamente como título da série.

Mais tarde, Daenerys, como o leitor, fica em dúvida sobre o que seria a tal canção, e questiona Jorah Mormont – a quem frequente recorre para informações sobre Westeros – a esse respeito:

É sua a canção de gelo e fogo, disse meu irmão. Tenho certeza de que era meu irmão. Não Viserys, Rhaegar. Tinha uma harpa com cordas de prata.
O franzir de testa de Sor Jorah aprofundou-se tanto que as sobrancelhas se juntaram. – O Príncipe Rhaegar tocava uma harpa assim – ele anuiu. – Viu-o?
Ela confirmou com a cabeça.
– Havia uma mulher numa cama, com um bebê no peito. Meu irmão disse que o bebê era o príncipe que havia sido profetizado e falou à mulher para chamá-lo Aegon.
– O Príncipe Aegon era herdeiro de Rhaegar, filho de Elia de Dorne – disse Sor Jorah. – Mas se era ele o príncipe da profecia, esta foi quebrada com o seu crânio, quando os Lannister atiraram sua cabeça contra uma parede.
– Eu me lembro – a voz dela soou triste. – Também assassinaram a filha de Rhaegar, a princesinha. Chamava-se Rhaenys, como a irmã de Aegon. Não havia uma Visenya, mas ele disse que o dragão tem três cabeças. O que é a canção de gelo e fogo?
– Não é nenhuma canção que eu tenha ouvido.
– Fui encontrar os magos esperando respostas, mas em vez disso deixaram-me com uma centena de novas perguntas.
(A Fúria dos Reis, capítulo 63, Daenerys V. Tradução de Jorge Candeias.)

Além de ser a primeira (e até o momento única) vez em que a canção de gelo e fogo é mencionada como um elemento dentro da própria história, ela é associada a profecias. O “princípe que foi prometido” é uma figura profética conhecida pelos Targaryen e também pelos r’hlloristas; Rhaegar, a princípio, acreditou ser ele mesmo essa figura (uma crença compartilhada com Meistre Aemon), e depois ficou convencido de que seu filho Aegon seria o tal herói.

Sua identidade ainda é desconhecida (se é que a profecia se concretizará realmente), mas o número de personagens que podem ser o tal príncipe é bastante restrito, devido a uma profecia da Fantasma de Coração Alto, que dizia que ele nasceria da linhagem de Aerys e Rhaella. Nesse sentido, apenas a própria Daenerys, Jon Snow (que tomaremos aqui como filho de Rhaegar e Lyanna, embora não haja confirmação categórica nos livros), Aegon (supondo que Jovem Griff seja mesmo o rapaz) ou algum descendente deles ainda podem ser revelados como a tal figura. Abordei o assunto neste artigo.

Daenerys and the Undying Ones
Daenerys em sua cena final na Casa dos Imortais. Arte: Marc Simonetti.

A questão, enfim, é que essa é a única vez em que o príncipe prometido é associado com a canção de gelo e fogo. Rhaegar, a partir de certo momento, se tornou aparentemente obcecado por profecias, e ele pode ter retirado a referência à tal canção desses escritos. É relevante também que, logo após essa menção, ele fale também sobre as três cabeças do dragão, outra profecia associada aos Targaryen (sobre a qual Meistre Aemon também fala nos livros). Se o termo “canção” se refere a composição musical ou uma narrativa sobre grandes eventos, também não sabemos.

Ainda quanto às visões de Daenerys em Qarth, outra passagem da personagem é de relevância ao analisarmos as menções a gelo e fogo nos livros. Esta ocorre quando ela chega ao cômodo onde estão os Imortais propriamente ditos, e pede a eles por explicações:

– Sou Daenerys Filha da Tormenta, da Casa Targaryen, Rainha dos Sete Reinos de Westeros – vão me ouvir? Por que não se mexem? Sentou-se, fechando as mãos no colo. – Concedam-me seus conselhos, e falem-me com a sabedoria daqueles que conquistaram a morte.
[…]
A resposta foi um suspiro tão fino como um bigode de rato. … Nós vivemos… vivemos… vivemos… disse o suspiro. Uma miríade de outras vozes sussurraram ecos. … e sabemos… sabemos… sabemos… sabemos…
– Vim em busca do dom da verdade – disse Dany. – No longo corredor, as coisas que vi… foram visões verdadeiras, ou mentiras? Coisas passadas ou coisas por vir? O que significavam?
… A forma das sombras… amanhãs ainda não feitos… beba da taça de gelo… beba da taça de fogo…
… Mãe de dragões… filha de três…
– Três? – ela não compreendia. … Três cabeças tem o dragão… gemeu o coro fantasmagórico dentro de sua cabeça, sem que nunca um lábio se movesse, nunca um sopro agitasse o ar azul e parado. … Mãe de dragões… filha da tormenta… Os sussurros se transformaram numa canção turbilhonante. … Três fogueiras tem de acender… uma pela vida, uma pela morte e uma pelo amor… Seu coração batia em uníssono com aquele que flutuava na sua frente, azul e putrefato. … Três  montarias tem de montar… uma para o sexo, uma para o terror e uma para o amor… Percebeu que as vozes se tornavam mais sonoras, e parecia-lhe que seu coração abrandava, o mesmo acontecendo com a respiração… Três traições conhecerá… uma vez por sangue, uma vez por ouro e uma vez por amor…
(A Fúria dos Reis, capítulo 48, Daenerys IV. Tradução de Jorge Candeias.)

As outras respostas dos Imortais são notoriamente enigmáticas, e é possível fazer interpretações e suposições sobre seus significados, mas não é esse o nosso intuito nesta análise. O importante aqui é dar atenção ao fato de que esses personagens, eminentemente mágicos e aparentemente conhecedores dos “grandes mistérios”, do passado e do futuro, mencionam novamente os dois elementos, em um contexto em que muitos dos maiores eventos envolvendo não apenas Daenerys, mas da história como um todo, são pressagiados.

Canções nos livros

Rhaegar Targaryen harp
Rhaegar Targaryen e sua harpa. Arte: Felicia Cano. © Fantasy Flight Games.

Já abordamos a menção expressa de Rhaegar Targaryen à “canção de gelo e fogo”, que Daenerys presencia na Casa dos Imortais. Porém, essa não é, é claro, a única menção a canções nos livros. Não vou, aqui, listar todas as instâncias em que a palavra ocorre no cânone – são mais de 450 –, mas muitas delas podem ser de interesse e merecem um pouco de atenção.

A imensa maioria das menções a “canção” ou “canções” é mesmo no sentido música, de composições da tradição e do folclore que contam histórias sobre personagens importantes e seus grandes feitos. Muitas vezes, elas são citadas como a única espécie de registro histórico sobre alguns eventos (mais ou menos como as canções medievais que mencionamos no primeiro item de nossa análise). Ainda assim, é possível extrair coisas interessantes no plano mágico em algumas passagens específicas.

Retornando brevemente a Rhaegar Targaryen, o leitor descobre mais algumas informações sobre o trágico Príncipe durante A Dança dos Dragões, por meio dos capítulos de Jon Connington, que fora seu escudeiro e amigo. Quando retorna a seu antigo castelo de Poleiro do Grifo, Jon se lembra do seguinte:

Príncipe Rhaegar estava voltando de Dorne, e ele e sua comitiva haviam permanecido ali por uma quinzena. Ele era tão jovem, então, e eu era mais jovem ainda. Meninos, nós dois. No banquete de boas-vindas, o príncipe pegara sua harpa de cordas prateadas e tocara para eles. Uma canção de amor e perdição, Jon Connington se lembrou, e toda mulher no salão chorava quando ele abaixou a harpa.
(A Dança dos Dragões, capítulo 61, O Grifo Renascido. Tradução de Marcia Blasques. Destaques no original.)

Seria possível ser essa a canção que anos mais tarde Rhaegar diria ser “a canção de gelo e fogo”? É uma possibilidade razoável, dados a temática visivelmente agridoce – de “amor e perdição” – que aparentemente permeia a composição. Curiosamente, essa temática se estende para série de livros de Martin como um todo.

Daenerys Jorah
Mirri Maz Duur canta e faz as sombras dançarem. Arte: Victor Manuel Leza Moreno, para a edição ilustrada de A Guerra dos Tronos.

Por outro lado, algumas menções a canções na série estão associadas a magia, e elas existem desde A Guerra dos Tronos. Quando Daenerys se convence de que Mirri Maz Duur pode, de alguma forma, salvar Drogo de seu ferimento infeccionado, a maegi diz:

Quando eu começar a cantar, ninguém deve entrar nesta tenda. A canção acordará poderes antigos e escuros.
(A Guerra dos Tronos, capítulo 64, Daenerys VIII. Tradução de Jorge Candeias.)

Dito e feito, a cena em que as “sombras dançam” ao som da cantoria da maegi é bastante macabra, e tem resultados mágicos verificáveis (apesar de não sabermos exatamente como é o processo – o que é proposital por parte de George).

Ainda no mesmo livro, quando Daenerys monta a pira funerária de Drogo, que inclui a mesma Mirri Maz Duur (viva), outra canção é mencionada envolvendo a maegi, no exato momento em que a khaleesi acende a fogueira. Esse evento é um dos momentos mais explicitamente mágicos em todos os livros publicados até agora. A passagem é a seguinte:

Jhogo a viu primeiro.
– Ali – disse ele numa voz abafada. Dany olhou e a viu, baixa, no leste. A primeira estrela era um cometa que ardia, vermelho. Vermelho de sangue; vermelho de fogo; a cauda do dragão. Não poderia ter pedido um sinal mais forte.
Dany tirou o archote da mão de Aggo e o enfiou entre as toras. O óleo pegou fogo de imediato, os arbustos e o mato seco um instante depois. Minúsculas chamas correram pela madeira como velozes ratos vermelhos, patinando sobre o óleo e saltando de casca para galho, de galho para folha. Um calor que aumentava soprou-lhe no rosto, suave e súbito como o hálito de um amante, mas em segundos se tornara quente demais para suportar. Dany deu um passo atrás. A madeira estalou, cada vez mais alto.
Mirri Maz Duur começou a cantar numa voz estridente e ululante. As chamas rodopiaram e contorceram-se, fazendo corridas umas com as outras pela plataforma acima. O ocaso ondulou quando o próprio ar pareceu liquefazer-se com o calor. Dany ouviu toras que se fendiam e estalavam. O fogo envolveu Mirri Maz Duur. A canção dela tornou-se mais sonora, mais estridente… e então arquejou, uma vez e outra, e a canção transformou-se num lamento trêmulo, agudo, sonoro e cheio de agonia.
(A Guerra dos Tronos, capítulo 72, Daenerys X. Tradução de Jorge Candeias.)

O bobo Cara-Malhada é outro personagem frequentemente associado a canções, e que pode também ter relações com a magia. Melisandre o identifica como uma criatura “perigosa”, e diz que o vê com frequência em suas chamas. Teoriza-se que muitas das canções aparentemente sem sentido e insanas do bobo possam ser na verdade mensagens proféticas (assunto que foi abordado aqui).

Por fim, retornamos à magia da terra. O pequeno povo que primeiro habitou Westeros, conhecido pelos homens como “filhos da floresta”, chama a si mesmo por outro nome, em sua língua original:

– Os Primeiros Homens nos chamavam de filhos – a pequena mulher disse. – Os gigantes nos chamavam de woh dak nag gran, o povo esquilo, porque éramos pequenos, rápidos e gostávamos de árvores, mas não somos nem esquilos nem filhos. Nosso nome na Língua Verdadeira significa aqueles que cantam a canção da terra. Antes que sua Língua Antiga fosse sequer falada, nós cantávamos nossas canções há dez mil anos.
(A Dança dos Dragões, capítulo 13, Bran II. Tradução de Marcia Blasques.)

Mais tarde, Bran continua na caverna do Corvo de Três Olhos, e passa a se referir aos filhos da floresta de “cantores” em seus próprios pensamentos:

De vez em quando, o som de uma canção vinha de algum lugar lá embaixo. Os filhos da floresta, a Velha Ama teria chamado os cantores, mas aqueles que cantam a canção da terra era o nome que eles mesmos se davam, na Língua Verdadeira que nenhum humano podia falar. Mas os corvos podiam. Seus pequenos olhos negros eram cheios de segredos, e as aves crocitavam para Bran e bicavam sua pele quando ouviam as canções.
A lua estava gorda e cheia. As estrelas giravam em um céu negro. A chuva caiu e congelou, e quebrou os ramos das árvores com o peso do gelo. Bran e Meera deram nomes àqueles que cantam a canção da terra: Cinza, Folha e Escamas, Faca Negra, Travaneve e Brasas.
(A Dança dos Dragões, capítulo 34, Bran III. Tradução de Marcia Blasques.)

No mesmo capítulo, Brynden explica a Bran sobre os videntes verdes dos filhos da floresta, e revela uma informação importante sobre eles:

– Eu pensava que os videntes verdes eram os feiticeiros dos filhos – Bran dissera. – Dos cantores, quero dizer.
– Em certo sentido. Esses que você chama de filhos da floresta têm olhos tão dourados quanto o sol, mas uma vez a cada muito tempo um deles nasce com olhos vermelhos como sangue ou verdes como o musgo em uma árvore no coração da floresta. Com esses sinais, os deuses marcam aqueles que escolheram para receber o dom. Os escolhidos não são robustos, ou seus rápidos anos sobre a terra são poucos, cada canção precisa ter seu equilíbrio. Mas, uma vez dentro da floresta, vivem mais, de fato. Mil olhos, uma centena de peles, sabedoria tão profunda quanto as raízes das árvores antigas. Videntes verdes.
(A Dança dos Dragões, capítulo 34, Bran III. Tradução de Marcia Blasques. Negritos meus.)

Children of the Forest
Os Filhos da Floresta (ou Aqueles que Cantam a Canção da Terra). Arte: Baleineau.

Na passagem destacada, houve um problema na tradução: o texto original diz “The chosen ones are not robust, and their quick years upon the earth are few, for every song must have its balance“, que significa “e seus rápidos anos sobre a terra são poucos, pois cada canção precisa ter seu equilíbrio”. De qualquer forma, é essa última frase que é bastante interessante, e remete à ideia de equilíbrio dessa magia da terra, já vista também n a alusão ao balanço entre os dois elementos opostos, que observamos anteriormente.

É notável que o nome de “cantores da canção da terra” não é apenas um título: Bran ouve os filhos da floresta literalmente cantarem. Se essas canções que ele entoam durante os eventos de A Dança dos Dragões têm realmente algum efeito mágico, ainda não foi possível determinar. Há, porém, na história, lendas sobre atuação mágica dos filhos (mais especificamente dos videntes verdes) cantando também. A situação ocorre quando os Primeiros Homens chegam a Westeros pela ponte natural do Braço de Dorne e causam destruição:

Os filhos revidaram o melhor que podiam, mas os Primeiros Homens eram maiores e mais fortes. Cavalgando em seus cavalos, vestidos e armados com bronze, os Primeiros Homens oprimiram a raça mais antiga onde quer que a encontrassem, pois as armas dos filhos eram feitas de ossos, madeira e vidro de dragão. Por fim, guiados pelo desespero, o pequeno povo se voltou para a feitiçaria e implorou que os videntes verdes detivessem a maré dos invasores.
E assim eles fizeram, reunindo-se às centenas (alguns dizem que na Ilha das Faces) e convocando os antigos deuses com canções, orações e sacrifícios macabros (mil homens cativos serviram de alimento para os represeiros, segundo uma versão do relato, enquanto outras afirmam que os filhos usaram o sangue de seus próprios jovens). E os antigos deuses se mexeram, e gigantes despertaram na terra, e toda Westeros sacudiu e tremeu. Grandes fendas apareceram na terra, colinas e montanhas desabaram e foram engolidas. E então o mar veio correndo, e o Braço Partido de Dorne foi partido e esfacelado pela força das águas, até que só algumas ilhas rochosas nuas restaram sobre as ondas. O Mar de Verão se juntou ao mar estreito, e o istmo entre Essos e Westeros desapareceu para sempre.
(O Mundo de Gelo e Fogo – Dorne – A Ruptura. Tradução de Marcia Blasques.)

Existem questionamentos dentro do próprio universo fictício sobre essa lenda. Um Arquimeistre sugere que a quebra do Braço de Dorne e o surgimento dos degraus se deveu ao derretimento das geleiras além do Mar Tremente. Diante do padrão cético que vigora na Cidadela, e de que o leitor tem contato com as criaturas que se julgavam extintas – os próprios filhos da floresta – a versão lendária da história se torna mais crível.

Fica claro, enfim, que a evocação de canções como instrumentos mágicos também está fortemente presente em As Crônicas de Gelo e Fogo, ainda que não possamos determinar bem como essa magia opera – o que é intencional da parte de George R. R. Martin.

Conclusões?

Pelo que podemos depreender das falas de George R. R. Martin, ele não pensou em um significado único e categórico para o título de sua série de livros. O autor tem, historicamente, um apreço especial pela palavra song (“canção”) nos nomes de suas obras, e esse foi mais um caso. Como se trata de uma fantasia ambientada em um mundo similar à Idade Média, a “canção” do título remete em um primeiro momento às canções de gesta do mundo real, que relatavam feitos históricos e grandiosos em um tom épico e poético.

Quanto ao gelo e o fogo do título, Martin disse, mais de uma vez, que existe um sentido mais óbvio para eles: a oposição entre os Outros, os seres inumanos que vêm do frio e inóspito Norte, e os dragões, vindos do leste. O autor também já admitiu, porém, que outras interpretações podem existir.

O gelo e o fogo são mencionados ao longo dos volumes da série, e várias vezes em núcleos que envolvem magia, mas as interpretações de personagens sobre os elementos divergem. A sacerdotisa e umbromante Melisandre, associada à magia de fogo oriental, os vê como opostos inconciliáveis. O núcleo dos Reed, por outro lado, que se relaciona à magia da terra, aos filhos da floresta e aos deuses antigos, aparentemente sugere a possibilidade de uma conciliação entre gelo e fogo.

Canções são mencionadas com frequência em As Crônicas de Gelo e Fogo. Na maioria das vezes, se referem a composições musicais que relatam feitos heroicos, mas também podemos observá-las associadas a magias de diversas naturezas. Em um contexto eminentemente mágico, ocorre uma menção literal a uma certa “canção de gelo e fogo” por personagens fortemente envolvidos com profecias: Rhaegar Targaryen e os Imortais de Qarth. Embora não saibamos a natureza exata dessa canção, a associação dela com grandes profecias, aparentemente centrais para o plano maior da história, é de grande relevância.

Suspeito que o próprio George nunca tenha planejado todos os sentidos possíveis para seu título de antemão, quando idealizou o plano geral de sua história. Acredito ser possível que alguns dos significados secundários tenham sido “descobertos” por ele mesmo durante a escrita de seus livros.

As temáticas associadas aos elementos ao longo dos volumes se relacionam com as da própria série de livros. Se o título, à primeira vista, sugere uma oposição, ao longo dos volumes vemos crescentemente situações de nuance e uma preocupação do autor com a rejeição ao antagonismo puro e simples. Assim, acredito que a interpretação conciliatória dos Reed esteja mais próxima da verdade que George quer transmitir do que a crença antagonística de Melisandre.

No final das contas, as palavras de George ecoam: não devemos tentar determinar um significado único e imutável para o título de As Crônicas de Gelo e Fogo. De qualquer forma, informação nunca é demais, e com sorte este texto pode ajudar mais leitores a embasarem suas hipóteses sobre o título com mais fundamentos.