Através da leitura dos romances de As Crônicas de Gelo e Fogo, nos deparamos com uma infinidade de situações em que nada é o que sugere ser. A história é temperada por muitos diálogos políticos e narrativas especulativas, enigmas, profecias, elementos sobrenaturais alegóricos, intrigas, segredos, conchavos, traições e revelações. E é claro, tem muita gente mentindo o tempo todo.
Sento-me naquela maldita cadeira de ferro e ouço-os se queixarem até ficar com a mente embotada e o rabo em carne viva. Todos querem alguma coisa, dinheiro, terra ou justiça. As mentiras que contam… e os meus senhores e senhoras não são melhores. Estou cercado de aduladores e idiotas. Aquilo pode levar um homem à loucura, Ned. Metade deles não se atreve a me dizer a verdade, e a outra metade não é capaz de encontrá-la. Há noites em que desejo que tivéssemos perdido no Tridente.
(A Guerra dos Tronos, capítulo 4, Eddard I)
Robert foi um homem que viveu enganado, reinando em uma corte composta por – para dizer o mínimo – uma rede de falsidades: Os filhos que criou como herdeiros não eram dele, tampouco estabeleceu relação afetiva com seus bastardos, negando (ou sendo privado) de fazer parte ativa dessas histórias e vidas. A mulher amada, a quem ele dedicou guerras e revoluções inteiras, possivelmente jamais o amou de volta. A paz que conquistou lhe custou a alcunha de usurpador. Suas duas Mãos trabalharam na busca de parte destas verdades, e morreram pagando o preço por elas.
Robert, Ned e Jon Arryn morreram para que mentiras fossem acobertadas. No processo, muitas revelações vieram à tona. E todos os outros personagens se equilibram em cordas bambas feitas do mesmo material: Theon, Daenerys, Jon Snow, Arianne, Arya, Davos, Sansa, Tyrion, e tantos outros. O leitor é sempre colocado em uma situação em que tenta desvendar as tramas nas quais esses personagens são colocados. Na maioria das vezes, acabamos analisando exageradamente as situações em uma espécie de busca insaciável por clareza dos fatos.
Vez ou outra, percebemos que há em diversas situações apresentadas muitas camadas que valem a pena serem descobertas. Neste artigo, iremos explorar mais uma dessas camadas, e ela fala sobre o que a atividade preferida de Robert pode nos dizer sobre as mentiras ditas em As Crônicas de Gelo e Fogo.
Em Westeros e em Essos, a gastronomia é um universo a parte. Descrições de pratos apetitosos e bebidas diversas são muito comuns através dos capítulos das Crônicas. Temos inclusive livros específicos sobre o tema. Dentro da história, refeições e banquetes são parte fundamental de cenários das tramas. E as bebidas que as acompanham revelam facetas de personalidades, condições socioeconômicas de povos e famílias, e principalmente o estado emocional de muitos personagens. Muitos são ou tornam-se alcoólatras.
Personagens desfrutam de uma infinidade de bebidas apresentadas nos livros, entre vinhos, hidromel, licores, rum, cervejas e preparos exóticos. Mas Martin desenvolve uma espécie de ideia fixa sobre vinhos. Ele sempre está ali, se destacando, quase como um personagem.
A presença de vinhos na história vez ou outra está ligada à ideia de subserviência, luxúria, e morte. Jon Arryn é morto por ter seu vinho batizado com lágrimas de Lys, e o crime é cometido pela própria esposa. Robert teve o vinho alterado com alto teor alcoólico, o que o tornou entorpecente e facilitou sua derrota no encontro com o javali. Daenerys sofre tentativa de envenenamento através da bebida, mas é salva por Jorah, um dos responsáveis pela traição. Meistre Cressen tenta matar Melisandre envenenada com o estrangulador, mas morre envenenado por um truque reverso que Melisandre realiza em sua taça de vinho. Dontos é torturado com vinhos por Joffrey e quase morto, mas salvo no último segundo por Sansa e Sandor Clegane. Tyrion utiliza poções no vinho de Cersei para mantê-la afastada das atividades da corte. Joffrey tem sua taça de vinho envenenada com o estrangulador no dia de seu casamento por aqueles que juraram lealdade a ele. Walder Frey é deliberadamente generoso com as bebidas durante o Casamento Vermelho, para que os nortenhos se embebedem e percam os sentidos antes de serem mortos.
Cerveja, vinho e hidromel fluíam tão depressa quanto o rio, lá fora. Grande-Jon já estava para lá de bêbado. O filho de Lorde Walder, Merrett, estava competindo com ele, taça atrás de taça, mas Sor Whalen Frey desmaiou tentando acompanhar os dois. Catelyn teria preferido que Lorde Umber tivesse achado por bem permanecer sóbrio, mas dizer ao Grande-Jon para não beber era como lhe pedir para não respirar durante algumas horas.
(A Tormenta de Espadas, capítulo 51, Catelyn VII)
A relação com a bebida nos livros de George é bem diversa: abre o paladar, aguça ou entorpece os sentidos, podendo te fazer relaxar ou te colocar em situações limite de embriaguez. Por outro lado, em muitos casos, vinhos ferventes são usados para tratar ferimentos, por exemplo.
Com uma bacia e uma lâmina afiada, Qyburn limpou o coto enquanto Jaime emborcava vinho-forte, babando-se todo enquanto ingeria. A mão esquerda não parecia saber como encontrar sua boca, mas havia uma vantagem nisso. O cheiro de vinho na barba encharcada ajudava a disfarçar o fedor do pus. Nada ajudou quando chegou o momento de desbastar a carne apodrecida. Jaime gritou e esmurrou a mesa com o punho bom, uma vez e mais outra. Voltou a gritar quando Qyburn despejou vinho fervendo sobre o que restava do coto. Apesar de todas as suas promessas e de todos os seus temores, perdeu os sentidos durante algum tempo. Quando acordou, o meistre estava costurando seu braço com uma agulha e tripa de gato.
(A Tormenta de Espadas, capítulo 31, Jaime IV)
Bebidas alcoólicas sempre foram preferidas na Idade Média. Eram vistas como mais nutritivas e benéficas para a digestão do que a água. O vinho era consumido diariamente na maior parte da França e em todo o Mediterrâneo ocidental, onde quer que uvas fossem cultivadas. Mais ao norte, o vinho era a bebida preferida que a burguesia e nobreza podiam pagar, e era muito menos comum entre camponeses e trabalhadores. A bebida dos plebeus no norte da Europa era principalmente cerveja. Perceba, Martin incorpora todas essas ideias em As Crônicas.
Os vinhos mais conhecidos e apreciados em Westeros são produzidos no sul do continente, em Dorne e na ilha da Árvore. Especialistas comparam os vinhos da Campina com os franceses, e os de Dorne com os portugueses e espanhóis, por exemplo.
Os vinho dornês, conhecido como “o tinto de Dorne”, é geralmente ácido, embora ocasionalmente tenha riqueza em suas notas. Vinhos mais fortes em Dorne são tão escuros quanto sangue, com um sabor doce.
Já a ilha da Árvore produz os vinhos mais cobiçados, tintos, doces e secos, bem como vinhos brancos, sendo o mais conhecido o chamado “dourado da Árvore”. O dourado é adquirido principalmente pela classe dominante e rica, e é considerado um deleite sempre que consumido. E certamente é possível encontrar outros produtores de vinho tinto na região da Campina. A Casa Redwyne, como sugere o próprio nome, lucra muito com os produtos locais, ostentando em seu brasão um cacho de uvas púrpuro simbolizando suas famosas vinícolas. Além disso, Jardim de Cima produz a famosa bebida hippocras, que nada mais é do que uma mistura de vinho e especiarias. No Norte, uma bebida parecida é preparada com safras de menor qualidade usando os mesmos ingredientes, resultando no vinho quente temperado que vemos comumente sendo consumido em Castelo Negro e Winterfell.
No nosso mundo real, o vinho branco, descrito como rico e frutado, transforma sua cor lentamente em amarelo dourado à medida que envelhece. Parece ser o caso do dourado da Árvore. George R. R. Martin, em uma entrevista de 2012, mencionou que na Roma Antiga os vinhos mais doces eram os mais procurados, os considerados vinhos de sobremesa nos dias de hoje. Na Europa Medieval e outras sociedades antigas, alimentos doces eram muito raros. Martin fala que estamos acostumados com coisas doces porque temos açúcar em toda parte, e o xarope de milho rico em frutose está em toda a nossa comida, assim como outros adoçantes diversos. Na Europa, o mel era o único adoçante. Frutas diversas só poderiam ser obtidas durante o verão, dependendo da sua localização geográfica. Se você vivesse na Escócia, por exemplo, nunca provaria um pêssego ou uma laranja. Assim, a doçura dos vinhos fazia produtos como os falernianos e os chianos serem valorizados.
Martin também conta que um especialista em vinhos lhe contou que não é possível obter ótimos vinhos em uma ilha, o que é o caso da Árvore em Westeros. Há algo sobre o vento predominante e o tipo de solo, e que grandes vinhos exigem um certo clima para serem produzidos. Para Westeros, onde as quatro estações são extremamente instáveis, podendo durar gerações, anos ou meses, Martin criou seu próprio ecossistema, onde os melhores vinhos são possíveis em ilhas e dragões existem.
O fato é que o dourado da Árvore é considerado o melhor vinho de Westeros e um dos melhores do mundo, por isso é provavelmente o vinho mais doce do continente. E por ser um dos melhores vinhos, é bastante caro. A bebida requintada é frequentemente mencionada em cerimônias e celebrações, quando grandes senhoras e senhores estão tentando construir alianças, em situações diplomáticas, ou para ostentar legados. E é com este olhar que esticaremos o assunto para confabular.
O termo “vinho” por si só é referenciado com bastante frequência em As Crônicas (1080 vezes). Mas “dourado da Árvore” surge no fluxo da história em contextos específicos. É um vinho apreciado, desejado. E precisamente por isso é uma ferramenta de sedução muito eficaz.
Em uma dessas hipóteses muitos interessantes, que você encontrará dando uma rápida busca em sites como Westeros.org ou reddit, defende-se que sempre que o dourado da Árvore é apreciado em alguma ocasião dentro dos livros, há segredos em andamento na cena, com farsas desenhadas, ou intenções escondidas. É como se o dourado da Árvore fosse usado para servir mentiras. Um leitmotif.
O texto fonte mais famoso e referido dentro desta hipótese está no livro O Festim dos Corvos, em um capítulo no qual Sansa e Mindinho trazem a bebida à tona um bom punhado de vezes, abertamente usando-a como alegoria.
Mindinho e Sansa planejam oferecer a bebida em reunião com os Senhores Declarantes no Vale. Petyr os manipula durante todo o capítulo (e todo o livro), mentindo sobre a morte de Lysa e assegurando-se no controle do castelo ao distribuir títulos e colocar os lordes uns contra os outros, fazendo Sansa tanto aluna quanto cúmplice de sua estratégia de poder.
— Algumas mentiras são por amor. — Petyr assegurou-lhe. Ela se lembrou disso.
— Quando nós mentimos para Lorde Robert foi apenas para poupa-lo. — Ela disse.
— E essa mentira pode nos poupar. De outra forma eu e você deixaremos o Ninho da Águia pela mesma porta de saída que Lysa usou. — Petyr pegou sua pena novamente. — Vamos servir-lhe mentiras e dourado da Árvore e ele [Nestor Royce] beberá e pedirá por mais, eu prometo.
Ele está me servindo mentiras da mesma forma, Sansa percebeu. Porém, elas eram mentiras reconfortantes, e ele as dizia com boa intenção. Uma mentira não é tão ruim se é dita com boa intenção. Se somente ela pudesse acreditar…
(O Festim dos Corvos, capítulo 10, Sansa I)
Nestor Royce e seu filho chegam ao Ninho da Águia para investigar o assassinato de Lysa Arryn. Embora esteja com medo, Sansa conta aos Royce que Marillion matou Lysa Arryn. Seu desconforto em mentir e ser quem não é (Alayne), misturado com as lágrimas pelo terror vivido a tornam ainda mais convincente. Então Marillion é conduzido à cena e confessa que matou sua amante porque não suportava a ideia de vê-la casada com Petyr.
Os Royce nunca gostaram de Marillion e não questionam sua confissão, concordando em mantê-lo preso nas celas do céu, para que morra eventualmente.
Um fogo baixo queimava no solar, onde um frasco de vinho os esperava. Dourado da Árvore. Sansa encheu o copo de Lorde Nestor enquanto Petyr incitava as toras com um atiçador de ferro.
Lorde Nestor sentou-se ao lado do fogo.
— Este não será o fim disso. — ele disse a Petyr, como se Sansa não estivesse ali. — Meu primo pretende interrogar o cantor ele mesmo.
(O Festim dos Corvos, capítulo 10, Sansa I)
No trecho acima, Nestor Royce alerta Petyr sobre Yohn Royce, seu primo, que tem planos de questionar a culpa de Marillion na morte de Lysa, e a posição de Mindinho como governante do Vale.
Mindinho já sabe disso e não se incomoda. Como recompensa por seus serviços, ele apresenta a Nestor um documento que faz dele e de seus descendentes os herdeiros dos Portões da Lua. Os Portões da Lua são as terras e castelo secundários que sempre estiveram na posse da linhagem principal dos Arryn. Nestor havia sido nomeado castelão do local, mas agora irá adquirir o castelo por direito próprio. De acordo com Petyr, Lysa já havia decidido dar o castelo para Nestor, mas foi assassinada antes que ela pudesse assinar o contrato. Quando Nestor Royce e seu filho saem, Mindinho explica a Sansa que os Royces agora estarão do seu lado.
Depois, muito depois, após a jarra de dourado da Árvore estar seca, Lorde Nestor despediu – se para juntar-se a sua companhia de cavaleiros. Sansa estava dormindo em pé naquela hora, querendo apenas rastejar para a sua cama, mas Petyr a pegou pelo pulso.
— Você vê as maravilhas que podem ser conseguidas com mentiras e dourado da Árvore?
Por que ela teve vontade de chorar? Era algo bom que Lorde Nestor estivesse do lado deles.
— Era tudo mentira?
— Nem tudo.
(O Festim dos Corvos, capítulo 10, Sansa I)
No documento expedido para Nestor, Petyr faz questão de assinar o acordo a próprio punho, não permitindo que o pequeno Robin Arryn seja responsável pelo contrato. Dessa maneira, será de interesse de Lorde Nestor manter Mindinho como Protetor do Vale. Se Mindinho viesse a cair, ele cairia junto.
— Sou tentado a dizer que este não é um jogo que jogamos, filha, mas é claro que é. O Jogo dos Tronos.
Eu nunca pedi para jogar. O jogo era perigoso demais. Um escorregão e eu estou morta.
(…)
Não confie em ninguém. Uma vez eu disse isso a Eddard Stark, mas ele não me ouviu. Você é Alayne, e você deve ser Alayne o tempo todo. — ele colocou dois dedos em seu seio esquerdo. — Mesmo aqui. Em seu coração. Você pode fazer isso? Você pode ser minha filha em seu coração?
— Eu…
Eu não sei, meu senhor, ela quase disse, mas não era isso que ele queria ouvir. Mentiras e dourado da Árvore, ela pensou.
— Eu sou Alayne, Pai. Quem mais eu seria?
Lorde Mindinho beijou sua bochecha.
— Com a minha inteligência e a beleza de Cat o mundo será seu, doçura. Agora vá para a cama.
(O Festim dos Corvos, capítulo 10, Sansa I)
A partir deste capítulo do livro, que de fato é bastante simbólico, leitores foram garimpando todas as outras ocasiões em que a bebida é servida. Listamos a seguir todos os exemplos, além do efeito que o vinho supostamente tem sobre cada situação.
No Salão de Baile da Rainha, Sansa observa Cersei aproveitar a bebida enquanto todas as mulheres nobres ali presentes fingem aproveitar a música e a comida oferecida, pois estão em desespero com a invasão de Stannis.
Cersei acenou ao pajem por outra taça de vinho, uma safra de ouro da Árvore, frutada e rica.
A rainha estava bebendo muito, mas o vinho só parecia torná-la mais bela; tinha as faces coradas, e nos olhos, um calor brilhante e febril ao ver o salão. Olhos de jogo vivo, Sansa pensou.
Músicos tocaram, malabaristas fizeram malabarismos. O Rapaz Lua cambaleou pelo salão sobre pernas de pau, caçoando de todo mundo, enquanto Sor Dontos perseguia criadas montado em seu cavalo de cabo de vassoura. Os convidados riam, mas eram risos sem alegria, o tipo de riso que pode se transformar em soluços em meio segundo. Têm os corpos aqui, mas os pensamentos estão nas muralhas da cidade e os corações também.
(A Fúria dos Reis, capítulo 60, Sansa VI)
No fim do capítulo, Cersei incentiva Sansa a provar em abundância um vinho doce de ameixa, e Sansa não consegue tomar a bebida de maneira graciosa, engasgando-se no processo. Irritada, Cersei revela, para total desespero de Sansa, que Sor Ilyn está de guarda para matar todas as mulheres presentes caso Stannis ganhe a batalha.
Neste caso, defende-se que Cersei aproveitou o dourado enquanto estava ali agindo como mártir, esperando pelo melhor, algo que ela mesmo confessa para Sansa. Conforme se embriaga, suas atitudes mudam, e ela torna-se cada vez mais violenta, algo que Sansa não compreende por completo. Desdenha de Sansa, diz que lágrimas não são a única arma de uma mulher, e que a melhor arma está entre suas pernas, algo que Sansa precisa aprender a usar. O jogo vira e Cersei parece parar de beber, já que a batalha aparentemente piora para o lado Lannister. Ao ouvir que Tyrion está lutando com seu machado na mão no Portão de Lama, Cersei imediatamente convoca Joffrey para a segurança.
E então outro vinho entra na cena, o de ameixa. É como se o vinho de mentiras cumprisse seu papel, mas conforme ele perde o efeito ou muda o sabor, Cersei resolve revelar a verdade.
O conselho de Joffrey se reúne para discutir os problemas do reino após a Batalha do Água Negra. Muitas coisas são negociadas neste capítulo, como a nova posição de Tyrion, a vindoura união entre Petyr e Lysa, novas estratégias contra Robb Stark, e até Daenerys e seus dragões – que são vistos como piada ou mentira.
Extensões menores de terra foram oferecidas a Lorde Rowan e separadas para Lorde Tarly, Senhora Oakheart, Lorde Hightower e outros ilustres que não se encontravam presentes. Lorde Redwyne pediu apenas trinta anos de perdão nos impostos que Mindinho e seus feitores vinícolas tinham feito cair sobre certos dos melhores vinhos da Árvore.
Quando isso lhe foi concedido, [Redwyne] declarou-se plenamente satisfeito e sugeriu que mandassem vir um casco de vinho dourado da Árvore, a fim de brindar ao Rei Joffrey e à sua sábia e benevolente Mão. Ao ouvir aquilo, Cersei perdeu a paciência.
— É de espadas que Joffrey precisa, não de brindes. — exclamou. — Seu reino continua empesteado de candidatos a usurpadores e autoproclamados reis.
(A Tormenta de Espadas, capítulo 19, Tyrion III)
Por último, o conselho trata dos espólios da guerra após a derrota de Stannis. O vinho é citado para que seja feito um brinde aos castelos e terras distribuídos a diversas famílias da Campina, em nome da saúde do rei Joffrey e de Tywin Lannister.
O exemplo mostra didaticamente como os líderes da Campina (Mathis Rowan, Paxter Redwyne, Mace Tyrell), usam a bebida para ostentar alianças e bajulações em geral. Cersei, no entanto, não compra o gesto. A maior parte do conselho é constituída por Tyrells, que, como sabemos, estremecerão a aliança livros mais tarde. Fica implícito que a mentira está justamente em brindar à saúde do rei que seria morto por aliados do reino aqui presentes.
Sansa serve a bebida a Tyrion em sua noite de núpcias. Todos acham que os dois irão consumar o casamento, mas a verdade sobre isso permanece apenas entre eles. Mais do que isso, Sansa mantém seus verdadeiros sentimentos escondidos de Tyrion, já que planeja fugir de Porto Real com a ajuda de Dontos.
Para a noite de núpcias, tinham – lhes concedido o uso de um quarto arejado no alto da Torre da Mão. Tyrion fechou a porta com um pontapé depois de entrarem.
— Há um jarro de bom dourado da Árvore no aparador, Sansa. Quer fazer a gentileza de me servir uma taça?
— Será isso sensato, senhor?
— Não há nada mais sensato. Não estou realmente bêbado, compreende? Mas pretendo ficar.
Sansa encheu uma taça para cada um. Será mais fácil se eu também estiver bêbada. Sentou – se na beira da grande cama de dossel e ingeriu metade do conteúdo de sua taça em três longos goles. Sem dúvida que o vinho era muito bom, mas estava nervosa demais para saborea – lo. A bebida deixou sua cabeça flutuando.
(A Tormenta de Espadas, capítulo 28, Sansa III)
Taena de Myr bebe a iguaria na companhia de Cersei. A nobre torna-se uma das pessoas de maior confiança para a rainha. No entanto, Taena e Orton Merryweather são os primeiros a fugir quando Cersei é presa pelo Alto Pardal por luxúria, fornicação, deicídio e alta traição.
— Temos vinho?
— Temos, Vossa Graça. — Orton Merryweather não era um homem bem parecido, com o seu grande nariz de aspecto pesado e o desordenado matagal ruivo alaranjado que tinha na cabeça, mas nunca era menos que cortês. — Temos tinto de Dorne e dourado da Árvore, e um belo hipocraz doce de Jardim de Cima.
— O dourado, me parece bom. Acho os vinhos de Dorne tão amargos como os dorneses. — Enquanto Merryweather lhe enchia a taça, Cersei disse: — Suponho que, já agora, podemos começar por eles.
(O Festim dos Corvos, capítulo 17, Cersei IV)
Lá fora se levantava um vento frio. Ficaram acordadas até tarde, madrugada adentro, bebendo vinho dourado da Árvore e contando histórias uma a outra. Taena embebedou-se bastante e Cersei arrancou-lhe o nome do seu amante secreto. Era um capitão naval de Myr, meio pirata, com cabelo negro até aos ombros e uma cicatriz que lhe marcava a cara do queixo a orelha.
— Disse-lhe cem vezes que não, e ele dizia que sim — disse-lhe a outra mulher — até que por fim também eu estava a dizer que sim. Ele não era o tipo de homem que podia ser recusado.
— Conheço o gênero — disse a rainha com um sorriso perverso.
— Vossa Graça alguma vez conheceu um homem assim?
— Robert – mentiu Cersei, pensando em Jaime.
(O Festim dos Corvos, capítulo 17, Cersei IV)
Em Winterfell, Wyman Manderly sugere saborear as tortas de porco preparadas por sua comitiva, acompanhando o dourado da Árvore na festa de casamento de Ramsay Bolton e Jeyne Poole. É possível que as tortas tenham sido feitas com cadáveres de homens da Casa Frey.
– A melhor torta que já provaram, meus senhores – o gordo senhor declarou. – Empurrem tudo para baixo com um dourado da Árvore e apreciem cada pedaço. Eu sei que vou.
Fiel à sua palavra, Manderly devorou seis porções, duas de cada uma das três tortas, estalando os lábios, batendo na barriga e se enchendo até a frente de sua túnica ficar meio marrom com manchas de molho e sua barba salpicada de farelos da massa.
(A Dança dos Dragões, capítulo 37, O Príncipe de Winterfell)
Wyman Manderly é um homem que, até aqui, já praticou sua boa dose de enganações e confabulações. Seu filho Wendel morreu durante o Casamento Vermelho, com uma flecha atingindo sua boca. Bastante entusiasta da gastronomia westerosi, Lorde Manderly apresenta um dos números mais macabros escritos nestes romances, e a presença da bebida luxuosa ajuda muito a indicar a natureza de suas intenções.
Movendo para outras citações, temos alguns exemplos onde a bebida não está presente em cena, mas é citada. É o caso do prólogo de O Festim, que se passa em uma famosa taverna local da Cidadela.
No Pena e Caneca, da Cidadela, Pate, Mollander, Alleras, Armen, Roone e Leo conversam. A cena é regada por enigmas: as lendas sobre Marwyn, o Mago, o fascínio ao redor das velas de obsidiana, revelações sobre a legitimidade de Daenerys e seus dragões e muito mais. É provável que o aprendiz Alleras (que tem o apelido de Esfinge) seja, na verdade, Sarella, filha de Oberyn Martell. E Pate, personagem central do capítulo, será morto momentos mais tarde, ao entregar um dos segredos da instituição a um assassino misterioso.
Embora houvesse uma dúzia de mesas vazias na varanda, Leo sentou-se na deles. — Compre para mim uma taça de dourado da Árvore, Salto de Rã, e eu talvez não informe o meu pai sobre o teu brinde. As pedras viraram-se contra mim na Sorte Xadrez e desperdicei o meu último veado no jantar. Leitão com molho de ameixas, recheado de castanhas e trufas brancas. Um homem tem de comer. O que vocês comeram rapazes?
— Carneiro. — resmungou Mollander. Não soava nada satisfeito com isso. — Partilhamos um quarto de carneiro cozido.
— Tenho certeza que estão satisfeitos. — Leo virou-se para Alleras.
— O filho de um senhor devia ser generoso, Esfinge. Soube que ganhaste o teu elo de cobre. Bebo a isso.
Alleras sorriu-lhe.
(O Festim dos Corvos, Prólogo)
Leo Tyrell é uma pessoa desprezível, que provoca e ofende os colegas o tempo inteiro. Em um outro trecho, Mollander faz pouco da predileção de Leo pela bebida.
— Já bebemos o suficiente. — disse Armen. — A manhã chegará mais depressa do que gostaríamos e o Arquimeistre Ebrose irá falar sobre as propriedades da urina. Aqueles que tencionam forjar um elo de prata fariam bem em não perder a sua palestra.
— Longe de mim afastar vocês da prova de mijo. — disse Leo. — Eu por mim, prefiro o sabor do dourado da Árvore.
— Se a escolha for entre você e o mijo, eu bebo o mijo. — Mollander afastou – se da mesa.
(O Festim dos Corvos, Prólogo)
O outro bom exemplo onde a bebida é apenas citada acontece em uma reveladora conversa que Tyrion tem com o Jovem Griff. Na ocasião, é dito que Varys fez um plebeu vender seu filho recém nascido pelo preço de uma jarra do dourado.
Na cena, Jovem Griff confirma sua verdadeira origem para Tyrion. A história, não importado sua legitimidade, é uma excepcional reviravolta.
O Jovem Griff afastou uma mecha de cabelos azuis dos olhos. (…)
– Não era eu. Eu disse para você. Aquele era o filho de algum curtidor da Curva do Mijaguado cuja mãe morreu no parto. O pai dele o vendeu para Lorde Varys por um jarro do vinho dourado da Árvore. Ele tinha outros filhos, mas nunca provara o dourado da Árvore. Varys deu o menino de Mijaguado para minha mãe e me levou embora.
– Sim – Tyrion moveu seus elefantes. – E quando o príncipe mijaguado estava seguramente morto, o eunuco contrabandeou você através do mar estreito até seu gordo amigo, o queijeiro, que o colocou em um barco de pesca e encontrou um lorde exilado disposto a se autodenominar seu pai. Essa é uma história magnífica, e os cantores falarão muito de sua fuga depois que você retomar o Trono de Ferro…
(A Dança dos Dragões, capítulo 22, Tyrion VI)
A cena citada acima evidencia detalhes de uma das maiores viradas dramáticas dos livros. Sendo a história verdadeira ou não, a presença da citação à bebida poderia contar pontos contra a narrativa de Varys.
Outro grande exemplo de cena com o dourado acontece após o casamento entre Daenerys e Hizdahr. No trecho, a rainha e Drogon estão desaparecidos após os desdobramentos de Daznak. Barristan se reúne com o rei, e Hizdahr exige que seus empregados lhe sirvam o vinho dourado, enquanto os dois falam sobre sonhos e mentiras.
– Sor Barristan. – Hizdahr bocejou novamente. – Que horas são? Há alguma notícia da minha doce rainha?
– Nenhuma, Vossa Graça.
Hizdahr suspirou.
– Vossa Magnificência, por favor. Embora, a esta hora, “Vossa Sonolência” fosse mais adequado. – O rei foi até o aparador servir-se de um pouco de vinho, mas apenas uma gota restava no fundo do jarro. Um lampejo de contrariedade cruzou seu rosto. – Miklaz, vinho. Imediatamente.
– Sim, Vossa Veneração.
– Leve Draqaz com você. Um jarro de dourado da Árvore, e um daquele tinto doce. Nada do nosso mijo amarelo, por favor. E, da próxima vez que eu encontrar meu jarro vazio, posso ter que fazer uma mudança nas suas belas bochechas rosadas. – O garoto saiu correndo, e o rei virou-se para Selmy . – Sonhei que tinha encontrado Daenerys.
– Sonhos podem mentir, Vossa Graça.
– “Vosso Iluminado” serve. O que o traz aqui a esta hora, sor? Algum problema na cidade?
(A Dança dos Dragões, capítulo 67, O Derrubador de Reis)
Quem está com O Derrubador de Reis fresco na cabeça deve se lembrar o que acontece depois. Barristan acusa Hizdahr de ser a Harpia e tentar envenenar Daenerys. Hizdahr prontamente nega os crimes. Barristan então duela com Khrazz, um dos lutadores da arena que se torna guarda pessoal do rei. O duelo acaba quado Barristan mata Khrazz. Em seguida, os empregados chegam para servir o vinho pedido no começo do encontro, mas trazem também notícias terríveis: Viserion e Rhaegal foram soltos de seu covil.
Aqui temos um bom exemplo de como a presença do vinho é absolutamente coadjuvante dentro de uma narrativa onde muita coisa acontece ao mesmo tempo.
Contando nos dedos, há outras pequenas citações ao dourado em As Crônicas. A primeira é em Jaime I de O Festim, quando Jaime questiona se Tyrion e Varys estariam a caminho da liberdade desfrutando um barril da bebida da Árvore naquele momento. Depois, em Cersei IV do mesmo livro, é dito que o Septão Luceon, foi visto tentando comprar votos para ser eleito o novo Alto Septão do reino. A moeda usada? Galões de dourado e leitão assado, oferecidos com generosidade para seus colegas. No entanto, para os pobres, ele oferecia apenas pão duro no seu trabalho diário. Quando chegam notícias da invasão Greyjoy na Árvore em Cersei VII, também em o Festim, Cersei imediatamente sente sede e pede pelo dourado, pensando que a bebida pode tornar-se escassa por conta da pilhagem de Euron.
Em A Dança dos Dragões, Tyrion visita a adega de Illyrio e descobre três barris do dourado em seu porão, entre outras safras requintadas.
Havia vinho suficiente ali para mantê-lo bêbado por centenas de anos; tintos doces da Campina e tintos amargos de Dorne, pálidos âmbares pentoshis, o verde néctar de Myr, três tonéis pontuados de dourado da Árvore, além de vinhos do lendário leste, de Qarth e Yi Ti, e Asshai da Sombra. No fim, Tyrion escolheu um barril de vinho forte marcado como estoque pessoal de Lorde Runceford Redwyne, o avô do atual Lorde da Árvore. O gosto era lânguido e pesado na língua, a cor, um roxo tão escuro que parecia quase negro na adega pouco iluminada. Tyrion encheu uma taça e um garrafão com uma boa quantidade e levou-os para o jardim, pensando em beber sob as cerejeiras que vira mais cedo.
(A Dança dos Dragões, capítulo 1, Tyrion I)
Capítulos mais tarde, Tyrion pensa que o caneco que ele está oferecendo a Merreca não é nenhum dourado da Árvore.
— Então beba um pouco de vinho. — Encheu uma taça e a fez deslizarpara ela. — Cumprimentos do nosso capitão. Se parece mais com mijo do que com dourado da Árvore, em boa verdade, mas até o mijo desce melhor do que o rum preto como alcatrão que os marinheiros bebem. Pode ajudar-lhe a dormir.
A menina não fez qualquer movimento para tocar na taça.
— Obrigada, senhor, mas não. — Recuou. — Não devia estar o incomodando.
(A Dança dos Dragões, capítulo 33, Tyrion VIII)
No primeiro exemplo, vemos Tyrion se embebedando na casa de um homem que potencialmente tem todos os motivos do mundo para mentir para ele. Em contraste, mais tarde na história, vemos Tyrion se relacionar com Merreca e ser duramente sincero com ela, na maior parte do tempo. Com Illyrio, Tyrion bebe vinhos finos. Com Merreca, não.
Temos outros exemplo no conto A Princesa e a Rainha, em um momento mais literal. As Estrepes pretendiam matar Ulf, o Branco envenenando seu vinho. Sor Robert Hightower presenteia Ulf com dois barris de vinho, um tinto dornês, e um de dourado da Árvore. Quando Ulf suspeita de Sor Hobert Hightower, Hobert concorda em beber do mesmo vinho que Ulf. Ambos morrem tomando o vinho envenenado.
A ideia de saborear bebidas caras está de dando dor de estômago? Calma que tem mais.
Na cena que abre o episódio 7.01 ‘Dragonstone‘, vemos Arya concluindo os trabalhos macabros que orquestrou contra a Casa Frey. Na sequência, vemos Lorde Walder servindo taças fartas de vinho, que ele identifica como dourado da Árvore, para todos os homens e agregados de sua família.
Na ocasião, muitos entusiastas dos livros de Martin apontaram que esta poderia ter sido uma sutil referência a este estado de espírito dos romances, já que Walder na verdade era Arya Stark vestindo seu rosto, portanto, uma mentira. Uma mentira muito macabra. Uma vingança.
As leitoras e os leitores mais atentos perceberão que esses exemplos, embora indiscutivelmente convidativos, estão longe de ser as únicas cenas que dialogam com a ideia de segredo ou engano em As Crônicas. Afinal de contas, a bebida não é citada em uma infinidade de outras cenas emblemáticas.
Onde estava a referência ao vinho a cada vez que Renly tentou negociar com Catelyn, Ned ou Stannis? A cada vez que Ned falou sobre Lyanna para Jon Snow? A cada vez que Osney Kettleblack bajulou Margaery? A cada vez que Arya serviu Roose Bolton em Harrenhal? Ou a cada vez que Tywin emitia uma carta da Torre da Mão?
Qual seria o número de interações entre os nobres em Westeros ou Essos que contém uma dose generosa de mentiras? Ou que tenha mentiras servidas com bebidas de outra natureza?
Em a Fúria dos Reis, Janos Slynt tenta convencer Tyrion de que é um bom homem, e pergunta se o vinho que Tyrion está servindo a ele é da Árvore. “Não, é dornês” – Tyrion responde, para minutos mais tarde expulsá-lo da guarda da cidade e enviá-lo para a Muralha.
Em A Guerra dos Tronos, o homem que tenta envenenar Daenerys oferece vinho dornês antes de oferecer seu tinto da Árvore para khaleesi. Neste caso, o vinho dornês era “limpo”, e o da Campina era veneno. Mas era apenas um vinho tinto.
Ned e Robert também saboreiam um tinto da Árvore em A Guerra dos Tronos quando Ned repousa após machucar a perna na emboscada de Jaime Lannister. Ned mente para Robert, e afirma que Catelyn sequestrou Tyrion porque Ned ordenou que ela o fizesse.
Uma das melhores cenas em As Crônicas de Gelo e Fogo, na minha opinião, acontece em A Fúria dos Reis, quando Catelyn visita Jaime em suas celas para interrogá-lo. Neste caso, ela literalmente usa o vinho (descrito como “azedo e péssimo“) para deixar Jaime bêbado e fazê-lo falar a verdade: que Jaime é de fato pai dos filhos de Cersei e que derrubou Bran da torre.
Há pouco nessa cenas sobre a origem do vinho, mas muito sobre justiças e traições. No exemplo da cena de Arya na série, acredito que o vinho tenha sido citado apenas porque está presente na cena da torta Manderly nos livros.
Em contraponto, poderíamos observar como a dourado da Árvore se encaixa em cada um dos estratagemas em que ele é personagem. Quem exatamente está sendo enganado nestas cenas? O homem que supostamente vendeu seu filho para Varys não estava sendo enganado. Então quem está sendo enganado é Tyrion ao ouvir essa história? Ou o leitor?
No exemplo do capítulo de Sansa, Nestor Royce está sendo parcialmente enganado e parcialmente cúmplice dos planos de Petyr. A maneira como a pessoa aceita a mentira é muito diferente nestas duas cenas. E há situações completamente contrárias, como os juramentados de Roose Bolton que são totalmente enganados em Winterfell por Wyman Manderly. Talvez, neste caso, o leitor também seja enganado por tabela, mas… somos enganados o tempo todo e essa é a verdade.
Qual seria a regra? Por quais lentes poderíamos analisar o papel da suposta mentira em cenas como estas?
O caso dos vinhos na adega de Illyrio, por exemplo, podem ser apenas um indicador da riqueza dele. Podemos esperar de Illyrio e Varys mentiras desde o livro um, afinal de contas. Em uma história onde as pessoas mentem o tempo inteiro, torna-se exaustivo caçar pistas desta natureza. Quando você começa a comparar essas ocorrências mundanas de vinhos suspeitos em taças suspeitas ao longo dos livros, com instâncias de traição ou falsidade, por qual motivo você ficaria surpreso ao ver que elas combinam com bastante frequência?
O dourado da Árvore é mencionado cerca de vinte vezes no texto dos cinco romances publicados, a maioria deles ocorrendo no Festim e Dança. O termo “mentiras e dourado da Árvore ” é proferido duas vezes por Mindinho, e isso acontece durante uma única reunião de negócios. Sansa repete a frase uma vez em seus pensamentos no mesmo capítulo.
A bebida é uma das safras de maior qualidade do mundo, e a mais procurada nos Sete Reinos. É famosa mesmo fora dos reinos, por isso faz sentido que esteja nas adegas da nobreza de Westeros. Aquele que pode se dar ao luxo de bebê-lo e servi-lo aos convidados demonstra ter poder, por isso sua presença nessas cenas é esperada. Acredito que a dificuldade aqui seja mostrar que o papel do vinho nessas cenas possa ser explicado além do fato de ser uma potencial armadilha usada para manipular essa própria elite afetada e frequentemente embriagada.
Além disso, diversas cenas carregadas de ações escondidas, mesmo com a citação da bebida, não parecem ter ligação indispensável com ela. Como exemplo, cito o próprio prólogo de o Festim, destacado acima. Tem muita coisa acontecendo antes, durante e depois dessa cena, e ninguém precisa ser convencido a nada dentro de suas próprias jornadas através de uma taça de vinho que seja.
Vinhos doces da Árvore (não necessariamente o dourado) são servidos em abundância na estadia que Tyrion na mansão de Illyrio em Pentos, e também na festa de casamento de Daenerys com Hizdahr em Meereen, como citamos anteriormente. São cenas repletas de estratagemas em andamento, sentimentos reprimidos e resoluções não ditas. Nos dois casos, alianças são feitas sem a menor possibilidade de confiança integral para ambos os lados. Tanto em Meereen quando em Pentos, a origem das bebidas servidas são eclipsadas por outro agente: os venenos. Tyrion encontra cogumelos envenenados nos jardins de seu hóspede nos primeiros dias de sua estadia, e Daenerys sofre uma tentativa de envenenamento durante as festividades de Daznak, no dia seguinte do banquete de seu casamento.
E em Dorne, vemos vinhos de Dorne. É, no entanto, impossível dizer que os capítulos narrados em Dorne não tenham doses generosas e camadas e mais camadas de mentiras. Aliás, Quentyn Martell, Gerris Drinkwater e Archibald Yronwood atravessam Essos em busca de Daenerys fingindo ser vendedores de vinhos dorneses. As mentiras que Quentyn e seus outros companheiros contam para chegar até a presença de Dany em Meereen são muitas. Nenhuma é servida com o dourado.
A provocação de Petyr Baelish nos capítulos de Sansa tem um simbolismo tão marcante que consegue se esticar e se impôr para todas as outras cenas em que a bebida aparece. Talvez, a ideia de servir mentiras seja forte dentro deste contexto por ser justamente uma ideia proferida por um homem que diz servir à todos que encontra (Robert, Ned, Catelyn, Tywin, Cersei, Lordes Declarantes), mas na verdade não serve a ninguém. Só a si mesmo.
Também acredito que, de alguma maneira, Baelish constantemente desconstrói a ideia de servir, neste universo em que poucos têm o privilégio de desfrutar das melhores bebidas. Não porque ele planeja uma Westeros justa para aqueles que, assim como ele, têm origem humilde. Mas porque ele se beneficia de relações de poder instáveis. E é para estas relações que ele sempre estará pronto para apresentar seus serviços.
Com a chegada do inverno, é interessante perceber que colheitas e safras serão mais valiosas do que nunca. Com o perigo que espreita ao norte da Muralha, como Westeros irá lidar com a distribuição de alimentos, cultivação de provisões e espólios da terra em um mundo de terror constante? O sul também será coberto por gelo, criaturas e escuridão, como contam as lendas? Neste sentido, qual será o valor de vinhos finos e ouro em uma Westeros coberta pela escuridão? Mindinho parece ser justamente uma das poucas pessoas que têm o privilégio de poder pensar nessas questões neste momento. Enquanto os Sete Reinos estão mergulhados no caos, ele se esconde no Vale, e se recusa a vender alimentos locais, como analisamos em nossa leitura de Alayne I de Os Ventos de Inverno.
Mindinho ascendeu socialmente sabendo tratar de economia, atuou como mestre da moeda por anos. Ele deixou o reino em profunda dívida, e não sabemos até que ponto ele fez isso deliberadamente. Pelo bem ou pelo mal, ele entende o valor das coisas, ou pelo menos a maneira que as pessoas lidam com situações que são inestimáveis. Isso não quer dizer que ele seja bom com dinheiro, mas que ele é ótimo em tratar de aspectos estruturais e dinâmicas em que dinheiro esteja envolvido. Isso vale para posses, afinal, hoje ele é senhor de dois castelos e líder do Tridente. E isso vale para o próprio valor humano: Família, honra, legado, e como ele conseguiu desestruturar duas famílias inteiras, baseado naquilo que é imensurável a elas. Tratando-se de posses e valor humano, é importante ressaltar sua relação com a administração de muitos bordeis da principal cidade de Westeros, e quantas informações e segredos valiosíssimos ele pode ser obtido como lucro nestes anos.
Existem poucas mulheres e poucos homens como Mindinho em Westeros. Mas sem dúvida mulheres e homens ambiciosos como ele estão envolvidos nas cenas descritas neste artigo. Talvez, principalmente os homens e mulheres da Campina, que estão à espreita, agarrados na barra das calças de Tommen: Redwynes, Tyrells ou Merryweathers. E são justamente eles, os responsáveis pelos melhores vinhos de Westeros. Mas é necessário apontar que, como cada um destes exemplos mostra, não são só as famílias da Campina envolvidas nestas cenas enigmáticas. Em primeiro lugar, o personagem que protagoniza essa teoria é Petyr Baelish. Além disso, Hizdahr, Varys, Illyrio, Wyman Manderly, todos possuem origens diversas.
Há quem defenda que Lorde Baelish cita o termo “Mentiras e dourado da Árvore” por se tratar de uma referência a algo que já aconteceu mas não tivemos conhecimento ainda. E que este algo possa ter relação com a maneira que Mindinho “aprendeu” a usar esse tipo de tática para ascender e governar. Olenna e Mindinho conspiraram para matar Joffrey, por exemplo. No entanto, jamais vimos como este acordo aconteceu, sequer outros tantos. A própria história de origem de Petyr é baseada em mentiras, com os rumores que ele espalhou sobre ter tirado a virgindade de Catelyn Tully. Há quem acredite em mentiras como essa e outras tantas, afinal de contas.
Na melhor das hipóteses, parece ser uma frase de efeito de Mindinho que só ocorreu a Martin durante a escrita do Festim. É, enfim, um poderoso elemento narrativo. Tem quem acredite se tratar de simbolismo puro, como rosas azuis representam Lyanna, ou tantos outros elementos costumam nos convidar à correlações temáticas, como as safiras de Brienne, os corvos que evocam o sobrenatural (Brynden Rivers, Euron, Jon Snow), o pêssego de Renly etc. Esse tipo de recurso é comum em literatura e mitos, como a associação de Perséfone e as romãs, por exemplo.
Mas também tem quem acredite que seja apenas uma sólida construção de um universo fictício: pessoas ricas bebem vinhos caros. E, como diz o Príncipe Esfarrapado para Quentyn, “é preciso tomar cuidado apenas quando a comida é tentadora. Envenenadores invariavelmente escolhem os pratos mais seletos.”
Usar o dourado da Árvore como um indicador de declínio moral poderia nos levar a outra análise sobre o uso da cor dourada nos livros. Como os cabelos dourados dos Lannister, ou o fato de Tyrion dizer que Tywin “defeca ouro”. Nestes casos, o ouro e o dourado são usados como agentes de duplicidade. Tywin tem muito dinheiro, mas qual o seu verdadeiro valor? Cersei é uma das mulheres mais belas de Westeros, por fora. Mas e por dentro? Ou a Companhia Dourada, a mais famosa companhia mercenária do mundo conhecido, que é composta por exilados desonrados, e usa o ouro como preço de qualquer ideal que seja estabelecido em contrato. Grosseiramente, parece que o uso da cor dourada por George R. R. Martin é frequentemente feito para fazer pouco do acúmulo de riquezas, uma maneira de exaltar seus absurdos com olhos extremamente analíticos.
Por fim, não parece surpreendente que, de todos os vinhos de Westeros, aquele que está associado tematicamente ao engano seja uma cor dourada.
A doçura do vinho também deve ser levada em conta, como diz Roose Bolton ao filho Ramsay:
O poder tem um gosto melhor quando adoçado com cortesia. É melhor que aprenda isso, se pretende governar um dia.
(A Dança dos Dragões, capítulo 32, Fedor III)
Concluo que, de fato, há muitas maneiras de servir mentiras em As Crônicas de Gelo e Fogo.
Sansa é uma personagem que tem uma jornada peculiar com o conceito de mentira. Mentir é uma parte vital da maneira que Sansa lida com os abusos que sofre, tanto no corpo quanto na mente, e freqüentemente ela enterra a verdade embaixo das mentiras que ela conta para si mesma enquanto segue em frente. Falamos disso anteriormente no artigo sobre o “Não-Beijo“.
Ela, no entanto odeia mentiras, foi traumatizada por mentiras, e claramente mente para si mesma para amenizar os efeitos de traumas sofridos. Veja bem, não é como se seus irmãos também não precisassem mentir para continuar vivos. Jon mente para os selvagens e é capaz de matar um irmão da Patrulha para que sua mentira seja aceita. Arya usa codinomes, chega a fingir ser menino e plebeia, e neste momento estuda em uma Ordem para tornar-se mentirosa profissional (cada vez melhor no jogo da mentira) e assassina profissional.
No entanto, mentir servindo bebidas luxuosas é um recurso simbólico e interessante. Pode ser que seja impossível confiar em qualquer pessoa servindo um dourado da Árvore na série de livros. Pode ser que seja um olhar sobre as riquezas acumuladas da Campina, e como o dinheiro governa a relação entre os personagens. Pode ser que, em um mundo repleto de tantas mentiras, as pessoas estejam apenas jogando seu velho jogo dos tronos, tentando manter-se vivas. Até quando isso se manterá, apenas o tempo dirá.
Daenerys foi literalmente profetizada como A Matadora de Mentiras. Isso certamente não tem relação direta com as ideias defendidas aqui, não ainda. Mas é algo interessante a se pensar.
Como Aemon diz para Sam em Braavos, “mesmo a música mais fantasiosa pode ter um fundo de verdade“. Talvez a teoria das mentiras e o dourado da árvore seja mais uma canção cheia dessas fantasias. Resta a você saboreá-la com moderação.
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