Stannis Baratheon é, com toda certeza, um dos personagens de George R. R. Martin em As Crônicas de Gelo e Fogo que mais divide opiniões. Isso se dá, especialmente, porque ele enfrenta uma série de dilemas, e, muitas vezes acaba pensando de maneira utilitária, contrariando valores estabelecidos, além de ter uma postura rígida e, por vezes, desagradável com aqueles ao seu redor. O rei já é amplamente discutido, e não me importa aqui fazer uma avaliação geral de seu caráter, mas de um caso específico: a morte de Meistre Cressen.

Meistre Cressen
Cressen, por Rafal Hrynkiewicz. © Fantasy Flight Games.

Escrevi este texto durante uma de minhas releituras de A Fúria dos Reis, e a numeração de páginas que estou usando para referenciar é a edição de 2015 da editora Leya, ou seja, em outras edições, as mesmas passagens estarão em páginas diferentes. Porém, praticamente tudo que uso aqui é o prólogo deste mesmo livro. Outras poucas informações descobrimos mais à frente.

Neste prólogo, somos apresentados a Cressen, meistre de Pedra do Dragão, que serve Stannis Baratheon como servira seu pai Steffon em Ponta Tempestade. Stannis, até então, havia sido apenas mencionado em A Guerra dos Tronos (A Game of Thrones). O leitor ainda não havia visto o personagem cujo direito Eddard Stark morre por defender, o que cria certa aura de mistério a seu respeito.

Como já sabemos, ao final do capítulo, Cressen é morto após beber do vinho envenenado que tentou usar para assassinar Melisandre, em um banquete na frente dos principais vassalos de Stannis. Este se cala durante a situação, e por isso, é odiado por muitos desde sua estreia na obra.

Porém, me propus a uma leitura mais atenta para tentar reconstituir as atitudes de Stannis em relação a Cressen nos momentos que antecedem sua morte.

Cressen excluído?

O capítulo se passa em menos de vinte e quatro horas. Cressen acorda cedo, no raiar do dia, e morre durante um banquete na mesma noite. No início do dia, após receber a princesa Shireen e seu bobo, Cara Maralha,  é avisado por seu colega mais jovem, Meistre Pylos, que Davos Seaworth retornou durante a madrugada, e se reuniu imediatamente com Stannis (pág. 13), que não chamou seu velho meistre.

Nesse momento, Cressen pensa que Stannis o está afastando, que antigamente teria sido chamado, e se sente cada vez mais preterido, especialmente por ter sido excluído de um conselho:

Em tempos passados, Lorde Stannis teria mandado acordá-lo a qualquer hora, para tê-lo junto de si, a fim de aconselhá-lo. (pág. 13).

Quando vai ao encontro do rei, no entanto, Cressen não percebe que seus outros conselheiros também não haviam sido chamados. Durante a noite, estiveram apenas Stannis e Davos, pois Melisandre, Selyse e Pylos são chamados depois, e os outros grandes vassalos seriam ouvidos apenas no banquete.

Portanto, Stannis nem sequer convocou um conselho, mas quando Cressen vai até ele, é escutado e suas opiniões são levadas em conta, como é o caso de buscar uma aliança com os Arryn (pág. 19). Os motivos de Stannis para não tê-lo chamado imediatamente são expressos de maneira também bem franca pelo rei:

– Em outros tempos, teria mandado me acordar – disse o velho.

– Em outros tempo o meistre foi novo. Agora é velho e doente e precisa dormir – Stannis nunca aprendera a suavizar o discurso, disfarçar ou lisonjear; dizia o que pensava, e quem não gostasse, que se danasse. (pág. 17).

Stannis: desagradável não só com seu meistre

Cressen e Stannis, por Lu

Embora seja recebido com certa amargura, o meistre também sabe que Stannis é habitualmente assim, e espera que um dia ele aprenda a sorrir novamente. É justamente por isso que sempre foi o preferido de Cressen entre os três irmãos: por ser aquele que “não era amado” (pág. 24).

Não é minha intenção defender a postura de Stannis, mas desmistificar que ele teve uma atitude especialmente grosseira com Cressen. Na chegada de Melisandre, sua postura é a mesma:

– Deverá o senhor de direito dos Sete Reinos suplicar a ajuda de viúvas e usurpadores? (…)

– Eu não suplico. De ninguém. Tente se lembrar disso, mulher. (Pág. 19).

E é claro, podemos encontrar inúmeras grosserias de Stannis. Para citar alguns exemplos, o rei é ríspido com Janos Slynt, Justin Massey, Jon Snow, Davos, Selyse, Axell Florent, e praticamente todos os personagens com quem contracena. Esse traço faz parte do humor do personagem, e como descobrimos com o tempo, Stannis demonstra o valor que dá aos seus aliados através de suas ações. Ou como Melisandre declara em A Dança dos Dragões:

– São seus silêncios que você deve temer, não suas palavras. (A Dança dos Dragões, pág. 55. Jon I).

A conduta do velho meistre

Meistre Cressen e o veneno
Cressen, por J. Edwin Stevens. © Fantasy Flight Games.

Quando Cressen volta aos seus aposentos, começa a planejar algo para a noite: envenenar Melisandre. Enquanto são muito comuns visões que defendem que Stannis agiu com ingratidão para com Cressen, é de se observar, que sem qualquer tipo de consulta, e sem que qualquer ofensa lhe fosse realmente deferida, o meistre planejou assassinar uma das principais conselheiras do rei a quem servia. Qual deles exatamente traiu a confiança do outro neste ponto? Até aqui, houve apenas fantasias da parte do meistre, e que o levaram a um ato extremo.

Quando acorda, Cressen percebe que Pylos não está por perto como deveria e então, vai até o salão. Ao chegar lá, o velho meistre é motivo de piadas incentivadas por Melisandre, e quando confronta Pylos por não acordá-lo como o combinado, o meistre mais novo revela que o rei comandou que ele assim fizesse (pág. 23).

Notemos, então, que Stannis, por alguma razão, não queria Cressen por lá. Seria por não considerá-lo digno, mesmo depois de ouvir seus conselhos cuidadosamente? Ou seria por saber mais do que nosso ponto de vista tendencioso acredita? A próxima atitude de Stannis também é humilhar Cressen, primeiro com palavras:

– Está doente e confuso para me ser útil, velho – soava tanto como a voz de Lorde Stannis, mas não podia ser, não podia. – Daqui em diante, Pylos irá me aconselhar. Já cuida dos corvos, uma vez que você já não é mais capaz de subir até o viveiro. Não deixarei que se mate ao meu serviço. (pág. 24).

Na sequência, permitindo a sugestão de Selyse para que o meistre use o chapéu do bobo Cara Malhada. Mas quando Selyse insiste na piada, Stannis a censura e pede que pare:

– Talvez ele deva, daqui pra frente, cantar os seus conselhos – disse a Senhora Selyse.

– Foi longe demais, mulher – repreendeu-a Lorde Stannis. – É um velho, e serviu-me bem. (pág. 25).

Após ser humilhado, Cressen prossegue com o plano (pág. 25). Convida Melisandre para dividir com ele uma taça de vinho, e, mesmo que ela demonstre entender o que está acontecendo e o convide a desistir, o meistre segue em frente. Por causa de algum dos truques da sacerdotisa, o veneno tem efeito apenas no velho, e é ali que Cressen morre.

Conclusões

“Clash of Kings – Prologue” por Hed-ush

Depois do ocorrido, em “Davos I” de A Fúria dos Reis (pág. 101), Stannis se manifesta sobre Cressen:

– É culpa dele que o velho tenha morrido? – Stannis deu uma olhada para o fogo. – Nunca quis Cressen naquele banquete. Sim, ele tinha me irritado, tinha me dado maus conselhos, mas não o queria morto. Tive esperança de que lhe pudessem ser concedidos alguns anos de tranquilidade e conforto. Merecia pelo menos isso, mas… – rangeu os dentes – morreu. E Pylos me serve com competência. (pág. 110).

Com isso, torna-se clara a interpretação de que Stannis não estava sendo arbitrariamente cruel, mas sim, que estava tentando evitar que a situação se tornasse extrema.

Para deixar claro, gosto muito do personagem de Cressen, e tenho uma preferência ainda maior por Stannis. Porém, é preciso dissecar os capítulos para vermos o Stannis que está por trás das visões enviesadas dos personagens.

Embora não seja perfeito e de fato seja rude, mesmo com as pessoas mais próximas, Stannis não é alguém que está sacrificando todos ao seu redor por prazer pessoal. As atitudes de Cressen foram bastante problemáticas, e podem ser categorizadas como traição, por mais que ele tivesse seus motivos.

A partir daí, o que proponho, em um sentido mais amplo, é que ler e reler As Crônicas de Gelo e Fogo é, quase sempre, um exercício de buscar nos detalhes e no não-dito não apenas as respostas para o que é abertamente um mistério, mas também, maneiras de reinterpretar o que parece explícito. Especialmente quando estamos limitados ao conhecimento e ao ponto de vista de um personagem que é, afinal de contas, extremamente humano.