Na segunda metade da década de 80, um George R. R. Martin quase falido passou a trabalhar em Hollywood. Ele roteirizou, supervisionou e produziu séries de TV por anos, até retomar sua atividade de escritor, quando publicou A Guerra dos Tronos, em 1996. Como ele mesmo aponta, trabalhar na televisão traz muitas dificuldades, e a maior parte do que é escrito e produzido nunca chega ao espectador.
Entre essas produções que nunca foram ao ar está uma série que Martin foi convidado a criar em 1993, e que viu a luz do dia com uma versão em quadrinhos apenas em 2019: Starport.
Uma das versões do roteiro já havia sido publicada antes, na coletânea Quartet: Four Tales from the Crossroads, mas além da baixa circulação, é claro que ler um script não é a mesma coisa que ter o acesso aos elementos visuais que ele propõe.
Quando a emissora Fox contatou George, pediu por uma série de ficção científica policial. Inspirado na recém cancelada Alien Nation, o autor inverteu a premissa. Ao invés de um policial com seu parceiro alienígena, vindo de uma raça refugiada na Terra, Martin criou Starport, um mundo onde a Terra fora descoberta por uma confederação de aliens, que abriu três portos intergaláticos para comércio.
A série se passa na cidade que sediou um deles, Chicago, onde acompanhamos uma equipe policial tendo que lidar com os mais diversos conflitos de uma sociedade que se vê, de uma hora pra outra, tendo que conviver com formas de vida muito diferentes.
Em 2015, Martin entregou suas versões dos scripts para sua minion e diretora de arte, Raya Golden. Raya já havia trabalhado adaptando um conto do autor para quadrinhos com O Homem do Depósito de Carne, versão que chegou a ser indicada ao prêmio Hugo. Mas dessa vez, depois de quatro anos de trabalho, o resultado é ainda mais impressionante: uma graphic novel muito consistente de quase trezentas páginas, com uma arte brilhante, que carrega o significado do enredo tanto quanto o texto, e extremamente envolvente.
Os dilemas morais são o ponto chave dessa obra, como sempre esperamos de Martin. Não é sobre a existência de seres de outros planetas e as cenas de ação (embora também estejamos bem servidos das duas coisas), mas sobre como as pessoas, humanos ou aliens, vão lidar com tudo isso. “O coração humano em conflito consigo mesmo”, como definiu Faulkner e Martin gosta tanto de citar.
No entanto, de alguma maneira, esses temas me parecem ainda mais relevantes agora do que quando foram escritos. O contexto das mais diversas crises de imigração, reações conservadoras e nacionalistas e moralismos segregadores são centrais nos personagens criados por Martin e trazidos à vida por Golden.
O tom leve e divertido de Starport é uma grande diferença em relação aos primeiros volumes de Wild Cards, mas, apesar disso, as duas obras têm mais semelhanças do que diferenças. Lidar com a diferença é o tema central de ambas, que evitam maniqueísmos e respostas fáceis. A graphic novel lembra também um antigo conto de Martin, Run to Starlight, e, coincidência ou não, os jogos de futebol americano são um elemento da cultura terráquea presente em ambos.
O enredo a que temos acesso nessa publicação é o que seria um filme para televisão, que serviria também como episódio inicial da série de TV. Sendo assim, temos uma história suficientemente fechada, mas que, por conta da sua proposta e da qualidade, grita por uma continuação. Minha única crítica é que algumas das soluções vieram fáceis demais.
De qualquer maneira, Starport é um trabalho impecável, fico na torcida para que novas histórias desses personagens vejam a luz do dia em algum momento, bem como que alguma editora brasileira publique a obra em português.
P.S.: Não pude deixar de notar a homenagem ao escritor e editor Gardner Dozois, grande amigo de Martin, personificado no personagem coadjuvante Dr. Bonfleur.
A edição brasileira de Starport, Porto Estelar, está disponível na Amazon.