Em Março de 2019, um roteiro para uma série de televisão que George R. R. Martin escreveu nos anos 90 finalmente viu a luz do dia: Starport se tornou uma graphic novel pelas mãos da artista Raya Golden, e é com ela que conversamos dessa vez. Raya nasceu em Nova York e se graduou na Academy of Art University em San Francisco, na Califórnia. Hoje, trabalha com Martin como assessora na Fevre River Packet Co., onde concentra as funções de assessora de arte, licenciamento e redes sociais pelos últimos nove anos. Como artista, sua primeira graphic novel foi uma adaptação do conto do autor, O Homem do Depósito de Carne, que chegou a ser indicada ao prêmio Hugo.
Raya já havia tido contato conosco quando gentilmente nos ajudou a obter autorização para a tradução do discurso O Coração de um Menininho, de Martin. E dessa vez, ela não foi diferente: se mostrou uma pessoa acessível, simpática e muito compromissada. Confira abaixo nossa entrevista com ela. Ah, antes disso, que tal conferir nossa resenha de Starport para ficar um pouco mais por dentro do quadrinho?
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Arthur Maia: Como foi que você veio a adaptar Starport? A ideia foi de George ou sua? E por que especificamente esta história?
Raya Golden: Starport foi um dos últimos pilotos que George escreveu na década de 90, e ele sugeriu que eu tentasse fazer algo com ele quando assinou um contrato para algumas adaptações em graphic novel com a editora Random House. Ele escolheu essa para mim com base no meu estilo, dizendo que achava que eu poderia agregar à história, e eu não iria discordar dele nisso. Eu estava querendo fazer mais projetos, e senti que esse seria um bom começo para minha carreira em graphic novels.
Arthur Maia: Como o de costume de Martin, Starport versa muito sobre o “coração humano em conflito consigo mesmo”. Em alguns sentidos, me parece que os temas que a graphic novel trata estão ainda mais na ordem do dia em 2019 do que na metade dos anos 90. Como você vê isso e quais mensagens você estava preocupada em passar durante o processo de adaptação?
Raya Golden: Muitos dos temas subjacentes são relevantes de uma maneira completamente diferente do que GRRM deve ter planejado quando escreveu, o que é estranhamente encantador. Por exemplo, eu adicionei um pouco mais de foco em uma série de interações entre os parceiros Rutledge e Manning, onde Rutledge, uma mulher, entra no vestiário masculino quando está preocupada com o estado de Manning. Ele lhe diz que ela deveria sair, mas ela responde com algo como “é só um vestiário, não seja infantil”, entra mesmo assim e dá apoio emocional ao seu parceiro e amigo. Isso seria uma mensagem muito diferente nos anos 90 e hoje em dia, e eu queria enfatizar isso também, bem como outras diferenças de contexto de uma maneira relevante e acessível. Tem uma série de temas que poderiam interpretados de forma errada hoje em dia, mas me esforcei para ajustar cada um deles para um ângulo mais atual e mais sensível, mas os mantendo fiéis ao contexto original.
Arthur Maia: Você disse que recebeu duas versões do roteiro para trabalhar. Elas eram o roteiro do “terremoto” (139 páginas) e o primeiro roteiro oficial (118 páginas) aos quais Martin se refere em Quartet? Como você conciliou as duas versões? Tiveram cenas ou personagens que você teve dificuldades em decidir se incluiria ou não?
Raya Golden: Sim, havia as duas versões, a mais longa e o primeiro roteiro, de 118 páginas. Eu transpus as duas versões colocando elas lado a lado e fazendo um pré-esboço de toda a graphic novel. A primeira metade dessas duas versões são virtualmente idênticas, então essa parte foi fácil. O mais difícil veio depois, resolver as duas versões do arco do Spiderhound e o que funcionaria melhor de cada script. Eu também queria muito incluir o personagem Stakko Nihi, que é muito divertido e foi parte da razão pela qual eu quis usar essa versão do roteiro também. George estava sempre repetindo o seu bordão pra mim: “WHO LOVES THE INFANTS?” (“Quem ama as crianças?”) e eu levei muito tempo pra entender que isso é uma referência muito antiga da TV, e quando eu entendi, não consegui mais parar de rir. A versão sem Stakko era bem mais séria, enquanto a versão com ele adicionava uma leveza que eu realmente queria trazer na adaptação para graphic novel. Eu senti que usar um tom neon-retrô e brincar um pouco mais com as partes divertidas do roteiro se encaixaria mais com o meu estilo de arte, bem como faria as referências mais antigas ficarem mais fáceis de compreender.
Arthur Maia: Enquanto leitor, admito que fiquei encantado com o conceito da Harmonia e suas 315 espécies. Como foi o processo criativo para criar a sua aparência? Você tem alguma espécie favorita?
Raya Golden: Bem, eu segui o script, basicamente. Eu tenho quase certeza de que só teríamos três espécies principais, porque uma série de TV nos anos 90 não poderia lidar com muito mais do que isso para um episódio piloto. Mas eu tentei povoar Starport com mais do que apenas as três espécies principais na Terra – os Lohb, os Nhar e os Chaseen, mas com muitos turistas aleatórios diferentes que podem se tornar ou não espécies importantes em possíveis sequências. Como eu estava desenhando, e não fazendo uma produção televisiva, eu queria usar esses personagens muito mais do que uma série de TV poderia. Meu favorito sempre será Stakko, já que eu o imagino como o The Rock atuando como um Bambi-minotauro, vestido para um teste para uma versão live action de um filme do He-Man. Ele é engraçado, amigável, grudento, gigante e ele derrete meu coração o tempo todo.
Arthur Maia: Eu não pude deixar de notar a aparência do Dr. Bonfleur, já que ele é muito parecido com o incrível e recentemente falecido Gardner Dozois. Como essa homenagem aconteceu?
Raya Golden: Sim, estou muito feliz que você tenha percebido! Eu conheci Gardner praticamente minha vida inteira, ele era um amigo muito querido da família. O Dr. Bonfleur simplesmente me lembrou dele, então fiz ele ter o rosto de Gardner apenas porque sim, foi tudo decisão minha. Eu queria surpreendê-lo com isso, mas infelizmente, ele faleceu antes que eu tivesse a chance.
Arthur Maia: Você já adaptou O Homem do Depósito de Carne. Ele é muito diferente de Starport – mais sombrio, mais intimista, mais curto e mais violento. Como você sentiu as diferenças entre esses dois processos?
Raya Golden: O Homem do Depósito de Carne eu fiz inteiramente sozinha, sem colaboração de mais ninguém. Foi um período bem menor, mas mesmo assim, levei 9 meses parar completar apenas 36 páginas (Nota do entrevistador: Raya trabalhou em Starport durante quatro anos). Então, para Starport, eu contratei Rachel Hilley, uma colorista e me comprometi a comprar um Cintiq, para transformar todo o meu processo de desenho com tinta em digital. No fim das contas, meu processo ficou mais refinado, mas pode-se dizer que foi a mesma coisa aplicada a roteiros muito diferentes. O Homem do Depósito de Carne é uma história seriamente sombria, e não havia outra maneira de abordá-la, ao passo que senti que Starport seria melhor representada com um clima mais retrô, divertido e leve, assim como isso também a faria mais acessível para um público mais amplo.
Arthur Maia: Já que Starport foi concebida como uma série de TV, uma sequência para essa história inicial seria muito bem vinda, explorando outras espécies, mais desenvolvimento para os policiais e alienígenas, além de novos mistérios. Isso é uma possibilidade, mesmo que não haja roteiros escritos ainda?
Raya Golden: Eu com certeza estou planejando encontrar um novo roteirista para trabalhar em uma segunda parte de Starport, já que ainda não me sinto tão confiante para fazer isso eu mesma. Mas eu realmente adoraria trabalhar com um profissional para criarmos mais algumas edições de Starport, possivelmente explorando os temas que você mencionou e outros mais!
Arthur Maia: E quais são os próximos passos de Raya Golden? Você está planejando publicar alguma história original? E quem sabe mais algumas adaptações?
Raya Golden: Eu realmente quero fazer uma continuação de Starport, mas gostaria também de mudar um pouco o ritmo em meu próximo projeto. Estou colhendo algumas ideias sobre isso, e elas incluem tanto materiais originais baseados em alguns conceitos que eu gostaria muito de trabalhar, quanto outra possível adaptação de um autor diferente. E claro, eu adoraria ser chamada para uma equipe para trabalhar como desenhista em alguma coisa completamente diferente, que seja tão divertida quanto as coisas nas quais eu tive sorte de trabalhar até hoje.
Confira o processo artístico de Raya para Staport em vídeo: