Olá! Os leitores e as leitoras que nos acompanham há mais tempo sabem que minha especialidade por aqui é escrever sobre os livros de George R. R. Martin, mas hoje falarei também sobre a série de TV. Desta vez, o assunto é: afinal, o final de Game of Thrones e o fim de As Crônicas de Gelo e Fogo serão iguais ou diferentes?
A resposta simples para a pergunta é que os finais dos livros e da série serão iguais em linhas gerais, mas também terão diferenças substanciais, pelos caminhos diferentes tomados nas duas obras. Isso já é sabido há muitos anos, mas na semana passada a indústria do clickbait fez parecer que uma simples fala de George R. R. Martin a esse respeito era uma grande novidade.
Até o sensacionalismo pode, porém, motivar boas ideias, e mais uma vez a baixa qualidade da cobertura sobre Martin na web (incluindo veículos geek e especializados em cultura pop) criou a oportunidade para um artigo de esclarecimento aqui no Gelo & Fogo.
Acompanhe, a seguir, a repercussão da “notícia” que circulou recentemente, e depois nos debruçaremos sobre praticamente tudo o que já foi dito por Martin, David Benioff e D. B. Weiss – os produtores da série de TV – sobre os finais de GoT e de ASoIaF.
Na semana passada, uma pequena fala de George R. R. Martin viralizou como se fosse uma notícia bombástica. As manchetes em dezenas (ou centenas) de sites, blogs e portais davam a entender que o autor de As Crônicas de Gelo e Fogo fora à imprensa declarar se os finais de Game of Thrones e de seus livros seriam diferentes ou iguais.
A fala de George apareceu originalmente em uma enorme matéria de capa na Rolling Stone, que sequer era sobre ele mesmo – era sobre Maisie Williams e Sophie Turner. A verdade, porém, é que a declaração do autor foi curtíssima e incidental, e não trouxe nada de realmente novo. Ela dizia o seguinte:
Os pontos principais do final serão coisas que eu contei a eles cinco ou seis anos atrás. Mas também pode haver mudanças, e haverá muitas coisas adicionadas.
Isto, na verdade, é uma não-notícia. É GRRM simplesmente repetindo o que já vinha dizendo há vários anos – e o que qualquer pessoa que acompanha com o mínimo de atenção as notícias sobre ele, seus livros e a série poderia concluir. E nem precisamos pesquisar entrevistas antigas: no começo de março deste ano, o mesmo assunto viera à tona em uma matéria da Entertainment Weekly, de forma até mais completa. Por razões que desconheço, porém, essa declaração (que também abordaremos mais adiante) não viralizou.
A fala reproduzida na Rolling Stone foi tão simplória que sequer houve consenso em como noticiá-la, entre os veículos que decidiram fazê-lo (quase todos, porque Martin gera cliques e quando alguém começa, ninguém quer ficar de fora, não é?). Alguns preferiram colocar em suas manchetes que os finais serão diferentes, outros que os pontos principais serão iguais (dependendo da linha editorial e do que chama mais a atenção para seu público). A inconsistência só prova como isso não foi algo realmente novo ou substancial.
Mesmo sendo muito barulho por nada, a fala viralizou, e aí as especulações de muitos fãs vão às alturas:
A resposta para todas essas perguntas é não. É tudo muito mais simples.
Quando se tornou palpável a possibilidade de a série alcançar A Dança dos Dragões, quinto livro de As Crônicas de Gelo e Fogo, Martin contou seus planos gerais para o final para D.B. Weiss e David Benioff, os produtores de Game of Thrones. Eles, então, passaram a escrever a série com base nesse outline geral, escolhendo, a partir dele, como conduziriam a história (como sempre haviam feito, aliás).
Várias tramas e personagens dos livros foram excluídos da TV, outros foram substancialmente alterados e simplificados, enredos originais foram criados pelos produtores na série. A conclusão lógica disso é que é narrativamente impossível que série e livros tenham um final idêntico – já o próprio trajeto divergiu consideravelmente. Ainda assim, em linhas gerais, haverá semelhanças.
Para explicar melhor a questão, compilei e comentei um histórico de citações, entrevistas e falas de Martin, Benioff e Weiss ao longo dos anos. Continue acompanhando para saber o que autor e produtores (sempre) disseram sobre o assunto.
Quando Game of Thrones começou a ser produzida pela HBO, no final da década de 2000, e durante suas primeiras temporadas, nos anos 2010, tanto George R. R. Martin quanto os produtores da série acreditavam que ele poderia escrever os dois livros restantes de As Crônicas de Gelo e Fogo antes que a adaptação o alcançasse.
Em 2011, ano da primeira temporada, Martin dizia à Entertainment Weekly que o risco de ser ultrapassado pela série só existia se o material dos livros fosse muito condensado na adaptação, por exemplo. Em 2012, em entrevista ao Making Game of Thrones, ele disse o seguinte:
A forma como escrevo é um processo lento, especialmente em livros deste tamanho, grandes e complexos como são. Ainda é um processo lento. Estou ciente de que a série de TV está vindo atrás de mim como uma locomotiva gigante, e sei que tenho que ir mais rápido, talvez, porque a locomotiva logo vai estar me atropelando. O que menos quero é que a série de TV me alcance. Tenho uma vantagem considerável, mas a produção está indo mais rápido do que consigo escrever. Espero que terminemos a história mais ou menos ao mesmo tempo… vamos ver.
Talvez muita gente hoje se esqueça (ou nem saiba), mas por um bom tempo a apreensão sobre o que aconteceria se a série ultrapassasse os livros existia não só entre os leitores e espectadores, mas também para os produtores. Ao final da terceira temporada, os showrunners e a HBO se preocupavam com isso, principalmente por conta dos atores que haviam iniciado a série como crianças e agora estavam crescendo. Martin, porém, ainda continuava otimista e cético:
“Finalmente entendo o medo dos fãs, que eu não entendia há uns dois anos: E se a história alcançar os livros?”, diz o presidente de programação da HBO, Michael Lombardo. “Esperemos e oremos todos para que isso não seja um problema”.
[…]
“Acho que eu não ficaria feliz com isso,” diz o autor [George R. R. Martin]. E nem os produtores. “Ainda estamos com os dedos cruzados para que George chegue lá,” diz Weiss. “É o que seria melhor para nós, melhor para os fãs. Vamos lidar com isso quando a hora chegar.” Benioff acrescenta: “O ideal é que os livros saiam primeiro.”
Embora Weiss tenha dito que a questão seria resolvida quando realmente chegasse a hora, ele e Benioff já haviam se precavido a esse respeito. Em 2013, quando o receio da ultrapassagem se tornou mais palpável, os produtores e Martin se reuniram para tratar do assunto. À Vanity Fair, em 2014, Martin disse (otimista como sempre):
“Posso dar a eles os pontos gerais do que quero escrever, mas os detalhes ainda não estão ali,” diz Martin. “Estou otimista de que consigo não deixá-los me alcançar. E a minha esperança é que antes que eles tenham me alcançado, terei publicado The Winds of Winter, o que me daria mais uns dois anos. Pode ficar apertado no último livro, A Dream of Spring, com eles vindo como um rolo compressor.”
Nessa fala, já podíamos perceber que, embora Martin fosse revelar seus planos de uma forma geral para os produtores, o caminho que ligaria vários dos pontos principais que ele tinha em mente ainda não estava traçado. Na mesma matéria, Benioff revelou a reunião entre o autor e os produtores, que ficaria famosa nos anos seguintes:
“No ano passado, fomos a Santa Fe por uma semana, só para sentar com ele e falar sobre aonde as coisas iriam, porque não sabemos se vamos alcançá-lo, e onde exatamente isso aconteceria. Se você sabe o final, então pode estabelecer as bases para ele. Então queremos saber como tudo termina. Queremos poder montar as coisas. Então sentamos com ele e literalmente passamos por todos os personagens.”
Assim, a HBO já havia resolvido seu lado: se Martin conseguisse terminar Os Ventos do Inverno e publicá-lo antes que o rolo compressor de Game of Thrones o alcançasse, melhor para todos (embora surgisse o mesmo problema para o sétimo volume). Se o autor não fosse capaz disso, a série de TV continuaria, usando como base para os roteiros os planos gerais revelados por George aos produtores em 2013.
Nos anos seguintes, não houve grandes problemas: a quarta e quinta temporadas de Game of Thrones adaptaram material de A Tormenta de Espadas, O Festim dos Corvos e A Dança dos Dragões. Embora algumas tramas já fossem substancialmente alteradas e alguns spoilers dos livros seguintes já começassem a surgir, o grosso do roteiro ainda vinha dos livros já publicados por Martin.
Foi só no final da quinta temporada, quando alguns spoilers dos livros começaram a ser revelados na série, como a morte de Shireen Baratheon, que a ficha caiu para muita gente. Na sexta temporada, a hora finalmente chegou: algumas tramas do quarto e quinto livros ainda estavam em aberto, mas o corpo da temporada deveria adaptar Os Ventos de Inverno, que ainda não estava pronto.
A partir da quinta temporada, tanto os produtores de GoT quanto Martin passaram a ser questionados com frequência sobre a ultrapassagem do show em relação aos romances em entrevistas. As respostas deles já diziam exatamente o mesmo que a pequena fala de George à Rolling Stone, que tanto repercutiu na semana passada.
Em uma aparição na Oxford Union, em 2015, Benioff disse que nunca fora a intenção dos produtores dar spoilers aos leitores, e que esperavam que os livros acabassem antes. Porém, eles não tinham o poder de apressar Martin, ao mesmo tempo que não podiam deixar a série em standby, por causa do elenco. Acrescentou:
Por sorte, temos falado sobre esse assunto com George há muito tempo, desde quando vimos que isso poderia acontecer, e nós sabemos pra onde as coisas [nos livros] estão indo. Assim, nós basicamente seguiremos pelo mesmo caminho que George; podem existir alguns desvios no trajeto, mas nós estamos seguindo para o mesmo destino. Eu gostaria que algumas coisas não fossem reveladas antes da hora, mas nós estamos meio entre a cruz e a espada. O show precisa continuar… e é isso que nós faremos.
D.B. Weiss, no mesmo evento, comentou também sobre as diferenças entre os dois meios:
Eu acho que o divertido para George será proporcionar surpresas para as pessoas, mesmo que elas tenham assistido à série até o fim. Existem algumas coisas que acontecerão nos livros que serão diferentes na série, e eu acredito que pessoas que amam a série e querem saber mais — sobre os personagens que aparecem na série e as diferentes figuras que foram cortadas — terão que se voltar para os livros.
Assim, já ficava claro que o plano dos showrunners era seguir com o que Martin lhes revelara em 2013, mas que certamente haveria pontos diferentes nesse trajeto, e talvez no próprio destino.
Ainda em 2015, em uma sessão de perguntas e respostas na Suécia, Martin foi perguntado por um leitor que não acompanhava a série – provavelmente motivado pelos primeiros spoilers, que surgiram na época – sobre a possibilidade de a audiência da TV agora ter certo “poder” sobre os leitores. O autor respondeu o seguinte:
Até certo ponto, sem dúvida. Mas por outro lado, a série de TV e os livros estão divergindo cada vez mais, o que, é claro, é algo que tenho dito que aconteceria já há uns cinco anos. Mesmo assim, agora que está acontecendo, as pessoas estão surpresas, mas venho falando sobre o “efeito borboleta” desde a primeira temporada. Sabe, quando se introduz qualquer mudança, ela cria mudanças maiores mais adiante. Você faz uma mudança pequena que parece insignificante, e aí tem que fazer uma mudança maior, porque fez essa mudança pequena, e tem que fazer uma ainda maior, e logo se está em território completamente não familiar. A série agora deve ter uns dez personagens, talvez uns vinte, que estão mortos na TV, mas vivos nos livros.
[…]
Então é claro que vai haver enormes diferenças. Assim, vocês podem ver coisas extremamente chocantes aparecendo na série na próxima temporada, ou nas próximas, mas não sei se poderia considerá-las spoilers, porque elas nunca vão acontecer nos livros. Elas não podem acontecer nos livros, porque a série e os livros tomaram caminhos diferentes.
De fato George já mencionava o “efeito borboleta” em Game of Thrones há um bom tempo. Trata-se de uma referência ao conceito homônimo da teoria do caos, ilustrado com o bater de asas de uma borboleta, que pode resultar em um furacão do outro lado do mundo. Em entrevista à Vulture, em 2011, Martin fora perguntado sobre suas preocupações quanto à série, e dissera:
A outra coisa que me preocupa é o que chamo de efeito borboleta. Se você conhecer o conto de Ray Bradbury, sabe o que quero dizer. Na TV, vimos a morte de Mago, mas ele vai ser visto nos livros – ele ainda está vivo. Isso vai ter que ser diferente no livro e na série, porque o mataram na TV. Esse tipo de efeito cascata pode acontecer.
Para a sexta temporada, portanto, os produtores já escreviam seus roteiros largamente sem base em um livro de Martin, e a ultrapassagem de Game of Thrones era iminente. Ainda assim, o autor se esforçou bastante para terminar The Winds of Winter em 2015, de modo que ele pudesse ser publicado antes de a sexta temporada ir ao ar, no ano seguinte – o que mitigaria um pouco o “efeito spoiler”. No final, sabemos o que aconteceu: ele não conseguiu escrever o livro a tempo disso.
Em janeiro de 2016, o autor publicou um grande e decepcionado post em seu blog sobre o assunto, e abordou longamente a questão dos possíveis spoilers que a série daria. A princípio, tentei resumir o enorme post de George, mas ele trata do tema central deste artigo de forma tão completa que acabei traduzindo mais da metade dele:
Com a proximidade da temporada 6 de Game of Thrones, e com tantos pedidos por informações pipocando, vou quebrar minhas próprias regras e falar um pouco mais, já que aparentemente centenas dos meus leitores, talvez milhares ou dezenas de milhares, estão muito preocupados com essa questão dos ‘spoilers‘ e com a série alcançar os livros, revelar coisas ainda não reveladas neles etc.
Minhas editoras e eu estamos cientes dessas preocupações, é claro. Discutimos algumas delas na última primavera, quando a quinta temporada da série da HBO estava se encerrando, e criamos um plano. Todos queríamos que o sexto livro de As Crônicas de Gelo e Fogo saísse antes que a sexta temporada da série da HBO fosse ao ar. Presumindo que a série voltaria no começo de abril, isso significava que Os Ventos do Inverno tinha que ser publicado antes do fim de março, no mínimo. Para isso acontecer, segundo minhas editoras, elas precisariam do manuscrito completo antes do fim de outubro. Parecia bem factível para mim… em maio. Assim, esse foi o primeiro prazo: o Dia das Bruxas.
Infelizmente, a escrita não andou tão rápido ou tão bem quanto eu gostaria. […] Quando a primavera se tornou verão, eu estava tendo mais dias ruins do que bons. Mais ou menos em agosto, tive que encarar os fatos: eu não teria terminado no Dia das Bruxas. Não consigo dizer a vocês o quanto essa conclusão me deprimiu.
No começo de agosto fui ao leste [dos Estados Unidos] para o casamento do meu sobrinho, e para uma aparição com os Staten Island Direwolves. Aproveitei a visita para sentar de novo com minhas editoras (as pessoas e as empresas) e disse a elas que achava que não conseguiria entregar até o Dia das Bruxas. Achei que elas ficariam irritadas… mas tenho que dizer, minhas editoras são ótimas, e receberam a notícia com uma tranquilidade surpreendente (talvez elas soubessem antes de mim). Elas já tinham preparado uma alternativa. Tinham feito planos para acelerar a produção. Me disseram que se eu conseguisse entregar Os Ventos do Inverno até o fim do ano, ainda conseguiriam lançá-lo antes do fim de março.
[…]
E aqui estamos, em primeiro de janeiro. O livro não está terminado, não foi entregue. Não há palavras que mudem isso. Eu tentei, dou minha palavra a vocês. Falhei. Furei o prazo do Dia das Bruxas, e agora furei o prazo do fim do ano. E isso quase com certeza significa que não, Os Ventos do Inverno não vai ser publicado antes da estreia da sexta temporada de Game of Thrones, em abril (fomos informados de que é no meio de abril, não no começo, mas essas duas semanas não vão me salvar).
[…]
Dito isso tudo, sei qual será a próxima pergunta, porque centenas de vocês já me fizeram. A série vai ‘spoilar‘ os livros?
Talvez. Sim e não. Vejam bem, eu nunca achei que a série poderia possivelmente alcançar os livros, mas alcançou. A série andou mais rápido do que eu previ, e eu andei mais devagar. Houve outros fatores também, mas esse foi o principal. Dado o ponto em que estamos, inevitavelmente, haverá certos plot twists e revelações na sexta temporada de Game of Thronesque que ainda não aconteceram nos livros. Durante anos, meus leitores estiveram à frente da audiência. Este ano, em relação a algumas coisas, o contrário será verdade. Como vocês vão querer lidar com isso… bem, isso cabe a vocês.
O caso de Game of Thrones e As Crônicas de Gelo e Fogo talvez seja único. Não consigo pensar em nenhum outro exemplo em que o filme ou a série de TV saíram enquanto o material fonte ainda estava sendo escrito. Então quando vocês me perguntam se “a série vai spoilar os livros”, tudo o que posso dizer é: “Sim e não”, e resmungar mais uma vez sobre o efeito borboleta. Aquelas borboletas bonitinhas se tornaram dragões enormes. Alguns dos ‘spoilers‘ que vocês podem encontrar na sexta temporada podem nem ser spoilers… porque a série e os livros divergiram, e vão continuar divergindo.
Pensem só. Mago, Irri, Rakharo, Xaro Xhoan Daxos, Pyat Pree, Pyp, Grenn, Sor Barristan Selmy, Rainha Selyse, Princesa Shireen, Princesa Myrcella, Mance Rayder e o Rei Stannis estão todos mortos na série, e vivos nos livros. Alguns deles vão morrer nos livros também, sim… mas não todos, e outros podem morrer em momentos diferentes e de formas diferentes. Balon Greyjoy, por outro lado, está morto nos livros, e vivo na série. Os irmãos dele, Euron Olho de Corvo e Victarion ainda não foram introduzidos (eles vão aparecer? Não sei dizer). Enquanto Jhiqui, Aggo, Jhogho, Jeyne Poole, Dalla (e seu filho) e sua irmã Val, a Princesa Arianne Martell, o Príncipe Quentyn Martell, Willas Tyrell, Sor Garlan, o Galante, Lorde Wyman Manderly, o Cabeça Raspada, a Graça Verde, Ben Mulato Plumm, o Príncipe Esfarrapado, Bela Meris, Barba de Sangue, Griff e Jovem Griff, e muitos, muitos mais nunca foram parte da série, e ainda assim permanecem sendo personagens dos livros. Vários são personagens com pontos de vista, e até aqueles que não são podem ter papeis significativos na história que está por vir em Os Ventos de Inverno e Um Sonho de Primavera.
Diante das outras citações que abordamos anteriormente, o post pode até ser repetitivo, mas, bem, está basicamente tudo aí. O efeito borboleta, a presença de personagens nos livros que não estão na série, destinos diferentes para os mesmos personagens. Tudo isso faz parte da resposta “sim e não” que Martin e os produtores sempre deram em relação aos possíveis spoilers.
Além disso, os showrunners já faziam mudanças consideráveis em relação ao material fonte mesmo quando ainda havia livros para adaptar – os principais exemplos são o enredo de Dorne e os destinos de Sansa Stark e do Norte. Isso significa, é claro, que os produtores também não estiveram obrigados a seguir literalmente os planos que George lhes revelou em 2013, e que diferenças podem surgir daí também. Quanto a isso, Martin disse em 2017, ao portal russo Meduza:
[Os showrunners] são independentes. Eles podem fazer o que quiserem. Eu não tenho nenhum poder… nenhum direito contratual para [impedi-los]. Eu troco ideias com eles. Falo com eles regularmente. É claro, anos atrás, tivemos uma série de encontros bem longos, em que contei a eles alguns dos grandes twists e eventos enormes que viriam nos últimos livros. Então eles vêm abordando alguns deles, e fazendo algumas revelações, mas eles também vêm divergindo de diversas formas.
De fato, embora muitos eventos e revelações que já aconteceram em Game of Thrones muito provavelmente ocorrerão também em As Crônicas de Gelo e Fogo, isso não é verdade para todos eles, e os contextos para tanto podem ser diferentes. As diferenças são reconhecidas pelos próprios produtores, como indica uma fala recente de Benioff:
[A preocupação] era de que os livros spoilariam a série para as pessoas – e por sorte isso não aconteceu, na maioria das vezes. Agora que a série está à frente dos livros, parece que a série pode arruinar os livros para as pessoas. Então uma coisa sobre a qual falamos com George é que não vamos contar às pessoas quais são as diferenças, então quando os livros saírem, as pessoas podem ter a experiência pura deles.
Embora essa intenção de Benioff seja louvável, alguns dos primeiros eventos novos da série em relação aos livros foram revelados pelos produtores como vindo diretamente de George, o que deixou muitos fãs insatisfeitos. Eles disseram, por exemplo, que a morte de Shireen tinha vindo diretamente do que Martin lhes contara, bem como a revelação sobre o nome de Hodor.
Embora haja dúvidas quanto ao contexto que levará à morte de Shireen em As Crônicas de Gelo e Fogo, o fato de eles terem dito expressamente que se tratava de um evento revelado pelo autor foi efetivamente um spoiler dos livros. Talvez a postura atual de Benioff seja uma resposta a isso.
Enfim, acho que com todas essas citações já deu para compreender por que eu disse, ainda no começo do texto, que a resposta à pergunta sobre os finais serem iguais ou diferentes era simples (e por que eu disse que a fala que repercutiu recentemente não tinha nada de novo), não é? Vamos, agora, analisar como Martin projeta seu final de As Crônicas de Gelo e Fogo, e se haverá alguma influência o final de Game of Thrones nele.
Tudo bem, agora já vimos inúmeras declarações dizendo que os finais de As Crônicas de Gelo e Fogo e Game of Thrones serão iguais e diferentes ao mesmo tempo, principalmente por conta dos caminhos diferentes que as duas obras trilharam ao contar sua história. Existe, porém, um outro ponto que deve ser levado em consideração: a forma de Martin escrever.
Historicamente, o autor se descreveu como um escritor “jardineiro”, em oposição aos “arquitetos”. Deixemos que ele mesmo explique como entende esses conceitos, em uma entrevista ao Guardian, de 2011:
Acho que existem dois tipos de escritores, os arquitetos e os jardineiros. Os arquitetos planejam tudo antes, como um arquiteto construindo uma casa. Eles sabem quantos cômodos a casa vai ter, que tipo de telhado vai ser, por onde os fios vão passar, que tipo de encanamento haverá. Eles têm tudo desenhado e projetado antes que a primeira tábua seja pregada. Os jardineiros cavam um buraco, jogam um semente e aguam. Eles meio que sabem que semente é, sabem se plantaram uma semente de fantasias, ou uma semente de mistério, ou qualquer que seja. Mas conforme a planta vai nascendo e sendo regada, eles não sabem quantos ramos vai ter, eles descobrem enquanto ela cresce. E sou muito mais um jardineiro que um arquiteto.
Logo após o fim da sexta temporada de Game of Thrones, quando a série oficialmente ultrapassou As Crônicas de Gelo e Fogo, Ana Carol Alves escreveu aqui no Gelo & Fogo um belo artigo sobre o estilo jardineiro de George e as consequências que isso trouxe para a adaptação, e os possíveis spoilers.
Fica claro, portanto, que outra razão pela qual haverá diferenças entre os finais de Game of Thrones e As Crônicas de Gelo e Fogo é justamente porque o autor dos livros não tem o enredo exatamente planejado nos mínimos detalhes. Na matéria da Entertainment Weekly que mencionamos anteriormente, Benioff até reitera que, mesmo tendo recebido informações de George, eles mesmos não sabem tudo o que o autor escreverá.
Os produtores observam que não têm certeza total dos enredos futuros de Martin, de qualquer forma (“George descobre muita coisa enquanto escreve”, diz Benioff). Mas ainda mais surpreendente é que, similarmente, Martin também está bastante no escuro em relação ao final da série. “Não li os scripts da última temporada, e não pude visitar o set porque estava trabalhando em Winds“, revela Martin. “Sei algumas das coisas. Mas há muitas [histórias de] personagens menores que eles vão inventar por conta própria. E, é claro, eles me passaram há vários anos. Pode haver discrepâncias importantes.”
Por essa fala e pelas anteriores, já podemos depreender que Martin realmente vê as duas obras como independentes e que não se importa muito com como a série de TV retratará o final. Dessa forma, já poderíamos concluir que as teorias no sentido de Martin deliberadamente fazer sua história ser diferente da de Game of Thrones não fazem muito sentido. Porém, nada melhor do que verificarmos o que ele mesmo já disse sobre isso.
Em 2016, nos comentários do grande post no blog que transcrevi acima, uma leitora até já havia sugerido que ele fizesse o final de As Crônicas de Gelo e Fogo diferente do da série propositalmente, e a resposta dele foi essa:
Em uma história como essa, o conceito de “final” é complexo. Cada personagem tem seu próprio final, de certa maneira, assim como cada vida tem seu próprio fim no mundo real. O livro e a série terão o mesmo “final”? Em alguns aspectos, sim. Em outros, não, de forma alguma.
Em uma entrevista à Time, em 2017, o jornalista Daniel D’Addario perguntou literalmente se ele tentava se distanciar intencionalmente da série. A resposta está transcrita a seguir, mas optei também por transcrever a questão anterior, que dá um contexto maior e também é pertinente para entendermos a questão do final e dos spoilers como um todo:
Daniel D’Addario: Para você, escrever ainda tem algo de improvisação? Mesmo com um ponto final na cabeça, você ainda sente que está descobrindo coisas sobre o mundo de Westeros?
George R. R. Martin: Sim. E isso não é algo exclusivo de Westeros ou Game of Thrones. É simplesmente a maneira como trabalho e sempre trabalhei.
No caso de qualquer um de meus romances, sei meu ponto de partida, sei meu ponto de chegada, mais ou menos. Sei algumas das grandes curvas pelo caminho, as coisas na direção das quais desenvolvo, mas muitas coisas se descobre pelo caminho. Personagens crescem e parecem mais importantes, e você chega ao que achava ser uma grande virada e… a coisa em que pensou dois anos antes na verdade não funciona tão bem, e aí você tem uma ideia melhor! Sempre existe esse processo de descoberta, para mim. Sei que nem todos os autores trabalham assim, mas sempre foi como trabalhei.
Daniel D’Addario: Essas novas ideias pelo caminho acontecem como uma reação à série de TV Game of Thrones? Você se pega tentando complicar ou divergir do que está indo ao ar na TV, ou mergulhando em personagens que não são tão proeminentes na série?
George R. R. Martin: Não penso nisso dessa forma. A série é a série, e desenvolveu vida própria a essa altura. Estou envolvido com a série, é claro, e estive desde o começo, mas meu foco principal tem de ser os livros. Você tem que lembrar que comecei a escrever essa história em 1991, e me encontrei com David e Dan pela primeira vez em 2007. Eu estava vivendo com esses personagens e esse mundo por 16 anos antes que sequer começássemos a trabalhar na série. Eles estão bem fixos na minha cabeça, e não vou mudar nada por causa da série, ou reações à série, ou o que os fãs acham. Eu ainda estou só escrevendo a história que comecei a escrever no começo dos anos 1990.
Para complementar, mais uma fala, de uma entrevista a Adrià Guxens, em 2012, na qual fala sobre reações dos fãs ao final:
Você sabe que o final não vai agradar todo mundo, não sabe?
É claro que vou desapontar alguns de meus fãs porque eles estão fazendo teorias sobre quem vai finalmente sentar no trono: quem vai viver, quem vai morrer… e eles até imaginam pares românticos. Mas já experimentei esse fenômeno com O Festim dos Corvos e de novo com A Dança dos Dragões, e, repetindo as palavras de Rick Nelson: “Não dá pra agradar todo mundo, então você tem que agradar a si mesmo”. Então vou escrever os últimos dois livros o melhor que consigo, e acho que a grande maioria dos meus leitores vai ficar feliz com isso. Tentar agradar todo mundo é um erro terrível; não digo que você tem que irritar seus leitores, mas arte não é democracia, e nunca deve ser democracia. A história é minha, e essas pessoas que ficam irritadas deveriam sair e escrever suas próprias histórias; as histórias que elas querem ler.
A não ser que consideremos que Martin está mentindo na cara dura (o que não temos razões para acreditar), não restam quaisquer dúvidas a esse respeito, não é mesmo? Está claro que o autor não vai mudar seus planos para o final de As Crônicas de Gelo e Fogo por causa da série de TV ou de reações dos fãs. Ele é, acima de tudo, um escritor, afinal.
Agora, o fato de Martin dizer que descobre muitas coisas à medida em que escreve significa que ele não tem nada planejado e que tudo surge no meio do caminho? É claro que não. Na carta de 1993, em que descrevia em linhas gerais o que seriam As Crônicas de Gelo e Fogo, ele já falava sobre isso com seu agente:
Como você sabe, eu não faço esboços de meus romances. Considero que se sei exatamente para um onde um livro está indo, perco todo o interesse em escrevê-lo. Tenho, porém, noções fortes sobre a estrutura geral da história que estou contando, e o destino final de muitos dos principais personagens no drama.
E qual seria esse final? O autor é perguntado há anos sobre isso, desde que começou a escrever a série de livros, e, embora obviamente não responda, sempre diz que busca um final agridoce.
Em 2005, por exemplo, um fã relatou o seguinte:
Quando perguntado se sabia o final, [Martin] respondeu que seria agridoce. Ele desenvolveu, falando sobre o expurgo do Condado [em O Senhor dos Anéis]. Quando leu O Senhor dos Anéis pela primeira vez aos 12 anos, ele não entendeu o final. Porém, quando se tornou um leitor mais maduro, ele passou a apreciar que o triunfo sempre tem um custo.
Não vou me delongar aqui em uma análise sobre o que ele quer dizer com isso – só deixo claro que não acredito simplesmente que seria algo simplório como “a humanidade venceu os Outros, mas Fulano/a de Tal morreu” – até porque no final de O Retorno do Rei, o exemplo que ele gosta de usar, os heróis da história estão todos vivos. Em outro relato sobre Martin, dez anos depois do citado acima, ele explica um pouco melhor sua ideia:
“Acho que se deve ter alguma esperança”, disse [Martin], fazendo referência às maneiras com que sagas terminam. “Todos ansiamos por finais felizes, de certa forma. De minha parte, sou atraído pelo final agridoce. As pessoas me perguntam como Game of Thrones vai terminar, e não vou contar… mas sempre digo que esperem algo agridoce no fim, como em J. R. R. Tolkien. Acho que Tolkien fez isso de forma brilhante. Eu não entendi quando era menino – quando li O Retorno do Rei.” Agora, porém, ele observa que o uso de alegoria por Tolkien para revelar as verdades mais duras da vida (a tragédia da Grã Bretanha do pós-guerra no final dos anos 40 e começo dos 50, no caso de O Senhor dos Anéis), até frente a uma vitória merecida, é brilhante. “Você não pode simplesmente cumprir uma missão e aí fingir que a vida é perfeita”, disse. “A vida não funciona assim.”
No final das contas, percorremos um longo (e às vezes repetitivo, admito) caminho para concluir o que foi dito no começo: o final de Game of Thrones será ao mesmo tempo diferente e igual ao de As Crônicas de Gelo e Fogo. E, analisando falas do próprio George R. R. Martin ao longo dos anos, observamos que ele não tem qualquer intenção de mudar seus planos em resposta à série de TV ou a reações ao final dela, e conseguimos perceber como o discurso sempre foi consistente ao longo dos anos.
O fim de GoT é iminente: no dia 19 de maio o mundo conhecerá o destino da Westeros da TV. Quanto ao final de As Crônicas de Gelo e Fogo, infelizmente, não temos como prever. Fica aqui a esperança de que George também possa nos presenteá-lo com ele em breve – é claro, sem sacrificar a qualidade na atenção aos detalhes, um dos pontos mais fortes e apaixonantes da série de livros. Por fim, um pequeno comentário de Martin sobre o jornalismo caça-cliques, tão comum atualmente:
Há dias em que acho que o jornalismo morreu no dia em que a Internet nasceu.