As Crônicas de Gelo e Fogo são adaptadas para os quadrinhos desde 2011, ano da primeira edição de A Guerra dos Tronos no formato graphic novel. Um fato relacionado com essa HQ que nem todos conhecem, porém, é que ela esconde um segredo sobre o final dos livros, revelado por George R. R. Martin a Daniel Abraham, roteirista responsável pela adaptação.
Abraham, colaborador frequente de Martin, revelou que teve que retrabalhar uma passagem do livro, porque o autor disse que ela seria importante para a última cena de A Dream of Spring (“Um Sonho de Primavera”), último livro de As Crônicas de Gelo e Fogo. Desde então, a tentativa de descobrir qual seria essa passagem gerou muitos debates e discussões entre leitores em fóruns na Web.
Essa questão é interessante por si só, e se torna ainda mais diante do fato de que o fim de outra adaptação, esta para a TV, está chegando: no dia 19 de maio de 2019, o mundo conhecerá o final de Game of Thrones. Embora Martin já tenha dito que o final do show terá diferenças em relação aos livros, uma cena tão importante provavelmente também estaria na TV, não é? E será que a tal cena final também estará em GoT?
Que tal, então, analisarmos o que Abraham realmente disse a respeito, e buscarmos outras dicas que podem ajudar na investigação de qual seria essa misteriosa passagem sobre o fim da história? Acompanhe conosco essa pequena viagem.
Daniel Abraham é um escritor de fantasia e ficção científica, que já foi indicado aos prêmios Hugo, Nebula e World Fantasy, e em conjunto com Ty Franck (que era assistente pessoal de Martin) assina a série de livros The Expanse, que também ganhou uma adaptação televisiva. Daniel tem um longo histórico de colaboração com George R. R. Martin.
Antes de roteirizar a graphic novel de A Guerra dos Tronos, Abraham fora responsável pela adaptação de Sonho Febril e O Troca-Peles (outras duas história de GRRM) para os quadrinhos também. Além disso, é coautor de Caçador em Fuga, em conjunto com George e Gardner Dozois, e participou do universo compartilhado de Wild Cards.
Não é surpresa, portanto, que ele tenha sido o escolhido para roteirizar a graphic novel de As Crônicas de Gelo e Fogo, e que Martin tenha confiado a ele informações privilegiadas para esse trabalho. Daniel revelou a questão sobre a passagem específica incidentalmente, em uma entrevista ao CBR.com, depois de ser perguntado sobre o processo criativo de trabalhar com George na adaptação:
Conversei com George bastante no processo. Os maiores problemas que tivemos foram questões de continuidade. Existem coisas nessa história que só ele sabe, e que não são todas óbvias. Houve uma cena que tive que retrabalhar porque há uma fala em particular – e não dá para saber só de bater o olho – que é importante na última cena de A Dream of Spring. Para esse tipo de problema, não existe substituto para simplesmente falar com o próprio homem.
É fato sabido entre os leitores que muitos dos presságios e foreshadowing de toda a história estão em A Guerra dos Tronos. Elio García e Linda Antonsson comentaram a esse respeito, e também da própria situação envolvendo Abraham e a adaptação, em uma entrevista há alguns anos:
Sabemos que a primeira intenção de Martin era escrever uma trilogia, então devemos assumir que um terço das pistas que nos levam ao final estão no primeiro livro?
Elio M. García Jr: Quando ele estava terminando o primeiro livro, ele percebeu que não era uma trilogia, mas uma série de quatro livros, então até parte de A Fúria dos Reis foi escrita originalmente para A Guerra dos Tronos, mas quando ele começou o segundo livro, ele disse: “Espera, isto está ficando ainda mais longo!”, então ele parou por um instante e visualizou a história toda antes de decidir finalmente que haveria seis livros, embora agora, por um bom tempo, ele tenha dito sete. Ainda assim, você tem razão. Uma boa parte das pistas sobre várias coisas que acontecerão no final mesmo estão no primeiro livro. Por exemplo, Daniel Abraham fez uma série de histórias em quadrinhos adaptando A Guerra dos Tronos e tem uma coisa interessante que George disse a ele: “Você tem que manter essa frase porque essa frase é importante para o que acontece no final.
Linda Antonsson: A última cena mesmo… Então tem algo no primeiro livro que encontrará eco ali.
De qualquer forma, pela resposta de Abraham, observamos que ele não percebera a importância de uma passagem em especial, foi informado da relevância dela por Martin, e teve de retrabalhar a cena por essa razão. Isso significa, é claro, que o “segredo” em questão não é exclusivo da HQ, e está também no próprio livro de A Guerra dos Tronos. E aí começa a curiosidade: afinal, que cena é essa?
Para tentarmos investigar que fala seria essa, é bom dissecar a declaração de Daniel. A entrevista é de setembro de 2011, quando a primeira edição da graphic novel foi publicada. Ele, é claro, havia escrito os roteiros algum tempo antes, mas essa data revela que Abraham ainda não estava muito adiantado na adaptação. Isso significa que a passagem tem lugar no começo de A Guerra dos Tronos, e está no volume um ou dois da HQ.
É importante observar também que ele revela que é uma fala. Não é, então, um pensamento de algum personagem. Além disso, Abraham diz que a passagem não é especialmente notável à primeira vista (“e não dá para saber só de bater o olho”). Assim, pode ser uma fala bastante simples e aparentemente sem muita importância.
Isso não quer dizer, porém, que seja impossível descobrir qual é. Devemos levar em conta que essa é impressão de Abraham sobre a fala em questão. Pode ser que a fala já fosse objeto de atenção de fãs que já leram e releram os livros várias vezes e discutiram sobre eles online. De qualquer forma, existe um número limitado de falas na HQ em relação ao livro, e saber que uma delas tem essa importância já faz toda a diferença.
De qualquer forma, Daniel disse também que teve que retrabalhar a cena, e isso pode significar duas coisas diferentes. As possibilidades são que, no roteiro inicial (antes da intervenção de Martin), Abraham tivesse abordado a fala de forma que uma parte essencial dela fora perdida, ou pode ser que ele tivesse suprimido a passagem completamente.
Partindo um pouco para a especulação, existe a dúvida sobre se a fala está na série de TV ou não. A adaptação de Abraham para os quadrinhos aconteceu de forma independente de Game of Thrones. Na entrevista ao CBR ele deixa isso bem claro, dizendo:
Eu já estava com vários scripts quando a coisa da HBO saiu, e fico bastante satisfeito que já estivesse. Eu já havia tomado um monte de decisões que eram um pouco diferentes do que eles estavam fazendo, e essa distância é importante para mim. A série é um trabalho ótimo, e eu a admiro, mas meu trabalho não é adaptar uma série de TV. É abordar o livro original. É realmente onde está meu foco.
Acontece, porém, que se George fez questão de alertar Daniel Abraham para essa fala em especial, seria razoável presumir que ele faria o mesmo com David Benioff e D. B. Weiss, os produtores da adaptação televisiva. É claro que Martin nunca teve poder decisório em Game of Thrones e sempre atuou mais como um consultor, mas na primeira temporada a proximidade dele como a série era notadamente maior do que se tornou ao longo dos anos.
Essa questão é controversa nos fóruns, mas pessoalmente acredito que a fala está também na série de TV, seja por intervenção de Martin ou porque simplesmente os roteiristas não a excluíram (ou alteraram) desde o começo, como Abraham fizera. É bom lembrarmos que Benioff já disse que o terceiro “momento chocante” dos planos revelados por George R. R. Martin a ele e Weiss é do “final mesmo“.
Outra informação que pode se relacionar com o mistério surgiu por acaso em 2014, quando Anne Groell, a editora de Martin na Bantam, participou de uma sessão de perguntas e respostas no Suvudu. Ela foi questionada se sabia o final da história, como os produtores de Game of Thrones, e respondeu o seguinte:
Não. O George é um sujeito bem reservado, e guarda bem seus segredos. Sei de algumas coisas de Os Ventos do Inverno, mas principalmente porque tivemos que encurtar alguns elementos do livro [A Dança dos Dragões] porque já estava ficando muito longo, e ele tinha que revelar alguns segredos, então pude ajudá-lo a redirecionar partes do enredo um pouco. Sei o ponto final da história de Bran — e Daniel Abraham, que vem adaptando a graphic novel de A Game of Thrones para mim, sabe onde Tyrion termina. (Tenho inveja disso!) […] Tive um almoço muito divertido com Daniel, em que nós claramente não contamos um ao outro o que sabíamos.
Essa revelação de Groell gerou um certo consenso nas discussões sobre a fala misteriosa, nos fóruns e no reddit, no sentido de que ela se relacionaria com Tyrion (fosse proferida por ele mesmo ou por outro personagem em diálogo com ele). Restringir o universo de falas possíveis apenas a cenas que envolvem um único personagem facilitaria muito a busca.
Acontece que existe outra declaração de Abraham, menos conhecida, que complica um pouco as coisas nesse sentido. No livro Além da Muralha (Leya, 2015), uma coletânea de ensaios de vários autores sobre As Crônicas de Gelo e Fogo, Abraham escreveu sobre a processo de adaptação da HQ, e diz o seguinte:
Mas As Crônicas de Gelo e Fogo não é uma série aberta. Ela tem uma conclusão para a qual se move e, de fato, a última sequência do último livro já foi decidida.
[…]
Para mim, o fato mais importante sobre As Crônicas de Gelo e Fogo é que elas irão acabar. Daenerys Targaryen terá uma última cena e uma última palavra. Graças à minha participação nesse projeto, conheço o destino de vários personagens principais, e tenho uma boa ideia do ponto final do enredo.
A primeira passagem revela que Daniel sabe mesmo sobre a última sequência do último livro, mas a segunda deixa claro que ele não sabe apenas o final de Tyrion, mas de vários dos personagens principais de As Crônicas de Gelo e Fogo. Assim, restringir a busca pela fala apenas a passagens que envolvam Tyrion não é realmente uma boa ideia.
Em outra entrevista, esta para o MTV Geek, ele deixa claro que sabe mesmo coisas sobre o final de uma forma geral, uma vez que isso foi necessário para poder escolher o que seria mantido ou cortado no processo de adaptação:
Quais foram alguns dos outros desafios de levar essa obra às páginas dos quadrinhos?
Daniel Abraham: Extrair spoilers de George. Houve ocasiões em que precisei comprimir algumas partes de ação ou reduzir o número de personagens em uma cena, de forma que a página não ficasse tão confusa de se olhar, mas para isso acontecer, eu preciso saber o que é crítico para o enredo e o que não é. Como resultado, eu sei algumas coisas sobre como a série termina, e o que algumas das profecias no texto significam, coisas que eu levaria um tiro se contasse.
Tudo bem, já vimos o que Abraham e outras pessoas disseram, mas afinal, que fala é essa? A verdade é que ninguém nunca chegou a uma conclusão definitiva sobre isso, embora muitas tenham sido sugeridas pelos fãs nas discussões online. Compilei aqui algumas passagens da HQ que imagino que possam estar relacionadas com a última cena de A Dream of Spring.
– Deveríamos regressar – insistiu Gared quando os bosques começaram a escurecer ao redor do grupo.
A primeira fala de todas em As Crônicas de Gelo e Fogo, do prólogo, e que foi reproduzida fielmente na adaptação da graphic novel. Se a história terminasse com um diálogo igual, mesmo que em circunstâncias não idênticas, isso poderia indicar uma natureza cíclica da história (que foi referenciada por Martin em alguns outros trechos). A cena, porém, foi alterada em Game of Thrones, e essa fala não é a primeira proferida na série de TV.
– Os invernos são duros – admitiu Ned. – Mas os Stark os suportarão. Sempre os suportamos.
Um diálogo entre Eddard e Robert Baratheon nas criptas de Winterfell. Os Starks são a primeira família apresentada em A Guerra dos Tronos, e não seria nada estranho que eles também protagonizassem também a última cena. O título do último livro trata a primavera como um sonho, e realmente seria um pouco estranho que o inverno chegasse e já terminasse ao fim da história, mesmo com a natureza inconstante das estações em Westeros. É uma frase bem marcante, porém, o que torna um pouco improvável que Abraham a ignorasse de início.
Costurará durante todo o inverno. Quando chegar o degelo da primavera, encontrarão seu corpo ainda com uma agulha bem presa entre os dedos congelados.
Um dos palpites favoritos dos leitores, pois poderia narrar metaforicamente todo o destino de Arya durante o inverno westerosi. A agulha a que Jon se refere nesta cena é realmente de costura, e só depois é que ele presenteia a irmã com a espada de mesmo nome, com a qual ela supostamente “costuraria” (mataria gente) durante o inverno. Um destino fatal para Arya também não seria exatamente inesperado. A fala, entretanto, também não está na série de TV.
Jaime sorriu.
– Espero que não esteja pensando em vestir o negro, querido irmão.
Tyrion soltou uma gargalhada.
Tyrion na Muralha? Não acho uma hipótese absurda. A descida de Tyrion a uma alma mais “obscura” e a tomada de atitudes mais moralmente questionáveis ficou notável em A Dança dos Dragões. Em Game of Thrones, embora ao invés disso ele tenha sido simplesmente relegado a um papel menos proeminente depois da falta dos livros, o destino dele na oitava temporada parece também não ser muito heróico (ou pelo menos não seria visto assim aos olhos do mundo). Só não sei se um destino de patrulheiro para Tyrion seria algo presente na última cena da história.
– Vou sentir sua falta, irmãzinha.
De repente, ela pareceu quase chorar.
– Queria que viesse conosco.
– Por vezes, estradas diferentes vão dar no mesmo castelo. Quem sabe?
Mais um diálogo entre Jon e Arya. Um reencontro dos Stark no futuro em Porto Real (para onde Arya se dirigia nesse momento) seria possível? Quem sabe? De qualquer forma, seria bem plausível que os lobos juntos – em qualquer “castelo” que fosse – fossem parte da última sequência de toda a história. É de se notar, porém, que houve uma pequena alteração do texto do livro para o quadrinho.
– Não quero mais histórias – Bran exclamou, com petulância na voz. […] – Detesto suas histórias estúpidas.
A velha mulher mostrou-lhe um sorriso sem dentes.
– Minhas histórias? Não, meu pequeno senhor, minhas, não. As histórias são, antes de mim e depois de mim, e antes de você também.
[…]
– Não me interessa saber de quem são as histórias – Bran respondeu –, eu as detesto – […]
– Sei uma história sobre um garoto que detestava histórias – a Velha Ama insistiu com seu sorrisinho estúpido, enquanto as agulhas se moviam, clic, clic, clic, e Bran sentiu-se capaz de gritar com ela.
É o que diz a Velha Ama a Bran, pouco antes da famosa fala “Ah, minha querida criança de verão…”. O primeiro capítulo de A Guerra dos Tronos é de Bran, se excetuarmos o prólogo, e também foi o primeiro que veio à mente de George R. R. Martin quando ele começou a escrever a série. Bran é, também, dono do arco mais mágico da história, que se relaciona com os “grandes mistérios” de gelo e fogo.
Sempre tendi a acreditar que um capítulo dele é que será o último em As Crônicas de Gelo e Fogo, ou algo que no mínimo faça referência a ele. Quem sabe a Velha Ama não sobrevive a todos os eventos e conta uma história sobre um garoto que detestava histórias, talvez a um novo Brandon? Ou para o próprio Bran?
Escrevendo o artigo e repassando a HQ cena por cena, essa passagem me convenceu mais do que qualquer das outras (até pela configuração do quadrinho, e por ser uma fala aparentemente bem bobinha). Por acaso, foi durante durante a pesquisa, quando até já tinha listado a fala como uma das possíveis, que encontrei a entrevista de Daniel no MTV Geek (que citei acima), e há outra resposta nela muito interessante:
Quais foram alguns dos personagens para os quais você foi atraído durante a escrita do livro [de histórias em quadrinhos]?
Daniel Abraham: Escolha difícil. Gostei de todos os personagens como leitor, anos antes de começar a adaptação. Quem não gosta de Jon ou Dany ou Tyrion? A coisa que adaptar os livros me fez apreciar mais foram os personagens menores. A Velha Ama, por exemplo, é na verdade uma personagem misteriosa e fascinante, mas ela é parte de uma grande tapeçaria. É fácil deixá-la passar, e pessoas como ela.
Acredito, assim, que a “passagem secreta” que se relaciona com a última cena de Um Sonho de Primavera, possivelmente em um capítulo de Bran, esteja nesse diálogo entre ele e a Velha Ama, em que ela fala sobre a natureza das histórias e como elas existem e são contadas independentemente do tempo, talvez especialmente sobre uma história que começou com um garoto que detestava histórias, As Crônicas de Gelo e Fogo.
Talvez descubramos no dia 19 de maio, com o fim de Game of Thrones. Ou não, e aí teremos que esperar até que George escreva e publique A Dream of Spring. Aguardemos… Enquanto isso, nossos comentários estão abertos para discussões e debates sobre essa misteriosa fala.
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