“Livro é livro e série é série” foi uma máxima repetida à exaustão em discussões sobre As Crônicas de Gelo e Fogo e Game of Thrones ao longo dos últimos anos. Embora eu nem sempre gostasse do contexto em que ela era usada por muitos dos que a repetiam, em princípio sempre fiz questão de realmente separar as duas obras e seus cânones — principalmente diante da evidente confusão que alguns leitores tinham (e têm) sobre o que aconteceu em cada história.
Com o fim da série de TV, porém, é inevitável especular o que e quanto daquele final estarão também nos livros de George R. R. Martin. O próprio autor reiterou, inúmeras vezes, que os finais serão ao mesmo tempo iguais e diferentes. Essa questão foi objeto de outro artigo, que pode ser lido aqui.
Observando as reações um tanto extremas dos fãs torcedores de Daenerys Targaryen, que ficaram frustrados com o final da personagem em Game of Thrones e passaram a (previamente) criticar também GRRM por imaginarem que ela terá esse mesmo fim indesejado em As Crônicas de Gelo e Fogo, vieram a minha mente algumas ideias, talvez meras divagações, sobre o destino dela nos livros.
De saída, deixo claro que acredito, sim, que Daenerys morrerá no final dos livros, depois de alguns atos, digamos, extremos. O trajeto até chegar neles, porém, é o cerne da questão. Um dos pontos centrais dessas reflexões é que a série de David Benioff e D. B. Weiss realmente abordou vários dos eventos que ocorrerão com Daenerys na história de Martin, mas a abordagem deve ser fundamentalmente diferente.
O exercício aqui não será fazer uma análise extensa e completa, mas basicamente pegar o que aconteceu em Game of Thrones e tentar imaginar como aquilo pode ser melhor adequado ao estilo narrativo e às intenções temáticas de George R. R. Martin para a personagem que já pudemos observar em As Crônicas de Gelo e Fogo.
É bom, para que leitor e leitora compreendam essas minhas divagações, que recapitulemos os últimos eventos envolvendo Daenerys, além de alguns do que estou convicto de que ocorrerão em As Crônicas de Gelo e Fogo (ainda que não tenham acontecido em Game of Thrones).
No fim de A Dança dos Dragões, Daenerys finalmente abraçou o lema de sua casa, fogo e sangue, depois de conseguir a paz em Meereen sacrificando sua própria natureza e fazendo inúmeras concessões que a deixaram extremamente desconfortável. Adam Feldman tratou sobre essa questão e o arco meereenês como um todo em sua série de ensaios (que não me canso de recomendar, até porque foi de certa forma “aprovada” pelo próprio Martin) Untangling the Meereenese Knot (“Desatando o Nó Meereenês”).
No último capítulo do quinto livro, enquanto alucina no Mar Dothraki, Daenerys passa por uma experiência catártica de descoberta da própria identidade, e chega à conclusão de que “dragões não plantam árvores”.
Agora, isso quer dizer que Daenerys vai sair dali imediatamente como uma destruidora desgovernada? Muito provavelmente não, mas significa que ela realmente e finalmente se identificou com e se encontrou no perfil de conquistadora de sua Casa ancestral, e não vai mais tentar se adequar a uma natureza pacífica e de concessões que não é a sua.
Aqui, uma ressalva importante: embora muitos leitores tivessem (e ainda têm) a visão de que Daenerys é uma espécie santa salvadora em busca do bem maior, essa nunca foi sua verdadeira identidade em As Crônicas de Gelo e Fogo – apesar de também ser vista assim por diversos personagens (e totalmente ao contrário por outros, uma questão de perspectiva que abordaremos mais adiante).
A jornada da personagem não começa e nem segue como a de uma idealista, com objetivos ideológicos de reforma como motivação das ações. Embora ela de fato tenha empreendido atos benéficos para o “bem maior” em Essos (o ataque ao multimilenar sistema escravocrata vigente no continente), eles foram circunstanciais, não o ponto central de sua jornada.
Embora eu não acredite que Daenerys sairá do Mar Dothraki como uma assassina em massa sanguinária e cruel, acho que ela já empreenderá um ato bastante violento em seus primeiros capítulos de The Winds of Winter (“Os Ventos de Inverno”).
Em Game of Thrones a personagem foi capturada e mantida cativa pelos khals em Vaes Dothrak, e acabou por se livrar deles — e assumir o controle de todo o povo — ao realizar um massacre com fogo. Sou da opinião de que algo similar acontecerá em As Crônicas de Gelo e Fogo, e que o incêndio resultante será a segunda fogueira mencionada pelos Imortais em Qarth.
O fato de não ser uma idealista por excelência não significa, no entanto, que Daenerys não possa também eventualmente contribuir para o dito bem maior: é bastante provável que ela tenha um papel importante na guerra contra os Outros (e há alguns anos expliquei por que acreditava que ela seria Azor Ahai renascido).
É bom que lembremos que ela atualmente não tem qualquer consciência sobre a ameaça que reside para-lá-da-Muralha, mas isso também pode mudar a depender de suas novas relações em Westeros. Acredito que o infame par “Jonerys” será canônico também, já que parece ser algo grande demais para ser simplesmente uma invenção dramática de Weiss e Benioff.
O contato com Jon Snow pode também ser o elemento motivador da personagem para participar da nova Guerra pela Alvorada, mas tenho a impressão de que os sacrifícios que terá feito nesse conflito é que serão definidores de seus atos futuros.
Game of Thrones não estabeleceu muito bem uma importância crucial para Daenerys no confronto contra os Outros (a despeito de todo o alarde prévio quanto a “dragões versus seres de gelo”), e nem acho que tenha ficado claro o peso de suas perdas ali, mas penso que a significância dessas duas coisas ficará bem definida nos livros de Martin.
Outro ponto importante que esteve ausente da série de TV é o provável conflito de Dorne com Daenerys e o apoio da região a Aegon, resultante tanto da morte de Quentyn por um dos dragões quanto pela chegada do suposto filho de Rhaegar e Elia — o que abordarei mais adiante neste texto.
Parece a mim algo claro que o arco global de Daenerys, em todas As Crônicas de Gelo e Fogo, é idealizado por Martin para ser uma tragédia. Eliana Deli Llama tratou magistralmente sobre o assunto no ensaio Daughter of Death: A Song of Ice and Fire’s Shakespearean Tragic Hero (“Filha da Morte, o Herói Trágico Shakespeariano de As Crônicas de Gelo e Fogo“), publicado antes da exibição da última temporada de Game of Thrones.
Classicamente, o destino final de um personagem trágico (em Shakespeare, principalmente) é a morte. Antes disso, porém, entende-se que deve haver conflito de forças na alma desse herói, e ações humanas que resultem em uma calamidade. Tudo isso pode ser encontrado na jornada de Daenerys em As Crônicas de Gelo e Fogo (incluindo os pontos gerais de seu final na série de TV).
A compreensão das forças motivadoras de Daenerys ao longo da história são importantes para entendermos uma possível derrocada e “virada” dela contra certos grupos no final da história. Daenerys não quer apenas o Trono de Ferro, mas ser amada por aqueles que considera seus súditos, e anseia por ser valorizada como líder e figura de poder dessas populações.
Em Essos ela experimentou ser vista como uma líder admirada: embora rejeitada pelos representantes do status quo escravagista do continente, entre os comuns ficou conhecida como mhysa, a mãe, e sua fama de salvadora se estendeu até a regiões por onde ainda não passou — lembremo-nos das palavras da Viúva do Cais, em Volantis: “Diga que estamos esperando. Diga para ela vir logo”.
Outro ponto relevante é que a personagem também sempre anseia pelo retorno a um lugar onde poderia chamar de casa, uma volta ao lar. A Casa da Porta Vermelha, em Braavos, se torna simbólica nesse sentido – e George R. R. Martin já declarou que haverá mais revelações sobre isso em livros futuros.
A frustração por não conseguir nem uma coisa e nem outra em Westeros, não tendo sua atuação na luta contra os Outros valorizada pelos westerosi e sendo ativamente rejeitada por eles (em detrimento de outros, seus adversários em maior ou menor medida, sejam Cersei, Aegon ou Jon Snow) pode levá-la à conclusão de que aquelas pessoas, por quem ela sacrificou tanto, não “merecem” a salvação que ela quer lhes dar, e por isso, que merecem ser queimadas.
Acredito que o sentimento de Daenerys, no fim da história, seja o de alguém que terá sacrificado muito por um povo e um continente, e não percebe gratidão ou reconhecimento de seus esforços nesses seus (pretensos) súditos. Pelo contrário: ela só veria ingratidão e rejeição à sua pessoa, o que a levaria a concluir que eles não merecem mesmo a salvação que ela tenta trazer.
Outro ponto que acho que GRRM pode querer abordar com a história de Daenerys é o conceito de que, em muitos casos, lados certos não existem de verdade. Um eventual destino trágico de Daenerys pode ser a culminação de um conflito que decorre não de um lado mau e outro bom, mas simplesmente de várias partes com opiniões e interesses conflitantes: ela e os outros.
Um exemplo palpável disso pode ser a relação de Daenerys com os Martell (e Dorne como um todo). Presumivelmente eles seriam seus mais naturais aliados em Westeros, mesmo na ausência do pacto nupcial, pela relação de proximidade entre as Casas e pelas perdas dos dorneses na Rebelião de Robert. A jornada de Quentyn e seu malfadado resultado, porém, quase com certeza resultarão na rejeição de Daenerys por Dorne.
Não é que Daenerys seja estritamente culpada por não ter aceitado a proposta de Quentyn e nem por ele ter tomado a atitude temerária (e corajosa, como apontou Arthur Maia) de tentar domar um dragão, ansioso por se provar digno da missão que recebeu do pai, o que resultou em sua morte. O timing e fatores externos a essa relação entre ela e Dorne impediram que a situação tivesse uma resolução satisfatória.
Os dorneses, entretanto, provavelmente não vão querer saber das justificativas e motivos dela – e nem deveriam, porque para eles o destino e a política de Meereen realmente pouco importam. O que vai importar é que ela recusou a oferta de Dorne, de casamento e de apoio político e militar, e que o Príncipe Quentyn morreu por um dos dragões dela. Há alguém categoricamente errado aí? Eu diria que não. Mas tampouco há conciliação possível nessa situação.
O mesmo pode acontecer numa eventual tentativa de conquista dos Sete Reinos por parte de Daenerys. Do ponto de vista dela, seria uma “libertação” do continente de forças traidoras, representadas quer pelos Lannister ou pelo falso Aegon.
Nesse caso, não seria difícil para o leitor entender e simpatizar com essa racionalização: os Lannister, principalmente em Tywin e Cersei, são estabelecidos desde o primeiro livro como figuras eminentemente negativas a nível pessoal. A conspiração para promover o Jovem Griff como alguém que ele realmente não é também não seria vista com bons olhos por alguém que sabe a verdade: ela equivaleria a usurpação através da mentira e do ardil. É difícil ver isso como algo positivo, principalmente quando se acompanha as tribulações de outra personagem com o mesmo intento desde o começo.
No entanto, do ponto de vista da população westerosi, tampouco seria surpresa se eles estivessem satisfeitos em ser governados por essas pessoas, ou, no mínimo, mais satisfeitos do que estariam diante da filha de Aerys II Targaryen, o Rei Louco, que comanda três dragões, exércitos de bárbaros dothraki e eunucos essosi, cuja fama ao redor do mundo não é das melhores e que vem trazer guerra quando eles finalmente acreditam que atingiram a paz.
Pensando pragmaticamente, para o “bem do reino”, o fato de Aegon ser falso realmente importaria? Esse bem-estar geral não poderia de fato ser alcançado com um monarca cuja identidade não é verdadeiramente a que diz ser, da mesma forma que seria possível com um rei legítimo? Qual é realmente a diferença, principalmente se ele acredita ser quem é, e provavelmente ostentará vários símbolos do poder Targaryen (como Jeff “BryndenBFish” Hartline aponta neste texto)? Esse é outro questionamento que acredito que Martin pode colocar para o leitor.
Para uma pessoa que está tentando conquistar o reino, ver um impostor tomar seu lugar e receber os créditos, os louros, a glória e o amor do povo (sem ter se esforçado e sacrificado tanto para tal quanto ela mesma), no entanto, é visto algo completamente absurdo – e esse ponto de vista é totalmente compreensível, também.
A questão de perspectiva resume bem a máxima sobre os membros da Casa Targaryen, dita por Jaehaerys II a Barristan Selmy (que, por sinal, se parece muito com uma citação em uma série de que Martin é fã):
— Não sou um meistre para lhe citar história, Vossa Graça. Minha vida foram as espadas, não os livros. Mas qualquer criança sabe que os Targaryen sempre dançaram demasiado perto da loucura. Seu pai não foi o primeiro. O Rei Jaehaerys disse-me um dia que a loucura e a grandeza eram dois lados da mesma moeda. “Sempre que um novo Targaryen nasce”, disse ele, “os deuses atiram uma moeda ao ar e o mundo segura a respiração para ver de que lado cairá”.
(MARTIN, George R. R. A Tormenta de Espadas. São Paulo: Leya, 2011. Tradução de Jorge Candeias.)
Para muitos personagens, dentro dos próprios livros, Daenerys Targaryen já é considerada louca por tudo o que empreendeu em Essos. Para outros, seus súditos, é uma grande líder que inspira afeição e devoção. Acredito que essa distinção só vá se acentuar conforme ela progrida rumo a Westeros e chegue no continente.
Eventuais atos brutais de um personagem podem ser interpretados como tendo explicação e sendo justificados ou não, a depender do observador (e isso no mundo real também). O que especulo é que uma das intenções de GRRM seja explorar essa dualidade usando o fato de sua personagem grande (para o bem ou para o mal) ter um ponto de vista.
Na série de TV, embora alguns dos atos cruéis de Daenerys tenham sido apresentados ao longo das temporadas, a “virada” em direção à crueldade máxima foi guardada para o final como uma grande reviravolta que realmente chocou os espectadores. Não acredito, no entanto, que o intuito de George R. R. Martin seja o mesmo nos livros.
Embora muito se diga que “as pistas estavam ali o tempo todo, e se você não gostou de como aconteceu a culpa é sua por não prestar atenção”, não é bem assim que as coisas funcionam (ou deveriam funcionar).
Um giro de 180° na personalidade de um personagem, ainda que algumas dicas já tivessem sido plantadas, pode ser efetivo em termos de twist, mas deixa um sabor amargo de história mal contada e de mau desenvolvimento. Como o canal Trope Anatomy bem explicou, foreshadowing não é desenvolvimento de personagem.
Quando digo que não acredito que Martin tenha o mesmo intuito nos livros, não estou me referindo à ideia de Daenerys realizar atos cruéis, mas a como isso ocorrerá. Não me parece razoável que o autor trate algo desse calibre como uma simples reviravolta para chocar e deixar os leitores boquiabertos de surpresa.
Nesse caso, o investimento do leitor na personalidade da personagem é estimulado por dezenas de capítulos com ponto de vista ao longo de diversos livros. Isso acaba por quase exigir que um ato que ela provavelmente não praticaria no passado, mas que realizará em dado momento futuro, tenha fundamento não só em indícios prévios, mas em experiências, interpretações e interações significativas (ainda que pouco tempo passe). Não deixa de ser uma reviravolta, mas ela não é instantânea.
Para que um arco trágico de Daenerys ou de qualquer outro personagem funcione de fato e com sucesso, todo o desenvolvimento até o final deve ser natural e orgânico, de forma que o leitor (ou espectador) percebam aquele fim como inevitável.
Como leitoras e leitores a essa altura devem ter percebido, este texto foi menos um ensaio bem estruturado e mais uma coleção de várias divagações e reflexões sobre a personagem e seu futuro, mas isso não quer dizer que os pontos apresentados não se interligam.
O ponto central das ideias apresentadas aqui é aquele que se aplica a várias linhas narrativas de Game of Thrones que estarão presentes também em As Crônicas de Gelo e Fogo: o desenvolvimento importa, e muito.
Assim, acredito que a Daenerys que Martin originalmente idealizou vai também realizar nos livros várias das ações de sua correspondente televisiva, mas as motivações e o trajeto para chegar a certos eventos e reviravoltas terão uma exploração mais profunda e que parecerá mais natural. As relações e interações da rainha Targaryen com os Outros e com os outros serão fundamentais para seu destino último, e não serão apenas abordadas de passagem.
Tenho plena consciência de que se o destino da Daenerys for mesmo esse, ele desagradará sua base de fãs mais fanáticos. Por mais pleonástico que isso possa parecer, me refiro aqui ao comportamento dos que consomem a obra como torcedores, de forma parcial para seus favoritos, de maneira que qualquer destino que não seja a “vitória” deles (como se se tratasse realmente de uma competição com vencedores e perdedores) é considerada uma má história.
Qualquer um que acompanha as declarações de Martin e sua escrita, por outro lado, pode chegar à conclusão de que ele não se importa e não se importará com isso ao escrever sua história. O autor não está (e não deveria estar) preocupado em atender a segmentos específicos da base de fãs com seus personagens e seus destinos: ele se propôs a escrever um épico de guerra com um pano de fundo fantástico e é o que está fazendo. Como ele mesmo já disse, “tentar agradar a todos é um erro terrível“.
Daenerys Targaryen será sem dúvida lembrada como uma das personagens que mais impacto causou no universo desse épico, tanto dentro dele (para os personagens) quanto fora (para os leitores). Seja qual for seu destino, ela será uma personificação do “coração humano em conflito consigo mesmo”, um dos motes de escrita de GRRM, e seu apelo enquanto personagem, para mim, reside justamente aí.