Já há algum tempo os leitores de As Crônicas de Gelo e Fogo e fãs de George R. R. Martin sabem que ele se recolhe numa cabana secreta no Novo México quando quer focar mais em sua escrita. Em 2018, publicamos um rumor sobre a possibilidade de George estar terminando The Winds of Winter (Os Ventos do Inverno) em seu bunker, e em março deste ano, no início da pandemia de COVID-19, o autor revelou que estava recolhido em segurança na cabana.
Desde então, Martin passou a maior parte do tempo lá, como relatou em junho (quando deu uma atualização sobre a escrita do sexto livro), e como pudemos ver em sua manifestação de apoio à iniciativa soteropolitana Casa Respeita as Mina e nos segmentos gravados para a apresentação virtual dos Hugo Awards, em que foi mestre de cerimônias.
Neste sábado (15), GRRM fez uma nova e interessante postagem em seu Not A Blog intitulada “Back to Westeros” (“De volta a Westeros”), em que falou sobre sua rotina de trabalho na cabana e como ela é diferente e ao mesmo tempo parecida com outras épocas de sua carreira. Martin descreveu seu humor como “reflexivo”. Leia o post traduzido:
Estou de volta a minha fortaleza da solidão, minha cabana isolada nas montanhas. Eu tinha voltado a Santa Fe para uma estadia rápida, para passar um tempo com Parris, tratar de alguns negócios locais que haviam se acumulado nos meses em que eu estava longe, e, claro, cumprir minhas obrigações para com a CoNZealand, a Worldcon virtual. Mas tudo isso ficou para trás, e estou de volta à montanha de novo… o que quer dizer que estou de volta a Westeros de novo, mais uma vez progredindo em The Winds of Winter.
É curioso como minha vida se desenvolveu. Quer dizer, houve um tempo em que, na verdade, eu escrevia meus livros e histórias na casa em que morava, num home office. Mas há algumas décadas, desejoso de mais solidão, comprei a casa em frente e fiz dela o meu refúgio de escrita. Eu não escrevia mais o dia inteiro usando meu roupão de banho de flanela; agora tinha que me vestir, calçar sapatos e atravessar a rua para escrever. Mas funcionou por um tempo.
As coisas começaram a ficar mais atarefadas, porém. Tão atarefadas que precisei de um assistente em tempo integral. E então a casa-escritório incluía mais alguém, não apenas a mim e meus personagens. E aí contratei um segundo assistente, um terceiro, e… havia mais correspondências, mais emails, mais ligações (instalamos um novo sistema de telefonia), mais pessoas passando por ali. Hoje em dia já conto com cinco assistentes… e nesse meio-tempo também adquiri um cinema, uma livraria, uma fundação de caridade, investimentos, um gerente de negócios… e…
Apesar de toda a ajuda, eu estava me afogando até encontrar a cabana das montanhas.
Minha vida aqui em cima é bem enfadonha, devo dizer. Para falar a verdade, mal se pode dizer que tenho uma vida. Um assistente fica comigo o tempo todo (minions, é como os chamo). Os assistentes fazem turnos de duas semanas, e têm que ficar de quarentena em casa antes de começarem um turno. Todos os dias, de manhã, acordo e vou direto para o computador, onde meu minion me traz café (sou absolutamente inútil e incoerente sem meu café pela manhã) e suco, e às vezes algum café da manhã leve. Aí começo a escrever. Às vezes fico ali até escurecer. Em outros dias, paro no final da tarde para responder e-mails ou retornar ligações urgentes. Meu assistente me traz comida e bebida de tempos em tempos. Quando finalmente paro de trabalhar de vez, geralmente ao pôr-do-sol, temos o jantar. Aí assistimos televisão ou colocamos um filme. O wi-fi é um lixo aqui na montanha, porém, então as escolhas são limitadas. Há noites em que leio, ao invés disso. Sempre leio um pouco antes de dormir; quando um livro realmente me pega, posso ler metade da noite, mas é raro.
Durmo. No dia seguinte, acordo e faço a mesma coisa. E no dia seguinte, e no seguinte, e no seguinte. Antes da Covid, eu geralmente saía uma vez por semana para comer num restaurante ou ir ao cinema. Isso tudo terminou em março. Desde então, semanas e meses se passam sem que eu saia da cabana, ou veja outro ser humano à exceção de quem quer esteja de serviço naquela semana. Perco as contas de que dia é, que semana é, que mês é. O tempo parece passar muito rápido. Estamos em agosto, e não sei o que aconteceu com julho.
Mas isso é bom para a escrita.
E sabe, parando agora para pensar, estou começando a perceber que esse sempre foi o meu padrão. Me mudei para Santa Fe no final de 1979, vindo de Dubuque, Iowa. Meu primeiro casamento terminou logo antes da mudança, então cheguei a minha nova casa sozinho, numa cidade em que não conhecia quase ninguém. Roger Zelazny morava aqui, e se tornou um grande amigo e mentor, mas Roger era casado e tinha filhos pequenos, então na verdade eu não o via com muita frequência. Não havia fandom em Santa Fe, era tudo em Albuquerque, a uma hora de distância. Eu ia a encontros do clube todo mês, mas era só uma noite por mês e gastava duas horas na estrada. E eu não tinha um trabalho que me permitisse conhecer gente nova. Meu trabalho era no quarto dos fundos da casa da Declovina Street, então era lá que eu passava meus dias. À noite, eu assistia televisão. Sozinho. Às vezes eu ia ao cinema. Sozinho.
Essa foi minha vida de dezembro de 1979 a setembro de 1981, quando a Parris finalmente se mudou para Santa Fe, depois da Denvention. (Talvez a vida não fosse tão erma, na verdade eu já tinha feito alguns amigos aqui no final de 1980 e no início de 1981, mas foi um processo demorado). Quando penso na minha vida em 1980-1981, as memórias parecem ser completamente tomadas por convenções, intercaladas com episódios de Lou Grant e WKRP em Cincinnati.
Ah, mas no que diz respeito ao trabalho, aquele mesmo período foi tremendamente produtivo pra mim. Lisa e eu terminamos Santuário dos Ventos naquela época, Gardner e eu trabalhamos bastante em “Shadow Twin“, e depois embalei e escrevi Sonho Febril inteiro. Alguns contos também. Minha vida, como tal, era vivida na minha cabeça, e nas páginas.
Me pergunto se é assim também com outros escritores. Ou será só comigo? Me pergunto se um dia vou descobrir o segredo de ter uma vida e escrever um livro ao mesmo tempo.
Com certeza ainda não descobri.
Para o momento, é o que temos. Minha vida é em casa, em espera, e passo meus dias em Westeros com meus camaradas Mel, Sam, Vic e Ty. E aquela menina sem nome, lá em Braavos.
Para contexto, vamos recapitular quem e o que são algumas figuras e locais mencionados por Martin nesse post. Parris, é claro, é a esposa dele. A casa dele e a “casa em frente” são em Santa Fe, também no Novo México, e elas podem ser vistas aqui:
Os minions de Martin são seus assistentes, e diante dessa revelação da rotina, parece ficar claro que os “mountain minions” (a quem o livro Fogo & Sangue é dedicado) são mesmo os que o auxiliam na cabana.
Pelo texto do post fica claro também que George já estava se recolhendo na cabana das montanhas desde antes da pandemia de Covid, e não “aproveitou a quarentena” para voltar (ou começar) a trabalhar em The Winds of Winter, como muitas manchetes imprensa afora noticiaram erroneamente.
Martin ainda fala de algumas obras que escreveu no período 1980-1981, sobre as quais os leitores podem saber mais clicando nos links para nossas páginas especiais a respeito delas.
Por fim, ele cita novamente alguns personagens com ponto de vista de The Winds of Winter. Sei que nossa tendência é especular sobre a situação dos mencionados, sobre sua localização geográfica (se em Westeros ou Essos, nos casos de Victarion, Tyrion e Arya, por exemplo) ou até se estão vivos ou mortos, imaginando que após tantos anos George esteja escrevendo os capítulos finais do livro.
O que acontece, no entanto, é que como a escrita de Martin não é linear (ele escreve vários capítulos fora de ordem) e ele com frequência volta, edita, revisa e reestrutura capítulos já escritos, ele pode estar se referindo a POVs desses personagens que estejam no início ou no meio do livro, e não apenas no final. A esse respeito, no artigo em falo sobre o prazo de publicação de Os Ventos do Inverno após o término do livro, há também um tópico sobre o processo de escrita de Martin.
A “fortaleza da solidão” que abre o post, é claro, é uma referência ao refúgio do Superman.