Ainda em 2018, publiquei um texto sobre o prólogo de A Fúria dos Reis, analisando a relação de Cressen e Stannis e as lacunas deixadas pelo narrador que focaliza a história no olhar do velho meistre. Para além da interessante discussão gerada por esse assunto, surgiram várias sugestões de que seguíssemos com uma série de textos sobre os prólogos e epílogos dos livros. Decidi ouvi-las, e, na sequência, publiquei uma leitura do epílogo de A Tormenta de Espadas, discutindo representações da vingança. Agora, continuando a essa série nada ordenada de análises, vamos discutir o prólogo de O Festim dos Corvos.

É um capítulo cheio de mistérios, conspirações, suspeitas sobre a identidade de personagens, mas esses elementos já foram debatidos à exaustão. O foco desse texto é um elemento bem específico, e por vezes, despercebido: a neblina que ronda Pate. Quero discutir o que ela pode nos indicar sobre o estilo de escrita de Martin, remetendo a tradições literárias como o romantismo e sua visão sobre a fantasia. Mas para isso, primeiro precisamos lembrar que a Cidadela não é um lugar que tem a magia e uma visão romântica de mundo em muito boa conta.

Meistres e a ciência

prólogo de O Festim dos Corvos
Citadel Law por Paul Guzenko

A Cidadela é provavelmente a única instituição nos moldes de uma universidade em Westeros. Enquanto as universidades da Idade Média europeia eram extremamente vinculadas à religião, priorizando estudos em retórica, dialética e teologia, a formação dos meistres vai desde escritos históricos até técnicas de medicina. Afinal, existe uma finalidade específica para os estudos: ser apto a aconselhar um senhor em algum castelo dos Sete Reinos. Para isso, considera-se necessária uma gama de conhecimentos que dialogam com uma noção de ciência muito diferente daquela concebida pelos escolásticos.

Não é de hoje que muitos leitores apontam o desgosto dos meistres por elementos mágicos. Existe inclusive uma teoria famosa que já foi traduzida aqui no site (nos tempos de Game of Thrones BR) chamada “A Grande Conspiração dos Meistres da Cidadela“, que especula que o objetivo da ordem dos meistres seja acabar com a magia no mundo, como sugere Marwyn, e que eles estariam por trás da morte dos dragões e da deposição da dinastia Targaryen. Não vem ao caso discutir essa teoria em si (e seus possíveis exageros) mas ela acentua algo que é evidente: a oposição entre magia e ciência existe em Westeros, e os meistres representam o segundo lado dessa disputa.

O antecedente mais notável disso é justamente Meistre Cressen. O capítulo narrado a partir do seu ponto de vista tem como antagonista Melisandre, uma sacerdotisa que ele vê como exótica, envolvida com tipos de magia obscuros e suspeitos. Sua influência sobre Stannis é desaprovada por Cressen em uma dimensão pessoal, mas também ideológica. O meistre é levado, durante o capítulo, e especialmente na ocasião de sua morte, a compreender que a magia de Melisandre é real, apesar de sua constante recusa em favor da ciência e de uma religião mais passiva, a Fé dos Sete. Outros exemplos poderiam ser dados, como Meistre Luwin constantemente desconsiderando as histórias da Velha Ama e as visões de Bran.

Tendo isso em mente, a expectativa criada pelo leitor em torno da Cidadela provavelmente é de que ela será o lugar que melhor representa essa visão de mundo racionalista dos meistres. No entanto, a primeira palavra dita em O Festim dos Corvos, antes mesmo de ser revelado onde o prólogo se passa, é “dragões”. O capítulo inteiro é permeado por mistérios e dúvidas, e um elemento em especial — a neblina — reforça a ideia de que o que o leitor encontrará nesse núcleo não será inteiramente racional.

A neblina

Estou me detendo especificamente nesse tema pois Martin já tem um histórico de usá-lo como um elemento no debate entre fantasia e ciência, ou entre dúvidas e certezas. Quando ainda era um escritor iniciante, no verão de 1971, o autor escreveu um conto que considerava um de seus melhores até o momento: Com a Manhã Vem o Pôr da Neblina (que pode ser lido gratuitamente aqui). O conto é narrado por um (ou uma) jornalista que visita o planeta de Wraithworld, um mundo cuja maior atração para os turistas é a lenda dos espectros, criaturas que vagam na neblina que se instaura no planeta à noite. O protagonista vai ao local acompanhado do cientista Dubowski e sua equipe, que pretendem efetivamente descobrir a verdade sobre a lenda. Eles se hospedam em Castle Cloud, um hotel de propriedade de Sanders, um homem carismático e apaixonado pelos mistérios de seu planeta.

Castle Cloud por Tom Kidd

Na história, o narrador tenta intermediar a relação de Sanders e Dubowski, que estão em constante atrito, pois, para Sanders, a beleza do planeta está na aura de mistério invocada pelos espectros, criaturas que supostamente foram vislumbradas por alguns exploradores e mataram tantos outros, enquanto Dubowski foi até lá exclusivamente para investigar o lugar e trazer respostas. Ao final, a expedição conclui que os espectros não eram verdadeiros, e o planeta se torna efetivamente colonizado por setores produtivos, enquanto que, para o narrador, a beleza que o envolvia se foi. A neblina do título simboliza a beleza e a contemplação do inexplicável, aquilo que Dubowski não conseguia compreender, mas Sanders mostra ao protagonista durante a história. Contrária ao cientificismo, a neblina não é necessariamente a magia, mas a possibilidade de que algumas coisas não possam, ou não devam, ser explicadas. Priscila Zorzi chama esse conto de “uma carta de amor à fantasia“, e isso se reflete no restante da produção de Martin, incluindo em As Crônicas de Gelo e Fogo. Para discutir esse aspecto no livro, primeiro é preciso que nos detenhamos um pouco na história da literatura e em como Martin se posiciona a esse respeito.

O romantismo de George R. R. Martin

Essa ocorrência da neblina como um elemento que representa uma incerteza contemplativa, uma forma particular de relação com o mundo que rejeita explicações extremamente racionais e valoriza a subjetividade dos sentimentos está diretamente relacionado com uma das principais características pelas quais a prosa de Martin era conhecida no início de sua carreira: o romantismo.

Por romantismo, me refiro à tradição literária europeia que tem origem no século XVIII e toma mais força ainda no século XIX, uma forma de reação à revolução industrial e constante urbanização daquelas sociedades. Resgatando uma memória saudosa das tradições medievais, antiburguesas e profundamente religiosas, autores como os irmãos Grimm, François-René de Chateaubriand e, na tradição anglófona, Lord Byron, Mary Shelley e Samuel Taylor Coleridge, se transformaram em símbolos de um período da história da literatura que deixou marcas até os dias de hoje, seja na literatura dita realista, ou em gêneros como o horror, a fantasia e até a ficção científica.

Especificamente na fantasia, J. R. R. Tolkien e C. S. Lewis, também em reação aos movimentos modernistas, trazem muitos dos ideais românticos para a literatura do século XX. E não é segredo para ninguém que especialmente Tolkien é uma das grandes influências de Martin através de toda sua carreira. Mas não é apenas isso: em Sonho Febril, por exemplo, Martin usa poemas de Byron como uma imagem constante. Em Uma Canção Para Lya, a menção é a Dover Beach, poema do romântico Matthew Arnold. Existem ainda registros históricos de que essa associação do autor com o romantismo não era apenas uma nota de rodapé. Em 1977, Martin escreveu:

Sou um romântico inabalável (não direi incurável, pois o romantismo é uma tradição literária/filosófica com uma longa e honrada história, não uma doença, obrigado).

(Songs of Stars and Shadows).

O autor consagrado Brian Aldiss, em seu guia de história da ficção científica, apresenta Martin da seguinte forma:

A revolução de Martin, se é que podemos chamar assim, é de imbuir a fórmula esperada das revistas — romântica, frequentemente sentimental e mecanicista — com graus de realismo.

(Trillion-Year Spree).

Assim como Tolkien, Martin também estava reagindo em partes a uma tendência literária modernista. A ficção científica dos anos 60 e 70 é conhecida pelo movimento conhecido como A Nova Onda, que justamente incorporou tendências modernistas ao gênero. Representada por Samuel R. Delany, Ursula K. Le Guin, J. G. Ballard, Philip K. Dick, e outros, essa tendência encontrou em Martin um adepto, mas não integralmente. Um de seus amigos mais próximos, o escritor e editor Gardner Dozois, afirma que:

George sempre foi um autor muito romântico. Minimalismo seco ou os jogos irônicos do pós-modernismo tão amado por muito escritores e críticos modernos não é o que você vai encontrar quando abrir algo de George R. R. Martin, mas sim uma história com um forte enredo e movida pelo conflito emocional.

Essa tendência de Martin a remeter à literatura romântica, como ficou bem evidenciada em Com a Manhã Vem o Pôr da Neblina, também é tema central de várias de suas histórias: a beleza contemplativa do espaço em Night Shift, o isolamento físico e sentimental em O Segundo tipo de Solidão, o planeta abandonado e que ruma em direção à escuridão em A Morte da Luz, além das constantes referências a lendas arturianas em contraste com a realidade trágica nesse romance, bem como em Flores Amargas. A propósito de A Morte da Luz, sua parceira de escrita, amiga e ex-namorada, Lisa Tuttle escreveu:

Quando eu conheci George em 1973, ele chamava a si mesmo orgulhosamente de um romântico (isso foi muito antes do surgimento do termo “emo”). Ele era sonhador e sensível, ressentido pelas oportunidades perdidas, inseguro, dado à melancolia (…). Quando esse livro [A Morte da Luz] foi publicado, alguns anos depois, eventos pessoais abalaram severamente sua visão romântica, mas mesmo que às vezes fosse amargo, ele ficava de luto por suas ilusões e se recusava a tornar-se um cínico.

Portanto, é inegável que a influência romântica de Martin não apenas está presente, como é amplamente reconhecida por seus colegas escritores. No entanto, a fama do autor, especialmente após a adaptação televisiva Game of Thrones, se tornou a de ser cínico, precisamente o contrário do que apontaram Tuttle, Aldiss e Dozois, em momentos diferentes. Ainda que essa visão seja muito mais baseada em momentos específicos da série de TV, muitos a aplicam às Crônicas de Gelo e Fogo, o que acredito que seja um equívoco, pois a permanência das influências românticas seguem aparecendo, ainda que sejam balanceadas com os “graus de realismo” apontada por Aldiss. Por isso, gostaria de me deter agora em como a neblina é utilizada no prólogo de O Festim dos Corvos para simbolizar a magia adentrando um ambiente que se propõe extremamente racional.

O nascer da neblina

— A maçã — Alleras repetiu. — A menos que queira comê-la.
— Lá vai — arrastando a perna de pau, Mollander deu um curto salto, rodopiou e arremessou horizontalmente a maçã para as névoas que pairavam sobre o Vinhomel. Não fosse o pé, teria sido um cavaleiro como seu pai. Tinha a força necessária naqueles braços grossos e ombros largos, e a maçã voou para longe e rápido demais…

(O Festim dos Corvos, prólogo)

O capítulo tem início na Pena e Caneca, uma estalagem na cidade de Vilhavelha que é bastante popular entre os acólitos da Cidadela, aqueles que almejam se tornarem meistres. Lá, na cidade onde se ergue uma torre cujo topo é iluminado, um símbolo do conhecimento racional, nos moldes iluministas (e não por acaso ressalto a imagem de Torralta), um grupo de jovens acólitos se reúne para bebidas e brincadeiras. Entre eles está Pate, o menino que sonha em juntar um dragão de ouro para se deitar com Rosey, a filha de Emma, uma das serventes. E ao redor dos futuros representantes da ciência, está a neblina. A Pena e Caneca é “uma ilha de luz num mar de névoa”.

Naquela manhã, a varanda iluminada a archote do Pena e Caneca era uma ilha de luz num mar de névoa. A jusante, o distante sinal luminoso da Torralta flutuava no relento da noite como uma lua alaranjada e brumosa, mas a luz pouco fez para lhe melhorar o estado de espírito.

(O Festim dos Corvos, prólogo)

Noviço da Cidadela por Joshua Cairós.

Pate está aguardando o Alquimista, um homem misterioso que o ofereceu um dragão de ouro caso Pate roubasse uma chave de um arquimeistre. O Alquimista é uma figura envolta em mistério e com insinuações sobrenaturais. Inclusive no texto original, “Alchemist” contém a palavra para “neblina”, “mistPortanto, o ambiente construído pelo capítulo até então é: uma cidade que representa a clareza de visão, e portanto, o conhecimento objetivo, sendo invadida pela neblina, e por uma figura mística. Conforme a manhã se aproxima, a névoa se esvai, e o Alquimista não aparece no local e hora onde havia combinado com Pate. Quando ele efetivamente aparece, o sol nascente acaba nublando seu rosto (o que é curioso, pois aqui, a simbologia da luz enquanto conhecimento se inverte, e é ela quem impede Pate de ver o Alquimista).

Também presente no início do capítulo, adentrando o ambiente científico, está um diálogo sobre o retorno dos dragões, e uma breve alusão a Marwyn, que sabemos ser um meistre fora da curva a respeito desse tema, que denuncia uma conspiração de sua ordem para acabar com a magia. A última vez que a neblina é mencionada nesse livro é justamente no capítulo final, quando Samwell e Gilly chegam a Vilavelha, e o dia “estava úmido, e as ruas de pedra estavam molhadas e escorregadias debaixo dos seus pés e as vielas mostravam-se cobertas de névoa e mistério.” (O Festim dos Corvos, capítulo 45, Samwell V). Enquanto no prólogo, tínhamos a névoa em um ambiente mais contido e sumindo durante o dia, aqui, quando o Alquimista já matou Pate e tomou o seu lugar, obtendo uma chave de arquimeistre, e quando o leitor efetivamente conhece Marwyn e vê sua vela de obsidiana, a neblina também toma conta da cidade durante o dia. A magia, antes à espreita, agora está se espalhando por Vilavelha.

Conclusões

O cerne do argumento que tentei demonstrar é que a neblina em O Festim dos Corvos serve como um elemento que ajuda a contrastar dois ambientes, o da racionalidade e o do inexplicável. Esse tipo de imagem possui um amplo histórico, não apenas na produção de Martin, mas também nas temáticas da literatura de fantasia ao longo das décadas. Nas suas histórias, especificamente, Com a Manhã Vem o Pôr da Neblina se dedica especificamente a isso, discutindo a necessidade das incertezas e da imaginação para conceder beleza à vida, uma visão que remonta à tradição do romantismo, movimento literário característico dos séculos XVIII e XIX.

O que observamos em um texto que surgiu mais de 30 anos mais tarde é que a presença da neblina mantém seu significado anterior, sempre aliadas às incertezas, e para As Crônicas de Gelo e Fogo, vem como um prenúncio. Um mundo de fantasia que se acreditava praticamente livre da magia não deve permanecer assim por muito tempo.