George R. R. Martin, até agora, nunca tinha tido uma postura crítica em relação às adaptações de suas obras pela HBO. Com Game of Thrones, nunca teceu críticas à condução da série por David Benioff e D. B. Weiss, se limitando, quando muito, a dizer que seus personagens eram diferentes daqueles da TV e que havia duas versões de uma mesma história (invocando sua já clássica fala sobre os filhos de Scarlett O’Hara). Com A Casa do Dragão, porém, as coisas parecem ter mudado recentemente.
Em maio, George fez um post sobre adaptações boas e ruins (falando especificamente sobre Shogun, de James Clavell) e também comentou sobre o assunto publicamente numa aparição, mas isso não é exatamente novidade. Ele já havia falado essas mesmas outras várias vezes sem se referir a adaptações de obras dele. Acontece, porém, que em outro post no Not A Blog, ele mencionou que haveria uma reunião da sala de roteiro da terceira temporada de HOTD e acrescentou expressamente que não iria participar (ao mesmo tempo em que falava que iria visitar o set de O Cavaleiro dos Sete Reinos). Ele poderia não ter dito isso, mas quis dizer.
Martin escreveu também um longo post/rant sobre a heráldica dos dragões nas séries da HBO (o que é algo mínimo) e toda uma explicação sobre a biologia dos seus dragões nos livros. Isso pareceu vir meio do nada, mas o texto mencionava um “dragão no Vale” (o que depois se viu no arco da Rhaena na segunda temporada de House of the Dragon). Ele encerrava a publicação dizendo que a fantasia precisa ter regras.
George fez, também, um post elogiando os dois primeiros episódios da segunda temporada de A Casa do Dragão e alterações ao material do livro dele. Ele mencionava, porém, que também havia críticas circulando ao episódio 2, especificamente à cena de Sangue e Queijo, e comentou: “Vou fazer um post separado sobre todos os problemas que Sangue e Queijo… e Maelor, o Desaparecido, causam. Há muito a dizer.” Em outra publicação recente, mencionou expressamente que tinha que escrever novos posts, um deles sobre “tudo que deu errado em A Casa do Dragão.”
Finalmente um desses posts chegou (e nem demorou muito!), pelo menos o que fala sobre Sangue e Queijo. Abaixo, publicamos uma versão traduzida do post de Martin no blog, intitulado “Cuidado com as Borboletas”. ATUALIZAÇÃO: o post foi excluído blog de George, mas ainda pode ser lido no original aqui.
Lá atrás, em julho, prometi a vocês mais algumas ideias sobre Fogo e Sangue… e Maelor, o Desaparecido… depois do meu comentário sobre os dois primeiros episódios da segunda temporada de A Casa do Dragão, “A Son for a Son” e “Rhaenyra the Cruel”.
Foram episódios excelentes: bem escritos, bem dirigidos, com atuações fortíssimas. Uma ótima maneira de dar o pontapé inicial na nova temporada. Tanto fãs quanto críticos pareciam estar de acordo. Apenas um aspecto dos episódios atraiu críticas consideráveis: a abordagem de Sangue e Queijo e a morte do Príncipe Jaehaerys. Pelos comentários que vi on-line, as opiniões ficaram divididas. Os leitores de Fogo & Sangue acharam a sequência frustrante, uma decepção, enfraquecida em relação ao que esperavam. Os espectadores que não tinham lido o livro não tiveram esses problemas. A maioria achou a sequência um verdadeiro soco no estômago, trágica, horripilante, tenebrosa, etc. Alguns relataram que chegaram a chorar.
Percebi que eu concordava com os dois lados.
No meu livro, Aegon e Helaena têm três filhos, não dois. Os gêmeos, Jaehaerys e Jaehaera, têm seis anos. Eles têm um irmão mais novo, Maelor, que tem dois. Quando Sangue e Queijo surpreendem Helaena e as crianças, eles dizem que são cobradores de dívidas e vieram para vingar a morte do príncipe Lucerys: um filho por um filho. Como Helaena tem dois filhos, porém, eles exigem que ela escolha um para morrer. Ela resiste e oferece a própria vida em troca, mas os assassinos insistem que tem que ser um filho. Se ela não escolher um, eles vão matar os três. Para salvar a vida dos gêmeos, Helaena escolhe Maelor. Em vez disso, Sangue mata o menino mais velho, enquanto Queijo diz ao pequeno Maelor que a mãe o queria morto (se o menino tem idade suficiente para entender, não fica nada claro).
Não é o que acontece na série. Maelor não existe em A Casa do Dragão, apenas os gêmeos (e os dois parecem ter menos que seis anos, mas certamente não sou bom avaliador da idade de crianças, então não posso saber ao certo que idade eles devem ter). Sangue não parece saber qual gêmeo é qual, então eles dizem à Helaena que revele qual é o menino (imagina-se que uma olhadela nos pijamas dele já revelaria isso, sem envolver a mãe). Em vez de oferecer a própria vida para salvar a dos filhos, Helaena oferece um colar. Sangue e Queijo não ficam tentados. Sangue serra a cabeça do príncipe Jaehaerys. Somos poupados de ver essa cena. Um efeito sonoro basta (no livro, ele arranca a cabeça com uma espada).
É uma cena sanguinolenta e brutal, sem dúvida. Como não seria? Uma criança inocente está sendo chacinada na frente da mãe.
Ainda acredito que a cena no livro é mais forte. Os leitores têm razão quanto a isso. Os dois assassinos são mais cruéis no livro. Achei que os atores que interpretaram os assassinos na série foram excelentes… mas os personagens são mais cruéis, mais duros e mais assustadores em Fogo & Sangue. Na série, Sangue é um manto dourado. No livro, ele é um ex-manto dourado, retirado do cargo por espancar uma mulher até a morte. O Sangue do livro é o tipo de homem que pode achar divertido fazer uma mulher escolher qual dos filhos deve morrer, especialmente quando eles dobram a aposta na crueldade gratuita ao matar o menino que ela tenta salvar. O Queijo do livro também é pior. Ele não chuta um cachorro, é verdade, mas ele não tem um cachorro, e é ele quem diz a Maelor que a mamãe quis a cabeça dele. Eu também sugeriria que Helaena demonstra mais coragem, mais força, no livro, ao oferecer a própria vida para salvar o filho. Oferecer uma joia simplesmente não é a mesma coisa.
No meu entender, o aspecto da “escolha de Sofia” era a parte mais forte da sequência, a mais sombria, a mais visceral. Detestei perder isso. E julgando pelos comentários on-line, a maioria dos fãs pareceu concordar.
Quando Ryan Condal me disse pela primeira vez o que pretendia fazer, eras atrás (lá em 2022, talvez), eu fui contra, por todos esses motivos. Não argumentei por muito tempo ou com tanta intensidade, porém. Eu sentia que a mudança enfraquecia a sequência, mas só um pouco. E Ryan tinha motivos aparentemente práticos para ela: eles não queriam ter que escalar outra criança, particularmente uma de dois anos. Crianças tão novas inevitavelmente atrasam a produção, e haveria implicações de orçamento. O orçamento já era um problema em A Casa do Dragão, então fazia sentido economizar onde fosse possível. Além disso, Ryan me garantiu que não perderíamos o príncipe Maelor, apenas o protelaríamos. A rainha Helaena ainda poderia dar à luz na terceira temporada, possivelmente depois de engravidar no final da segunda. Fez sentido pra mim, então retirei minhas objeções e concordei com a mudança.
Ainda adoro o episódio e a sequência de Sangue e Queijo como um todo. Perder a “escolha de Helaena” realmente enfraqueceu a cena, mas não a um nível muito alto. Só os leitores perceberiam a ausência. Os espectadores que nunca tinham lido Fogo & Sangue ainda achariam as cenas de cortar o coração. Maelor não fazia realmente nada na cena, no fim das contas. Como poderia fazer? Ele só tinha dois anos.
Há outro aspecto na exclusão do jovem principezinho, porém.
Aqueles entre vocês que detestam spoilers devem PARAR DE LER AQUI. Teremos spoilers, pelo menos para os leitores. Se você nunca leu Fogo & Sangue, talvez não se importe, porque o que vou contar aqui são coisas que acontece no livro que podem NUNCA acontecer na série. Começando pelo próprio Maelor.
Em algum momento desde a decisão inicial de excluir Maelor, uma mudança drástica foi feita. O nascimento do príncipe não seria só protelado para a terceira temporada. Ele nunca ia nascer. O filho mais novo de Aegon e Helaena nunca apareceria.
A maioria de vocês conhece o “efeito borboleta”, imagino eu.
Sim, teve um filme com esse título há uns anos. É um conceito conhecido na teoria do caos também. Mas a maioria dos fãs de ficção científica conheceu a ideia na clássica história de viagem no tempo de Ray Bradbury, “A Sound of Thunder”, em que um viajante do tempo do presente entra em pânico e esmaga uma borboleta enquanto caça um tiranossauro rex. Quando volta para sua época, ele descobre que o mundo mudou de formas gigantescas e assustadoras. Uma borboleta morta reescreveu a história. A lição é que mudanças geram mudanças, e até alterações pequenas e aparentemente insignificantes a uma linha do tempo — ou a uma história — podem causar um efeito profundo em tudo que vem a seguir.
Maelor é uma criancinha de dois anos em Fogo & Sangue, mas, como nossa borboleta, ele tem um impacto na história inversamente proporcional ao seu tamanho. Os leitores entre vocês podem se lembrar de que quando parece que Rhaenyra e seus pretos estão prestes a capturar Porto Real, a rainha Alicent fica preocupada com a segurança dos filhos restantes de Helaena e toma medidas a fim de salvá-los, tirando-os da cidade clandestinamente. A tarefa é confiada a dois cavaleiros da Guarda Real. Sor Willis Fell é ordenado a entregar a princesa Jaehaera aos Baratheons em Ponta Tempestade, enquanto Maelor é entregue a Sor Rickard Throne para ser escoltado até o outro lado do Vago, rumo à proteção do exército Hightower a caminho do Porto Real.
Willis Fell entrega Jaehaera em segurança aos Baratheons em Ponta Tepestade, mas Sor Rickard tem pior sorte. Ele e Maelor chegam a Ponteamarga, onde ele é descoberto como Guarda Real em uma taverna chamada Cabeça de Porco. Assim que é descoberto, Sor Rickard luta bravamente para proteger o jovem confiado a si e mantê-lo em segurança, mas nem consegue cruzar a ponte antes de ser abatido por setas de besta. O príncipe Maelor é arrancado de seus braços… e aí, infelizmente, despedaçado pela turba que luta pelo menino e pela enorme recompensa que Rhaenyra ofereceu por sua captura e devolução.
Algo disso vai aparecer na série? Talvez… mas não vejo como. As borboletas parecem proibir que isso aconteça. Talvez fosse possível a protegida de Sor Rickard ser Jaehaera em vez de Maelor, mas Jaehaera não pode ser morta, já que tem um enorme papel a desempenhar como próxima herdeira de Aegon. Talvez se pudesse fazer Maelor ser um recém-nascido em vez de um menino de dois anos, mas isso bagunçaria a linha do tempo, que já está meio bagunçada. Não faço idea do que Ryan planejou — se é que planejou alguma coisa —, mas, diante da ausência de Maelor do episódio 2, a forma mais simples de proceder seria simplesmente excluí-lo completamente, perder a parte que Alicent tenta mandar as crianças para locais seguros, excluir Rickard Thorne ou enviá-lo com Willis Fell, de forma que Jaehaera teria dois guardas.
Pelo que sei, parece que é o que Ryan vai fazer. É mais simples, sim, e pode fazer sentido em termos de orçamento e cronogramas de rodagem. Mas mais simples não é melhor. A cena de Ponteamarga tem tensão, suspense, ação, derramamento de sangue, um pouco de heroísmo e muita tragédia. Rickard Throne é, no máximo, um personagem terciário. A maioria dos espectadores (ao contrário dos leitores) nunca nem saberá que ele se foi, já que nunca o conheceu… mas eu preferiria dar a ele seu breve momento de heroísmo, um gostinho da coragem e da lealdade dos Guardas Reais, independentemente se são pretos ou verdes.
As borboletas ainda não chegaram ao fim conosco, porém. No livro, quando a notícia da morte do príncipe Maelor e a terrível forma de seu falecimento chegam à Fortaleza Vermelha, isso se revela como o estopim que leva a rainha Helaena ao suicídio. Ela mal conseguia olhar para Maelor, sabendo que tinha escolhido que ele morresse na cena da “escolha de Sofia”… e agora ele está morto de verdade. As palavras dela se tornaram realidade. O luto e a culpa são demais para ela.
No outline de Ryan para a terceira temporada, Helaena ainda se mata… por nenhum motivo em particular. Não é novo horror, nenhum evento gatilho que sobrecarrega a jovem rainha.
E a borboleta final vem logo depois.
A rainha Helaena, uma alma doce e gentil, é muito amada pelo povo comum de Porto Real. Rhaenyra não era, então quando surgem rumores de que Helaena não se matou, mas na verdade foi assassinada a mando de Rhaenyra, os plebeus rapidamente acreditam. “Naquela noite, um levante sangrento tomou conta de Porto Real”, foi o que escrevi em Fogo & Sangue. É o começo do fim do domínio do Rhaenyra sobret a cidade, o que, em última instância, leva ao Assalto ao Fosso dos Dragões e à ascensão da turba do Pastor que leva Rhaenyra a fugir da cidade e a voltar para Pedra do Dragão… e à morte.
Maelor, por si só, significa pouco. É uma criancinha, não tem uma fala sequer, não faz nada consequencial a não ser morrer… mas o onde, o quando e o como importam. Perder Maelor enfraqueceu o fim da sequência de Sangue e Queijo, mas também nos custou a cena em Ponteamarga com todo seu horror e heroísmo, reduziu a motivação para o suicídio de Helaena, o que, por sua vez, mandou milhares às ruas e becos clamando por justiça por sua rainha “assassinada”. Nada disso é essencial, acho eu… mas tudo isso serve a um fim, tudo ajuda a amarrar as tramas da histórias, de forma que uma coisa se segue a outra de uma maneira lógica e convincente.
O que vamos oferecer aos fãs em troca disso, assim que tivermos matado essas borboletas? Não faço ideia. Não me lembro de Ryan e eu termos discutido isso lá atrás, quando ele me contou que iam protelar o segundo filho do Aegon. O próprio Maelor não é essencial… mas se perdê-lo significa que também perdemos Ponteamarga, o suicídio de Helaena e as revoltas, bom… é uma perda considerável.
E há borboletas maiores e mais tóxicas vindo aí, se A Casa do Dragão seguir adiante com algumas das mudanças sendo consideradas para as temporadas 3 e 4…
É notável que Martin tenha falado de vários eventos de Fogo & Sangue como fatos objetivos, o que contraria a tônica (muito frequente entre defensores incondicionais das séries da HBO e até entre roteiristas e showrunners) de que tudo no livro estaria sujeito a ser considerado questionável, enviesado ou duvidoso.
No fim das contas, foi um texto bem direto de George. A menção ao “efeito borboleta” não é nova, ele dizia a mesma coisa sobre Game of Thrones, mas nunca chegou a abordar tão diretamente o que ele considerava problemas no processo adaptativo.
É notável, também, que Martin não tenha feito qualquer menção à redução de episódios da temporada pela HBO, como muitos fãs e influenciadores presumiram que ia fazer, mas abordado diretamente decisões de adaptação. Não foi agressivo com os roteiristas nem com o showrunner Condal, mas também não poupou palavras, o que é totalmente inédito.
Pelo fim do post e pelo que ele hava dito anteriormente (sobre falar de “tudo que deu errado” na segunda temporada), poderíamos presumir que viesse mais por aí, mas após a exclusão do post do blog, não dá mais para ter certeza. De qualquer forma, uma boa leitura.