Na semana passada, publicamos um guia completo sobre Fogo & Sangue, o livro de George R. R. Martin sobre a história dos Targaryen, que será lançado em 20 de novembro.

Com a publicação iminente do livro, resolvemos também convidar os tradutores da edição brasileira, Regiane Winarski e Leonardo Alves, para responderem algumas perguntas sobre como o mais novo relato de “história imaginária” de Westeros foi trazido para o nosso português.

Leonardo já havia sido responsável pela tradução e preparação do Atlas das Terras de Gelo e Fogo, a coleção de mapas publicada no Brasil pela Leya, e havia colaborado também com Mulheres PerigosasO Mundo de Gelo e Fogo. Regiane ainda não havia trabalhado com a obra de Martin, mas já havia traduzido vários autores de fantasia para a editora Suma.

Ambos se mostraram bastante disponíveis para nos atender, e consideramos que as respostas deles podem dar aos leitores uma boa ideia de como foi o processo de tradução do livro. Acompanhe nossa conversa a seguir.

Felipe Bini: Primeiro, gostaríamos de conhecer vocês e apresentá-los aos nossos leitores. Poderiam contar um pouco da formação de vocês e das carreiras como tradutores, e do histórico com a literatura de fantasia?

Regiane Winarski tradutora
Regiane Winarski, tradutora de Fogo & Sangue.

Regiane Winarski: Sou formada em Comunicação Social (habilitação Produção Editorial) pela UFRJ e já me interessava por tradução desde a época. Fiz minha monografia sobre os desafios da tradução no mercado editorial. Mas a realidade da vida me levou a começar a trabalhar como professora de inglês no terceiro ano de faculdade, e quando me formei acabei continuando como professora. Minha motivação para finalmente voltar a estudar tradução veio dez anos depois de começar a dar aulas, quando tive minha filha. A tradução oferecia a possibilidade de me dedicar a uma atividade que muito me interessava e também ter mais flexibilidade para acompanhar a infância dela. Depois que me desliguei dos meus dois empregos, passei mais ou menos um ano estudando tradução, tanto por conta própria quanto fazendo alguns cursos. Fiz um curso de legendagem e comecei a carreira fazendo legendas para canais de TV a cabo, mas menos de um ano depois consegui meu primeiro teste editorial. Depois disso, não parei mais. Tenho muita experiência com literatura jovem (young adult), inclusive muitos títulos de fantasia desse segmento, além de traduzir autores como Stephen King e outros livros de fantasia para a Suma.

Leonardo Alves tradutor
Leonardo Alves, tradutor de Fogo & Sangue.

Leonardo Alves: Claro. Sou formado pela UFRJ em Comunicação Social, habilitação em Produção Editorial, e antes de virar tradutor fui editor interno e revisor freelancer de algumas das principais editoras do Rio de Janeiro, trabalhando com obras nacionais e estrangeiras de ficção e não ficção. Mas sempre tive interesse pelo ofício da tradução, e a literatura especulativa é quase uma obsessão (meu TCC na faculdade foi sobre a ficção científica no mercado editorial brasileiro). Em 2011-2012, decidi que era hora de me dedicar à carreira de tradutor. O começo foi devagar, com um ou outro livro, até que com o tempo o volume de trabalho cresceu e consegui me estabelecer de vez. Fiz um pouco de tudo nessa trajetória, desde livro sobre a Segunda Guerra Mundial até coletânea de contos do Sherlock Holmes, e nesse gênero que a gente tanto gosta tive o prazer de encarar umas preciosidades, como a nova edição de Deuses americanos, do Neil Gaiman, e a trilogia iniciada por O problema dos três corpos, do chinês Cixin Liu.

Felipe Bini: Passando mais especificamente à obra de George R. R. Martin, sabemos que o Leonardo foi o tradutor do Atlas das Terras de Gelo e Fogo e participou da revisão de Mulheres Perigosas. Mas além disso, como era o contato prévio de vocês com a obra do autor (até enquanto leitores)? Quais trabalhos dele são os favoritos de vocês?

Regiane Winarski: Gosto muito de fantasia desde que era adolescente. Lembro claramente quando o primeiro episódio de Game of Thrones foi exibido na televisão. Eu me empolguei tanto que corri para comprar o primeiro livro das Crônicas de gelo e fogo. Assisti à serie toda e li até o quarto livro, e não passei dele por questão de tempo mesmo (mas já está comprado e ainda está nos planos). Não li as outras obras do George R. R. Martin ainda, mas o admiro muito como autor e contador de histórias.

Leonardo Alves: Confesso que nunca fui um grande leitor de fantasia (prefiro ficção científica), então, antes da série da HBO, nunca tinha ouvido falar de George R. R. Martin. Só que a série me cativou tanto que fiquei muito intrigado de conhecer os livros que a inspiraram. Comprei uma coleção em e-book dos cinco títulos lançados e fui lendo devagarzinho, mas, na correria do dia a dia, não conseguia separar tempo para seguir a leitura e acabei interrompendo. Recebi um incentivo enorme quando a Leya entrou em contato comigo. A editora me contratou para montar um glossário da série toda, e com isso pude retomar a leitura a pleno vapor e finalmente devorei os cinco volumes. Depois, ainda colaborei com o Atlas, o Mulheres perigosas e também O mundo de gelo & fogo. Infelizmente, não tive chance ainda de conhecer a série Wild Cards e as várias coletâneas e antologias que o George R. R. Martin organizou. Das Crônicas de Gelo e Fogo, preciso apontar o primeiro livro como meu favorito. É muito difícil um livro de fantasia desenvolver um mundo que pareça ao mesmo tempo real e original, e, em termos de apresentação inicial, A guerra dos tronos é um dos melhores que já li.

Felipe Bini: A tradução de Fogo & Sangue foi feita em conjunto por vocês dois. Como se deu esse processo, e a divisão do trabalho?

Regiane Winarski: É muito difícil coordenar uma divisão de tradução como essa, e a equipe da Suma fez um trabalho fenomenal. O texto foi dividido em seis trechos intercalados entre mim e o Leonardo, e tínhamos data certa rigorosa para entregar cada trecho, para que a pessoa responsável pela etapa seguinte, o copidesque, pudesse dar continuidade ao trabalho sem atraso. Vale mencionar que o copidesque deve ter sido a parte mais difícil, porque a pessoa responsável por isso tinha que harmonizar o meu texto e o dele, para tentar eliminar discrepâncias e qualquer indicativo de dois tradutores. Eu acho de verdade que os leitores vão se impressionar com o resultado.

Leonardo Alves: O livro foi dividido mais ou menos na metade, sendo que recebemos blocos alternados de pouco mais de 100 laudas (a medida de referência do mercado editorial), provavelmente para não sobrecarregar nenhum dos dois e a editora conseguir adiantar a produção enquanto traduzíamos.

Felipe Bini: Sabemos que o prazo do trabalho foi apertado, para poder haver o lançamento simultâneo com a edição americana. Quanto tempo se passou desde o recebimento do texto original até a finalização da tradução por vocês?

Regiane Winarski: O prazo foi uma loucura! Esse tipo de projeto acaba sendo uma verdadeira aventura. Nós tivemos quase um mês para fazer tudo. Eu estava em viagem de férias quando a proposta veio, e precisamos fazer um malabarismo para fazer as datas encaixarem. Mas, como falei na pergunta anterior, a equipe da Suma deu um banho de organização e profissionalismo, e conseguimos chegar a um acordo que funcionou para todo mundo.

Leonardo Alves: Tivemos mais ou menos um mês para traduzir o livro inteiro, fazendo entregas parciais a cada 7-10 dias.

Edição brasileira de 2017 de O Mundo de Gelo e Fogo. Esse volume conta com uma árvore genealógica que a equipe do Gelo & Fogo ajudou a elaborar.

Felipe Bini: Fogo & Sangue é um livro inédito, mas partes dele já haviam sido publicadas em coletâneas. Como essa questão foi tratada? As seções já publicadas foram retraduzidas do zero?

Regiane Winarski: Eu não tinha lido nenhuma dessas partes que já tinham sido publicadas, mas não foi a minha primeira experiência com textos já traduzidos anteriormente. Preferi não ler essas traduções para não ter influência, e soube que os textos não estavam idênticos aos publicados anteriormente – mas admito que não verifiquei isso. Ou seja, o livro foi todinho traduzido do zero mesmo.

Leonardo Alves: Para o Fogo & Sangue, o George R. R. Martin aproveitou essas partes já publicadas, mas as incrementou com mais história, mais detalhes, de modo que o livro todo acabou ficando com uma unidade muito coesa. Por isso, traduzimos tudo como se fosse um livro novo. Eu até evitei reler O Mundo de Gelo & Fogo e Mulheres Perigosas para não me deixar influenciar pela tradução daqueles livros e só os consultei para verificar algum termo que não tivesse aparecido na série principal.

Felipe Bini: Além dessas passagens já publicadas, o livro também está inserido em um universo maior, com termos cuja tradução havia sido estabelecida em outras obras. Os glossários da adaptação da Leya para a tradução de Jorge Candeias, das traduções de Marcia Blasques e dos tradutores dos contos foram aproveitados? Existiu alguma dificuldade nesse sentido?

Regiane Winarski: Essa foi a minha primeira preocupação quando eu soube do trabalho: como fazer com todos aqueles termos e nomes? O glossário fez toda a diferença, assim como o trabalho do copidesque, que fez a amarração final entre as minhas partes e as do Leonardo.

Leonardo Alves: Sim, o glossário foi fundamental. Somando os cinco livros principais, O Mundo de Gelo & Fogo e o Atlas, são milhares de verbetes, o que dá uma indicação do tamanho colossal do trabalho do Jorge Candeias, da Marcia Blasques e do Alexandre Martins (tradutor do Mulheres Perigosas), além de toda a equipe editorial que produziu a série. Por isso, apesar dos esforços de todo mundo que participou desses livros, a tradução de alguns termos acabou variando. A maior dificuldade, então, foi decidir o que fazer nesses casos, de acordo com critérios de frequência, contexto etc.

Gyldayn
Arquimeistre Gyldayn, por Douglas Wheatley em Fogo & Sangue.

Felipe Bini: Houve alguma peculiaridade na tradução do livro, pelo fato de o autor adotar nele uma voz enciclopédica, mas ainda assim ser uma obra literária (com um “personagem-autor”)?

Regiane Winarski: George R. R. Martin é um dos maiores autores do nosso tempo, indiscutivelmente. Além de criar histórias incríveis e cheias de detalhes com personagens complexos e cativantes, ele escreve bem demais! O texto dele é fluido, e posso dizer que esse é um dos maiores prazeres que eu tenho na hora de traduzir. Por isso, acabou sendo um trabalho muito orgânico, muito natural. Eu quase não sentia o tempo passar de tão absorta que fiquei na história.

Leonardo Alves: O estilo do George R. R. Martin é extremamente fluido, o que acho que ajudou a catapultar a série ao panteão das melhores séries de fantasia de todos os tempos. Mesmo com uma história cheia de personagens, tramas secundárias, motivações secretas, conspirações etc., dá para ler tudo com tranquilidade sem parecer que estamos estudando um tratado denso sobre a história da civilização. Além disso, acho que a maior peculiaridade de Fogo & sangue em relação ao resto da série é que, neste livro, tivemos apenas a voz “neutra” do meistre registrando fatos históricos, sem inflexões de outras personalidades (exceto em ocasionais reproduções de diálogos), o que para o tradutor costuma ser um dos principais desafios na hora de reproduzir essas personalidades na língua portuguesa.

Felipe Bini: Como vocês veem a possibilidade de o Fogo & Sangue ser lido de forma independente, eventualmente sem uma leitura prévia de outras obras de Martin?

Regiane Winarski: Não há nenhuma necessidade de conhecer as outras obras do Martin para ler Fogo & Sangue. Vejo claramente os dois caminhos que podem acontecer, e lamento não poder ter as duas experiências, porque ambas me parecem incríveis. Quem ler Fogo & Sangue primeiro vai se deparar com uma história cheia de emoção das gerações de uma família incrível e provavelmente vai ter o interesse de conhecer as Crônicas de gelo e fogo em seguida. Fico imaginando a experiência dessa pessoa ao ir identificando os nomes e eventos conforme forem aparecendo nos livros da série. Quem já conhece os livros (ou mesmo só a série de televisão) vai ter o prazer contrário: de entender melhor vários eventos que foram mencionados nas Crônicas e se deliciar reconhecendo determinadas famílias que já conhecemos bem e vendo seu papel na história de Westeros.

Leonardo Alves: Acho bastante possível ler Fogo & sangue sem ter lido As crônicas de gelo & fogo, porque a história é muito envolvente do começo ao fim. Quem não nunca ouviu falar na Dança dos Dragões vai correr de capítulo em capítulo para ver quem são esses Targaryen e como essa dinastia se estabelece, e quem já conhece a série vai ficar muito curioso para saber detalhes de algo que só havia aparecido em fragmentos esparsos em outras obras.

Felipe Bini: Para encerrar, recentemente foi divulgado um vídeo de George em que ele aponta Daemon Targaryen como seu personagem favorito em Fogo & Sangue. Quais foram os de vocês?

Regiane Winarski: Essa é a pergunta mais difícil para mim (risos). Gosto muito das mulheres Targaryen, muitas delas verdadeiras guerreiras de fibra, determinadas a lutar pelos filhos e pela família. Se bem que, pensando melhor… meus favoritos são os dragões.

Leonardo Alves: Sem revelar nenhum detalhe da trama, eu diria que um dos meus preferidos foi Corlys Velaryon, a Serpente do Mar. Acho que é uma representação perfeita de aristocrata medieval capaz de influenciar toda a conjuntura de um continente tanto a partir de motivações pessoais quanto políticas.

E então, que tal as impressões e revelações de Regiane e Leonardo sobre a tradução de Fogo & Sangue? De minha parte, considero as respostas deles mais do que satisfatórias, e só tenho a agradecer a disponibilidade de ambos para responder as nossas perguntas. Compartilhe conosco também o que você achou nos nossos comentários!