“I’m a slow learner, it’s true. But I learn.”
Desde o início, Sansa Stark sempre foi uma personagem polêmica, que despertava fortes emoções tanto nos leitores quanto nos telespectadores. Na maior parte do tempo – especialmente entre os fãs da série de TV – os sentimentos reservados a ela eram negativos. No entanto, desde a sexta temporada de Game of Thrones, a popularidade dela tem aumentado consideravelmente entre os fãs. Mas o que será que levou à isso? E o mais importante: será que ela está sendo “gostada” pelos motivos certos? Vamos verificar.
Como já dito, Sansa sempre foi uma personagem que gerava comoções extremas. Parte disso por sua personalidade, mas boa parte também devido ao talento e ao carisma de Sophie Turner, sua intérprete, que conquistou o coração de muitos fãs. A defesa de Sansa sempre foi focada em explicar exaustivamente que ela não precisava ser uma guerreira convencional para ser uma boa personagem. Mesmo com sua personalidade gentil, ela tinha força e coragem para sobreviver a tudo o que sofreu e é exatamente aqui que começa o grande problema da forma como ela foi adaptada.
Quando se assiste em retrospectiva, esses pontos positivos dela não são exatamente considerados positivos. A personagem Sansa em Game of Thrones, tal como todos os outros personagens, sofreu com uma boa dose de descaracterização em sua versão televisiva. Na série, as habilidades e talentos de Sansa não são valorizados. Pelo contrário, são tidos como uma fraqueza. A insistência em diminuí-la para que seja exibida como uma constante vítima de suas próprias atitudes foi ampliada de uma forma que faz parecer que a intenção é dizer: “Isso está acontecendo porque ela mereceu/buscou”.
Talvez o principal motivo para isso seja que, na série, não temos a atitude dela de contar à Cersei sobre os planos de seu pai, Eddard. Nos livros, Sansa comete esse deslize e rapidamente aprende e se arrepende sobre seu erro. Ela guarda essa lição constantemente em seu interior, e isso molda sua percepção do mundo a sua volta.
Como o próprio George R. R. Martin já mencionou, parte do desenvolvimento de Sansa se deu quando ela compreendeu que suas atitudes causaram algo ruim, ainda que tenha sido feito de forma inocente e sem intenção de machucar:
Sansa era a Stark que menos inspirava simpatia no primeiro livro; ela passa a inspirar mais, em parte porque assume sua responsabilidade na morte do pai.
(A Storm Coming. An interview with George R R Martin. Amazon.co.uk, 2000. Tradução livre)
Ao optar por não inserir esse detalhe, a adaptação – de forma consciente ou não – negou a ela boa parte de seu crescimento como personagem. Talvez seja por isso que na série ela cometa tantos erros parecidos repetidamente. Por exemplo, mesmo após ter sofrido horrores nas mãos de Joffrey, no quinto episódio da terceira temporada, quanto a oportunidade de fugir lhe é oferecida, ela se nega a aceitar, pois acredita que, se ficasse, teria mais chances de se casar com Loras Tyrell. É claro que no fim tudo deu errado e ela acabou sendo obrigada a se casar com Tyrion Lannister.
Após esse casamento, temos outra mudança da personagem dos livros. Embora inicialmente contrária ao casamento, a Sansa da série rapidamente se adapta a sua vida com o novo marido indesejado. A cena da série, na qual ela se ajoelha para que ele a cubra, já é uma boa representação dessa diferença na personagem. A Sansa dos livros se recusa terminantemente a ser conivente com a situação, mantendo em sua mente durante todo o casamento que ele, embora gentil, é seu inimigo e que ela deve ser cuidadosa com ele.
Sansa ficou vendo o anão afastar-se, com o corpo oscilando pesadamente de um lado para o outro a cada passo, como algo saído de um circo de aberrações. Fala com mais gentileza do que Joffrey, pensou, mas a rainha também falou comigo com gentileza. É ainda um Lannister, irmão dela e tio de Joff, e não é amigo. Antes, tinha amado o Príncipe Joffrey de todo o coração e admirara e confiara em sua mãe, a rainha. Tinham lhe devolvido esse amor e confiança com a cabeça do seu pai. Sansa nunca mais voltaria a cometer o mesmo erro.
(A Fúria dos Reis, cap. 2, Sansa I)
Já a Sansa da série escolhe se render mais uma vez. Após isso, eles se aproximam e chegam a ficar amigos, fazendo piadas juntos e trocando confidências. Esse tipo de atitude, embora aparentemente simpática, mais uma vez tira dela sua chance de crescimento e amadurecimento. Embora a essa altura esteja mais velha e já tenha sofrido coisas terríveis, ela ainda confia rapidamente e cegamente nas pessoas. Há um relapso muito grande da parte dela em se preservar, algo que mais uma vez, destoa de sua versão original.
Sansa observou a moça com suspeita. Teria visto o bilhete? Teria sido ela quem o colocara sob a almofada? Não era provável; a moça parecia ser estúpida e não alguém que se quisesse usar para entregar bilhetes secretos, mas Sansa não a conhecia. A rainha mudava seus criados a cada quinzena, a fim de se assegurar que nenhum deles se tornaria seu amigo. Quando o fogo cintilou na lareira, Sansa agradeceu secamente à criada e ordenou-lhe que saísse. A moça foi rápida em obedecer, como sempre, mas Sansa decidiu que havia algo de dissimulado nos seus olhos.
(A Fúria dos Reis, cap. 18, Sansa II)
Sansa aprendeu da pior forma que não pode confiar em qualquer pessoa, nem mesmo em suas criadas de quarto. Na série, isso não existe, visto que foi acrescentada uma amizade entre ela e Shae, embora eu particularmente veja isso mais como um componente dramático para o romance de Tyrion com a serva do que tendo um propósito para o enredo de Sansa em si.
Embora o excesso de confiança demonstrado por ela na série não pareça algo tão negativo, no final, essa falta de maturidade foi o que a levou a sua decisão mais prejudicial. Após o assassinato de Joffrey, ela finalmente consegue escapar dos inimigos de sua família. No entanto, graças à manipulação de Petyr, ela aceita colocar a si mesma mais uma vez nas mãos daqueles que derramaram sangue de seus entes queridos, e acaba sendo casada com Ramsay Bolton.
É desnecessário dizer o quanto esse enredo foi mal executado e de péssimo gosto. Toda a discussão acalorada que ocorreu na época do polêmico episódio Unbowed, Unbent, Unbroken deixou clara como a escolha de usar o estupro como recurso narrativo foi algo ruim. A lógica por trás do casamento não existia, a personagem foi inserida ali unicamente para sofrer mais um pouco e pagar por seus “pecados” antes de finalmente poder ter seu momento ao sol.
É aqui que entra a maior problemática disso, pelo menos ao meu ver. Não foi nenhuma surpresa quando Sansa se fortaleceu e decidiu começar a agir. Isso já era esperado desde que ficou claro que o enredo iria seguir a linha do “estupro empoderador” com a personagem. A surpresa, pelo menos para mim, foi a forma como os próprios fãs da personagem reagiram a isso. Longe de receber críticas, eles abraçaram essa versão como o auge do aproveitamento dela.
Para a maioria dos fãs de Sansa – e me sinto na obrigação de incluir boa parte dos fãs leitores aqui – não importa que a lógica por trás de esconder um exército tenha sido falha. Não importa que a vingança tenha sido totalmente fora da personagem. A única coisa que importa é o fato de que, agora finalmente ela estava sendo o que o público queria que ela fosse. Em outras palavras, o que ocorreu foi o famoso fanservice, puro e simples.
A própria Sophie Turner, intérprete da personagem, defendeu a introdução do arco, afirmando que:
Essas coisas aconteciam e não se pode descartar isso em um programa de TV onde tudo é sobre poder. Essa é uma maneira muito impactante de mostrar que você tem poder sobre alguém.
(Growing up Game of Thrones. Rolling Stone, 26 de março de 2019. Tradução livre.)
Ela completou ainda afirmando que o fato de a temporada terminar com uma Sansa fortalecida tornou o arco um ótimo enredo. Para ela, assim como para o telespectador médio, a cena foi satisfatória, porque Sansa estava finalmente enfrentando as pessoas que fizeram coisas ruins com ela. No entanto, Sansa Stark sempre teve pequenos atos de resistência e teria tido mais, se não tivesse sido alterada desde o início.
Turner acaba sendo um bom exemplo de como a personagem tem sido mal interpretada pelo público. A ideia de que ela se fortaleceu com o estupro é uma falácia muito usada para tentar deslegitimar seu crescimento em face a todos os outros abusos sofridos.
Já a menção ao fato de que esse tipo de coisa acontecia de verdade e por isso deve ser mostrado, não se sustenta porque, sim, abusos infelizmente acontecem o tempo todo, no entanto, raramente as vítimas saem de seu trauma para se tornar anjos vingadores cheios de confiança renovada em si mesmos. Existe um longo e doloroso processo de recuperação, e é nessa questão que a maior parte das representações sobre o tema peca. Abrir mão de trabalhar o desenvolvimento de um trauma acaba por desmerecer a recuperação e readaptação dos sobreviventes.
Conforme muito bem assinalado por Lara Vascouto em seu texto Sansa Stark e a (des)caracterização que a Levou de Vítima a Assassina, a escolha de transformar abruptamente a personagem de vítima constante em uma poderosa vingadora só aumentou a descaracterização da personagem em comparação com a original.
A Sansa que sorri de forma satisfatória enquanto assiste seu algoz ser comido por cães não é a Sansa real. É uma versão embrutecida e idealizada, que as pessoas que não conseguem aceitar que ela tenha uma personalidade gentil e diplomática esperam dela. A partir do momento em que ela abriu mão de sua essência para se tornar a versão “forte” – pelo menos na perspectiva geral desse conceito – ela tornou-se outra personagem.
Mas o que isso tudo quer dizer? Bem, a série de TV, como qualquer outra produção televisiva e cinematográfica, trabalha com recursos de condicionamento. Antes, não era permitido gostar da personagem. Ela ainda não tinha feito nada para merecer o amor do público. No entanto, como um grande arco redentor, ela finalmente fechou seu ciclo e o público recebeu permissão para simpatizar com ela.
Grosso modo, Sansa foi introduzida como uma personagem mimada e fútil. Para se redimir, ela precisava sofrer, aprender a se vingar e se tornar uma badass. Esse ciclo se fechou na sexta temporada, e, a partir daí, a popularidade dela só aumentou. Aumentou porque Sansa deu voz a tudo o que as pessoas odiavam nela e, dessa forma, legitimou essa versão.
Tragicamente, isso ocorreu com o aval de muitos fãs que deveriam ter sido mais críticos com a forma como a produção escolheu trabalhar a tal evolução dela. É difícil para mim compreender porque o fã que lutou tanto para defender o direito de Sansa em ser ela mesma abraçar de forma tão voraz a nova versão dela, que tornou-se nada mais, nada menos, que a antítese de tudo o que representava originalmente. No fim, a única lição deixada pela Sansa embrutecida da série é que não está tudo bem em ser apenas complacente. Para finalmente se tornar alguém que vale a pena ser valorizada, é preciso abraçar a violência e mudar.
Outro grande problema na adaptação da personagem é que, conforme já dito acima, ela foi construída para não parecer esperta ou inteligente. Não me entendam mal, não é que ela não seja, mas a forma como ela foi representada raramente passaria essa impressão para o telespectador desatento. Mais uma vez terei que enfatizar a diferença da Sansa televisiva e a Sansa literária. Se tem uma coisa que a Sansa dos livros não demonstra ser, é uma aprendiz lenta.
Seu sorriso malicioso transformou-se em algo mais suave enquanto estudava o rosto dela. – E o pesar pelo senhor seu pai que a deixa tão triste?
– Meu pai era um traidor – Sansa respondeu imediatamente. – E meu irmão e a senhora minha mãe são também traidores – tinha aprendido depressa aquele reflexo. – Eu sou leal ao meu amado Joffrey.
– Sem dúvida. Tão leal como uma corça rodeada de lobos.
– Leões – sussurrou ela.
(A Fúria dos Reis, cap. 2, Sansa I)
Um dos intensificadores disso é que, na série, a própria personagem constantemente se classifica de forma pejorativa. Sansa insultou a si mesma repetidamente ao longo das sete temporadas. Ela se chamava de burra, estúpida, fraca, boba, idiota etc. Esse tipo de pensamento, quando colocado na boca da própria personagem, é altamente prejudicial.
Primeiro, porque mais uma vez, condiciona o telespectador a concordar com sua autoavaliação. No entanto, a Sansa dos livros é muito perspicaz e isso contrasta fortemente com a versão que a adaptação passa dela.
Em segundo lugar, porque transfere para ela a responsabilidade pelos danos que sofre. Afinal, se Sansa não tivesse escolhido ficar em Porto Real, ela não teria sido obrigada a se casar. Se Sansa não tivesse escolhido ir com Brienne ao invés de ter aceitado se casar com Ramsay, ela não teria sido estuprada, se, se, se…
A jornada de Sansa em Game of Thrones foi resumida a sua própria suposta incapacidade de aprender. A única coisa que Sansa diz ter aprendido, foi com Cersei, mas nós não vemos isso. Aliás, ela não menciona o que exatamente ela aprendeu. Nos livros, ela aprendeu sobre o que não fazer.
– Outra lição que devia aprender, se tem esperança de se sentar no trono ao lado de meu filho. Se for branda numa noite como esta, terá traição estourando por toda a sua volta, como cogumelos depois de uma chuva forte. A única maneira de manter seu povo leal é assegurando-se de que a temem mais do que ao inimigo.
– Vou me lembrar, Vossa Graça – Sansa respondeu, se bem que sempre tivesse ouvido dizer que o amor era um caminho mais seguro para a lealdade do povo do que o medo. Se chegar a ser uma rainha, farei com que me amem.
(A Fúria dos Reis, cap. 60, Sansa VI)
E isso nos leva ao fatídico episódio final da última temporada, no qual ela mais uma vez vocalizou sua “falha”, a passagem citada no início do texto: “Aprendo devagar, mas aprendo.”
Depois de toda uma temporada na qual ela e Arya foram aparentemente jogadas uma contra a outra por Petyr Baelish, as duas tomam ciência de sua traição e por fim, juntos, os três irmãos vingam seu pai. Essa cena foi incrivelmente aplaudida como algo maravilhoso, afinal, todos torciam para esse momento. No entanto, as falhas na execução dela permanecem existindo, e Sansa, mais uma vez, foi posta em uma posição de inferioridade, ainda que estivesse aparentemente no comando da situação. Até mesmo em seu ápice, ela precisou se diminuir em sua fala para ser aplaudida.
É frustrante para mim ver a forma como a personagem foi menosprezada todo o tempo em sua adaptação. É ainda mais frustrante ver como as nuances negativas e todos os absurdos feitos com ela ao longo dos anos foram esquecidos facilmente. É ruim admitir, mas a verdade é que Game of Thrones ainda tem uma habilidade muito grande em modificar a visão dos personagens aos olhos do telespectador, por mais fã que ele seja.
A impressão de que se tem é que a série não gostava da personagem per se, e por isso, achou que deveria corrigir suas falhas na versão adaptada. Mas que falhas seriam essas? Sansa de fato precisava de um arco redentor? Ela fez algo de tão grave a ponto de ter a necessidade de criar todo um enredo de rebaixamento, dor e humilhação para que ela finalmente aprendesse a ser uma jogadora?
Não. Não precisava. Isso foi uma escolha deliberada. No fim, a Sansa Stark de Game of Thrones destoa tanto de sua personagem original em As Crônicas de Gelo e Fogo quanto qualquer outro personagem, e não tem problema em admitir isso. Minha intenção aqui é fazer um apelo aos fãs, e em especial, aos fãs de Sansa enquanto personagem, para que façam uma autocrítica e percebam o quão prejudicial é deixar todos esses erros passarem em prol de uma valorização forçada atual.
Não adianta muito criticar o enredo do estupro se, duas temporadas depois, tudo o que está sendo feito é aplaudido. Agir dessa forma só intensifica a versão de que sim, esse tipo de recurso narrativo é aceitável para fortalecer e criar simpatia para personagens femininas. E vale notar, nós não tivemos nenhum tipo de reação pós-trauma dela, apenas seu “renascimento” como uma mulher endurecida.
Quando consideramos tudo isso, é fácil entender o porque dela ter se tornado tão popular atualmente. Sophie é uma atriz talentosa, o roteiro está dando ao público o que ele aparentemente queria dela e ela se tornou o que as pessoas desejavam: uma não-Sansa. Mas a questão principal que gostaria de deixar é: pode-se considerar de fato uma valorização da personagem quando se tirou tudo aquilo que a tornava quem ela era para deixá-la agradável ao público? Para mim, não.