A indústria da caça de cliques, da meia-verdade, da deturpação e da fake news nunca para. Mais um caso de sensacionalismo envolvendo George R. R. Martin: matérias relatam que o autor de As Crônicas de Gelo e Fogo teria manifestado seu descontentamento com os rumos do final de Game of Thrones. A realidade: várias frases tiradas fora de contexto para formar uma narrativa.
O Gelo & Fogo, mais uma vez, se vê obrigado a fazer um post de esclarecimento para os leitores interessados na verdade sobre George R. R. Martin – o combate à sensacionalização de informações, que só serve gerar mais cliques, mais discussões e mais polêmicas, é um dos motes do nosso site, aliás.
A matéria que acabou viralizando e sendo reproduzida por vários portais brasileiros originalmente é do tabloide britânico Express. A narrativa se faz de retalhos de frases já ditas em diversas entrevistas, convenientemente recortadas de maneira a parecer que George está indignado com os rumos tomados para a série de TV (principalmente diante da grande insatisfação de público e crítica com os últimos episódios). Na verdade, porém, a matéria não traz nenhuma informação ou declaração nova de GRRM. Vamos, então, destrinchar quais são as falas de Martin que compuseram esses boatos.
A primeira menção é à entrevista dada por GRRM à Rolling Stone, pouco antes da estreia da oitava temporada. Em uma matéria de capa cujo foco eram as atrizes Sophie Turner e Maisie Williams, algum espaço foi dedicado a perguntas para Martin. Entre elas, houve uma sobre a reação dele às diferenças na trajetória de Sansa, bastante divergente na série e nos livros. As matérias relatam que George respondeu o seguinte:
Bem, sim, é claro que eu tenho uma reação emocional. Digo, eu preferia que tudo fosse feito exatamente como eu fiz? Com certeza.
De fato isso faz parte da resposta de George, mas a continuação dela foi convenientemente excluída:
Mas eu estive do outro lado também. Eu adaptei trabalhos de outras pessoas e não fiz isso exatamente como eles tinham sido escritos, então…
Alguns desvios, é claro, são porque eu fui lento demais com esses livros. Eu realmente deveria ter terminado isso quatro anos atrás, e se eu tivesse, talvez a história na TV fosse diferente. São duas variações da mesma história, ou de uma história similar, e é isso que você tem quando qualquer coisa é adaptada. A analogia que eu uso com frequência é perguntar para as pessoas quantos filhos Scarlett O’Hara tem. Você sabe a resposta disso?
As matérias sensacionalistas excluíram, portanto, a relativização de George, no sentido de que é normal que em adaptações ocorram mudanças do material original (algo que ele já disse diversas vezes). Importante notar também que o autor foi perguntando sobre o arco de Sansa, que divergiu dos livros, e não algo que foi escrito pela da ausências destes (como é o caso das temporadas atuais).
A segunda, e de longe, a mais distorcida referência é a um vídeo no qual Martin fala à Fast Company, entre outros vários assuntos, sobre a diferença entre escrever livros e roteiros para a televisão – uma vez que o autor passou praticamente uma década trabalhando com TV. Na parte final da entrevista, ele diz:
Também pode ser… traumático. Porque às vezes a visão criativa deles e sua visão criativa não combinam, e você tem aquela famosa coisa das “divergências criativas” – que gera muitos conflitos.
Essa frase é dita do ponto de vista de um autor televisivo, se referindo a interferências dos executivos da emissora nos rumos do roteiro. As (desonestas) matérias fizeram parecer que Martin se referia a diferenças que ele teria tido com os showrunners de Game of Thrones, enquanto autor de uma obra original que foi adaptada para a TV. Claramente uma mentira. O vídeo pode ser assistido abaixo:
Os trechos finais recordam duas ocasiões nos últimos meses em que George comentou que gostaria que a série tivesse mais temporadas, para que pudesse adaptar mais fielmente. É quanto ao fato de a série já estar terminando que ele se diz “triste” e “decepcionado” – o que é diferente de dizer que ele está atacando Game of Thrones.
Uma dessas falas, aliás, no tapete vermelho da oitava temporada de Game of Thrones, veio acompanhada de outras declarações de George que foram ignoradas, como aquela em que ele se diz agradecido por a série de TV ter mantido o espírito de seus livros. Portanto, embora verdadeiras, a escolha do material que compôs a matéria é explicitamente tendencioso.
Tudo isso significa que George não tem críticas aos roteiros a Game of Thrones ou que esteja plenamente satisfeito com a escrita da série de TV? Não. A questão aqui é a verdade: se ele está descontente com a série, não levou essa polêmica para a imprensa, como se está dando a entender. Como já disse George, “às vezes acho que o jornalismo morreu no dia em que a internet nasceu”.
É de bom tom também esclarecer que tampouco este nosso artigo é uma defesa dos rumos que Game of Thrones tomou. É unânime entre a equipe do site que a série sofre de diversos problemas de roteiro. Nem por isso vamos surfar essa onda de deturpações de falas de Martin, apenas para corroborar nossos pontos de vista. Vamos contra a maré de desinformação que só serve para criar polêmicas onde elas não existem (e gerar cliques e lucro para quem embarca nela).
Não é necessário ser fã de As Crônicas de Gelo e Fogo ou de Game of Thrones para estar ciente – e ter uma opinião – sobre os debates sobre informação e jornalismo que tomam dimensões éticas, políticas e metodológicas nos dias de hoje, seja pela possibilidade de democratização da informação com a popularização da Internet, bem como os usos questionáveis dessa situação. O tema de nosso site pode ser interpretado como supérfluo e “só entretenimento”, mas acreditamos que a responsabilidade e a honestidade na cobertura são cruciais em qualquer âmbito.