Quando A Guerra dos Tronos começa, somos apresentados a um reino em relativa paz. É final de um longo verão, as colheitas são férteis, o povo está satisfeito e confortável. No entanto, conforme a leitura avança, nos deparamos com um cenário modificado, no qual a guerra se torna cada vez mais uma dura realidade.
Aos poucos, somos apresentados à real história por baixo da aparente calmaria. Um rei que não quer reinar, uma coroa endividada, uma rainha ambiciosa, com uma família poderosa e perigosa, um príncipe cruel… Em suma, um prato cheio para uma crise, e é o que acontece.
No entanto, na maior parte do tempo, tendemos a olhar para o que chamamos de “jogo”, com suas peças valiosas e suas políticas intrincadas, mas o que muitos deixam passar é que a maioria dessas jogadas acontece à custa de muitos plebeus inocentes, que nada têm a ver com elas.
Na metade da trama de A Guerra dos Tronos, Catelyn Stark sequestra Tyrion Lannister em uma estalagem. Isso foi um dos estopins para que tudo o que vimos até aqui. É tudo muito empolgante, afinal, finalmente as coisas começam a esquentar a partir daí. Olhando o quadro geral, temos a perspectiva constante dos nobres e suas políticas de retaliação contra as ofensas sofridas. Um dos marcos é a cena em que Ned Stark é ferido enquanto tem uma desavença com Jaime Lannister.
Tudo isso é perceptível, afinal, estamos vendo aquilo acontecendo em primeira mão, pela perspectiva de um dos envolvidos. No entanto, Martin não se limita a nos dar apenas essa visão. Logo em seguida, descobrimos que a ação de Jaime não foi a única resposta ao sequestro de um Lannister. Houve outras consequências, e elas são sentidas especialmente pelos indivíduos comuns.
Os aldeãos estavam ajoelhados: homens, mulheres e crianças, igualmente esfarrapados e ensanguentados, com o rosto distorcido pelo medo. (…)
— Salteadores, Lorde Varys? — a voz de Sor Raymun Darry pingava desprezo. — Ah, eram salteadores, para lá de qualquer dúvida. Salteadores Lannister.
Ned conseguia sentir o desconforto no salão enquanto, dos grandes senhores aos criados, todos se esforçavam para escutar. Não podia fingir surpresa. O Ocidente transformara—se num barril de pólvora desde que Catelyn capturara Tyrion Lannister. Quer Correrrio quer Rochedo Casterly tinham convocado os vassalos, e reuniam—se exércitos no desfiladeiro sob o Dente Dourado. Fora apenas uma questão de tempo até que o sangue começasse a jorrar. (…)
— Isto é tudo o que resta do castro de Sherrer, Lorde Eddard. Os outros estão mortos, tal como o povo de Vila Vêneda e do Vau do Saltimbanco.
(…)
— Eu tenho… tinha… eu tinha uma cervejaria, senhor, em Sherrer, junto à ponte de pedra. A melhor cerveja ao sul do Gargalo, todos diziam, com a vossa licença, senhor. Agora já não existe, como todo o resto, senhor. Eles chegaram, beberam o que quiseram e derramaram o resto antes de atear fogo ao meu telhado, e teriam também derramado meu sangue se me tivessem apanhado, senhor. (…) Eles queimaram tudo. Saíram a cavalo na escuridão, do sul, e atearam fogo tanto nos campos como nas casas, matando quem tentava impedi-los. Mas não eram salteadores, não, senhor. Não faziam tenção de nos roubar o gado, estes não, mataram minha vaca leiteira no lugar em que a encontraram e a deixaram para os corvos e as moscas. (…) Mataram meu aprendiz. Perseguiram-no a cavalo, de um lado para o outro, pelos campos, espetando-lhe as lanças como se fosse um jogo, eles rindo e o rapaz tropeçando e gritando, até que o grande o trespassou.
A jovem ajoelhada ergueu a cabeça para Ned, muito acima dela, no trono.
— Também mataram minha mãe, Vossa Graça. E eles… eles… — a voz extinguiu-se, como se se tivesse esquecido do que ia dizer, e começou a soluçar.
Sor Raymun Darry retomou a história.
— Em Vila Vêneda o povo procurou refúgio no castro, mas os muros eram de madeira. Os atacantes empilharam palha contra a madeira e queimaram todos vivos. Quando as pessoas de Vêneda abriram os portões para fugir do fogo, foram abatidas com setas à medida que corriam, até mesmo mulheres com bebês de colo.
— Ah, que horror — murmurou Varys. — Quão cruéis podem ser os homens?
(A Guerra dos Tronos, Eddard XI)
Aqui, temos o primeiro vislumbre de como se começa uma guerra. Para atingir os grandes lordes, não há melhor forma do que atacar seus vassalos. Não importa que esses vassalos não tenham ligação nenhuma com a disputa pessoal. A vida deles não importa, o que importa é atingir um objetivo.
O questionamento feito por Varys é um que eu me peguei fazendo inúmeras vezes no decorrer de minhas leituras. A partir do segundo livro, as tragédias e penúrias que são impostas ao povo comum tornam-se cada vez mais frequentes e duras. Em dado momento, fica impossível ignorá-las. Como tantos outros escritores, Martin poderia ter escolhido trabalhar apenas a parte política e ativa da guerra, mas ele fez questão de ir além disso e nos mostrar a realidade de cada uma dessas pessoas ali. Não apenas os ditos jogadores e suas peças, mas também aqueles que muitas das vezes são usados como mero tabuleiro por onde eles passam por cima.
Enquanto nós ansiamos por ver as batalhas e os próximos movimentos de cada personagem e vibramos com as investidas de nossos lados favoritos na narrativa, recebemos várias menções à situação real daqueles que estão pagando o preço por isso. Por exemplo, é extasiante ler os Lannister enfrentando problemas em Porto Real. Mas esses problemas se devem a ações cruéis que seus opositores tomaram contra seus domínios, e consequentemente, contra seu povo.
Quando Renly Baratheon fechou as estradas para a cidade, foi divertido ler Cersei, Tyrion e o Pequeno Conselho tentarem manter o controle. No entanto, também foi isso que gerou a miséria, a fome e causou a morte daqueles que viviam lá. Não no palácio, é claro que não! Eles tinham comida, mantinham suas posições e luxos. Mas já as pessoas comuns, o povo, aqueles que não eram prestigiados pelo alto nascimento…
Com metade da viagem percorrida, uma mulher em prantos forçou a passagem por entre dois guardas e correu para a rua, à frente do rei e de seus companheiros, segurando o cadáver do bebê morto acima da cabeça. Estava azul e inchado, grotesco, mas o verdadeiro horror eram os olhos da mãe. (…) A mulher nem sequer piscou. Seus braços muito magros tremiam com o peso morto do filho. (…) De ambos os lados da rua, a multidão encapelou—se contra os cabos das lanças enquanto os homens de mantos dourados lutavam para manter a fileira. Pedras, bosta e coisas piores zumbiam por cima das cabeças. ‘Dê—nos comida!’, guinchou uma mulher. ‘Pão!’ trovejou um homem atrás dela. (…) Num instante, mil vozes juntaram—se ao cântico. Rei Joffrey, Rei Robb e Rei Stannis foram esquecidos, e o Rei Pão governou sozinho. ‘Pão!’, gritaram. ‘Pão, pão!’.
(A Fúria dos Reis, Tyrion IX)
Essa passagem é especialmente interessante porque casa perfeitamente bem com uma outra citação que temos nos livros.
O povo reza por chuva, filhos saudáveis e um verão que nunca termine. Não lhe interessa se os grandes senhores lutam suas guerras de tronos, desde que seja deixado em paz — encolheu os ombros. — E nunca é.
(A Guerra dos Tronos, Daenerys III)
O povo paga pelo jogo, e paga caro. Perdem suas casas, suas colheitas, sua liberdade e, frequentemente, até suas vidas. Não lhes resta nada senão tentar sobreviver da melhor maneira que podem. Mas em uma guerra, ninguém está a salvo.
Como seria agradável poder torcer sem culpa, apenas ansiando pela vitória de nossos favoritos, não é? Mas não é assim que funciona. Bem, é claro que é totalmente possível ainda ter lados favoritos e acreditar que uma causa é mais justa do que a outra. No entanto, tratando-se de batalhas, o pragmatismo fala mais alto. Para vencer, tudo é válido, mas não significa que deva ser aplaudido.
— Isso não foi cavalheiresco — disse Brienne quando se aproximaram o suficiente para ver com clareza. — Nenhum cavaleiro de verdade perdoaria uma carnificina tão cruel.
— Os verdadeiros cavaleiros veem coisas piores sempre que partem para a guerra, garota — disse Jaime. — E, sim, fazem coisas piores. (…)
Os cadáveres pendiam sobre suas cabeças, amadurecendo na morte como frutos fétidos. (…) A garota estava fitando uma das mortas. Jaime aproximou-se com seus pequenos e hesitantes passinhos, a única forma que a corrente permitia. Quando viu a tosca tabuleta pendurada no pescoço do cadáver mais alto, sorriu.
— Deitaram—se com Leões — leu. — Oh, sim, mulher, isso foi muito pouco cavalheiresco… mas, foi feito pelo seu lado, e não pelo meu.
(A Tormenta de Espadas, Jaime I)
Muitas vezes, o choque do leitor chega junto com o do personagem. Devido ao fato de termos preferências e lados, estamos pré-condicionados a considerar aqueles por quem torcemos como melhores do que seus rivais. Porém, Martin faz questão de quebrar essa idealização, tanto para nós quanto para os seus personagens. O trecho acima é um dos primeiros choques de realidade que Brienne sofre nos livros. Além de ser forçada a repensar sua ideia sobre o cavalheirismo, ela precisa aceitar que o lado pelo qual ela está lutando — ou seja, os Starks — é capaz de cometer tantas atrocidades quanto os adversários.
É chocante, mas necessário. Para o povo comum, não importa qual é o estandarte de quem os está matando. Tudo o que eles sabem é que mais uma vez estão sendo atacados e mortos porque aqueles que estão acima deles resolveram brigar entre si.
— Matou-os?
— E eu lhe diria se o tivesse matado? — o homem escarrou. — O mais provável é que tenha sido trabalho de lobos, ou talvez de leões, qual é a diferença? (…)
— Se fosse vocês, ficaria bem longe da estrada do rei — prosseguiu o homem. — E pior do que ruim, segundo dizem. Tanto lobos como leões, e bandos de homens sem bandeira que atacam qualquer um que consigam apanhar.
(A Tormenta de Espadas, Jaime II)
Brienne não é a única personagem a ser confrontada com essa realidade. Arya também recebe sua dose de choque de realidade durante sua árdua jornada. Ela – assim como nós – acaba por ser confrontada com os piores lados de todos.
A Montanha chegava ao armazém depois do desjejum e escolhia um dos prisioneiros para interrogatório. As pessoas da aldeia não o olhavam. Talvez pensassem que se não o vissem, ele não as veria… Mas via-as de qualquer jeito, e escolhia quem quisesse. Não havia esconderijos, não havia truques a usar, não havia como estar a salvo.
Uma moça dividiu a cama com um soldado durante três noites consecutivas; a Montanha a escolheu no quarto dia, e o soldado nada disse. Um velho sorridente remendava suas roupas e tagarelava a respeito do filho que estaria a serviço dos mantos dourados em Porto Real.
— E um homem do rei, ah, pois é — dizia — um bom homem do rei como eu, todo por Joffrey — dizia isso com tanta frequência que os outros cativos começaram a chamá-lo de Todo-por-Joffrey sempre que os guardas não estavam ouvindo. Todo-por-Joffrey foi escolhido no quinto dia. Uma jovem mãe com o rosto marcado pela varíola tinha se oferecido para lhes contar voluntariamente tudo o que sabia se prometessem não fazer mal à sua filha. A Montanha a ouviu, e, na manhã seguinte, escolheu a filha, para se assegurar de que a mulher não tinha guardado nada para si.
(A Fúria dos Reis, Arya VI)
Não existe saída para o povo comum. Ainda que tentem se colocar de um lado ou de outro, não faz diferença para aqueles que estão no topo. No fim, eles são considerados apenas meros efeitos colaterais de um quadro muito maior, e, dessa forma, sua existência acaba sendo desvalorizada. Em uma obra com um enredo político tão intrincado como são as As Crônicas de Gelo e Fogo, teria sido mais fácil ignorar esse aspecto social, mas é muito importante que Martin tenha escolhido trabalhar esse tipo de narrativa, pois embora seja dolorosa de se ler, mostra uma realidade que a grande maioria das pessoas prefere esquecer ou ignorar.
Nós somos essas pessoas comuns, aqueles que sofreriam se estivéssemos nesse cenário terrível. Não haveria justiça, misericórdia ou piedade. Não precisaria haver culpa ou crime para sofrer punições também. A dura verdade é que a maioria das pessoas não se importa com os civis, com o que eles desejam, sonham ou esperam do futuro. Eles não tem autonomia nesse universo. Como é muito bem pontuado por Gendry:
Os cavaleiros e fidalgos tomam-se uns aos outros como cativos e pagam resgates, mas não se importam se gente como nós se rende ou não.
(A Fúria dos Reis, Arya V)
E essa é uma triste verdade.
Então, como essas pessoas que não têm absolutamente nada podem se defender? Fazendo um paralelo histórico, é seguro dizer que as pessoas se apegavam àquilo que lhes daria conforto, se não nessa vida, pelo menos na próxima; em suma, se apegavam à fé e tornavam-se fortes críticos de todos aqueles que pareciam levar uma vida contrária a ela. Na história, cada vez que as coisas começavam a parecer estar fora de controle, uma reação religiosa ocorria. Por exemplo, o cronista espanhol, Alfonso de Palencia, escreveu criticamente, após fazer uma visita a Roma em 1471, que:
Nos dias em que quase o mundo inteiro seguia a religião católica, os prelados da Igreja vestiam—se com decoro; mas agora, quando toda a Ásia, África e um terço da Europa seguem a lua crescente [do Islã], quando a Grande Turquia ataca os católicos e diariamente nos coloca em dificuldades cada vez maiores, de modo que o medo agora se estende até mesmo para dentro dos próprios muros de Roma, nossos modelos, homens que deveriam dar o exemplo, entregam—se ao luxo e, como se não tivessem nada com que se preocupar no mundo, preocupam-se com seus trajes escandalosos e se rendem a uma dissolução digna de total condenação. (apud TREMLETT, 2018, p.84).
O próprio Martin também já falou sobre isso, em relação ao cenário atual de sua obra:
“Se você olhar para a história da igreja na Idade Média, teve períodos em que havia papas e bispos muito mundanos e corruptos. Pessoas que não eram espirituais, mas políticas. Eles estavam jogando sua própria versão do jogo dos tronos com os reis e os lordes. Mas você também teve períodos de reavivamento ou reforma religiosa – a maior delas foi a Reforma Protestante, que levou à divisão da igreja. (…) É o que você está vendo aqui em Westeros.”
O que acontece em Westeros nas crônicas também é semelhante ao que ocorreu na cidade de Florença no século XV, na qual os cidadãos — após sofrerem uma série de crises econômicas e o choque da inserção da nova cultura renascentista e humanista —, passaram a seguir os ditames do frade Girolamo Savonarola, que condenava ardentemente os excessos da nobreza e quaisquer apego a bens materiais. Digo “ardentemente” pois o mesmo ficou famoso por suas fogueiras das vaidades, na qual os cidadãos de diversas classes passaram a destruir sistematicamente seus bens como; como espelhos, cosméticos, joias e roupas finas, ou qualquer obra de arte, instrumentos musicais, livros e qualquer outro objeto de valor disponível no momento. Embora Savonarola tenha sido um problema para os nobres, ele foi amplamente aceito pelas camadas populares da sociedade florentina, que se entregaram cada vez mais aos seus ensinamentos e práticas pouco usuais.
Considerando isso, é visível que tal como na história, também recebemos uma resposta como essa nos livros. A crise econômica, as guerras, a aparição de uma nova religião desconhecida pela maioria e todos os outros contratempos passam a ser considerados algum tipo de punição divina.
E já há muito que alguém devia fazê-lo, não lhe parece? De que chamaria aquele deus vermelho que Stannis adora, se não de demônio? A Fé deve opor-se a um mal como este.”
(O Festim dos Corvos, Cersei IV).
O crescimento do fundamentalismo religioso em Westeros foi evidente no decorrer dos livros, chegando ao ponto culminante em O Festim dos Corvos. No entanto, já havia indícios de problemas futuros. Inicialmente, é claro, eles estavam revoltados. Até onde sabemos, vários dos septões eram corruptos, perdulários, gananciosos e se preocupavam mais com conforto e fortunas do que com cumprir seu papel social. O maior exemplo disso era o próprio Alto Septão, que acabou perdendo a vida ao ser confrontado por uma multidão faminta durante o motim em Porto Real.
A luz do sol incidiu na coroa de cristal do homem e derramou arcos—íris sobre o rosto erguido de Myrcella. O Alto Septão era tão gordo como uma bola, e conseguia ser ainda mais pomposo e loquaz do que Pycelle. (…) Lorde Gyles, com o rosto mais cinzento do que nunca, gaguejou uma história sobre ter visto o Alto Septão sendo derrubado da liteira, gritando preces enquanto a multidão o arrastava (…) A lista dos mortos era encabeçada pelo Alto Septão, destroçado enquanto gritava aos seus deuses por misericórdia. Homens famintos olham com olhos duros para sacerdotes gordos demais para andar.
(A Fúria dos Reis, Tyrion IX)
Devido a isso, não surpreende o fato de eles terem buscado uma figura que se mostrasse mais firme e mais reta em seguir os caminhos dos Sete, e encontraram o que buscavam naquele que conhecemos como o Alto Pardal, que, desde sua primeira aparição, já demonstra ser diferente de seus antecessores.
Seus seguidores também se mostram mais difíceis de lidar do que se imaginava. São homens e mulheres comuns, que não tinham nada, mas se encontraram na Fé. Ainda que seus métodos pareçam bizarros e perturbadores, para eles, fazem todo o sentido.
Cersei ficou espantada. Qyburn trouxera-lhe relatórios sobre a quantidade de pardais, mas ouvir falar dos números era uma coisa, e outra era vê-los. Centenas e mais centenas estavam acampados na praça, nos jardins. Suas fogueiras enchiam o ar de fumaça e cheiros ruins. Tendas de ráfia e cabanas miseráveis feitas de lama e pedaços de madeira sujavam o imaculado mármore branco. Estavam aninhados até nos degraus, sob as altas portas do Grande Septo. (…) Quando viu o que tinham feito a Baelor, o Adorado, a rainha teve motivos para se arrepender do seu coração suave. A grande estátua de mármore, que durante cem anos sorrira serenamente sobre a praça, estava enterrada até a cintura numa pilha de ossos e crânios. Alguns dos crânios mostravam pedaços de carne ainda agarrada. Um corvo encontrava-se pousado em um desses crânios, desfrutando de um banquete seco com uma consistência de couro. Havia moscas por todo lado.
— Que significa isto? — perguntou Cersei à multidão. — Pretendem enterrar o Abençoado Baelor numa montanha de carniça?
Um homem perneta deu um passo em frente, apoiado numa muleta de madeira.
— Vossa Graça, esses são os ossos de homens e mulheres santos, assassinados devido à sua fé, Septões, septãs, irmãos negros, pardos e verdes, irmãs brancas, azuis e cinzentas. Alguns foram enforcados, outros estripados. Septos foram pilhados, donzelas e mães foram violadas por homens ímpios e adoradores de demônios. Até irmãs silenciosas foram molestadas. A Mãe no Céu chora em angústia. Trouxemos seus ossos de todo o reino até aqui para servir de testemunho à agonia da Santa Fé.
Cersei sentia o peso dos olhos sobre si.
— O rei saberá dessas atrocidades — respondeu solenemente. — Tommen partilhará de sua indignação. Isto é obra de Stannis e de sua bruxa vermelha, e dos nortenhos selvagens que adoram árvores e lobos — ergueu a voz: — Bom povo, seus mortos serão vingados!
Alguns aclamaram, mas só alguns.
— Não pedimos vingança por nossos mortos — disse o perneta — apenas proteção para os vivos. Para os septos e lugares santos.
(O Festim dos Corvos, Cersei VI)
As pessoas simplesmente estão cansadas. Cansadas da fome, da destruição e de tudo que a guerra trás. Eles estão prontos para se agarrar a qualquer coisa que pareça oferecer uma saída para suas dores. Por isso, a fuga religiosa se encaixa perfeitamente na mentalidade deles. Em momentos de dor, muitos se voltam para uma entidade superior para buscar justificativa ou uma saída esperançosa para o que estão passando. Se estão sofrendo, assumem que é algum tipo de punição por ações erradas, e por outra lado, também encontram alívio na ideia de que podem mudar isso caso mudem sua forma de viver e agir. E se no fim de tudo isso o sofrimento permanecer, então encontram forças na ideia de uma vida melhor após a morte.
Em Westeros, as pessoas estão num ponto de desgaste total e nesse meio tempo surgiu alguém, uma figura que parecia entender seu sofrimento e que parecia apresentar uma solução para a crise que eles se encontravam. Quando olhamos o quadro geral, não é difícil entender por que o Alto Pardal tem tantos apoiadores fiéis, considerando sua figura rígida.
— Septão Raynard? — a rainha quase não conseguia crer no que via. — O que faz de joelhos?
— Está limpando o chão — o homem que falou era vários centímetros mais baixo do que a rainha e magro como um pau de vassoura. — O trabalho é uma forma de prece, muito do agrado do Ferreiro — o homem se levantou, de escova na mão. — Vossa Graça. Temos estado à sua espera.
A barba do homem era grisalha, castanha e cortada curta, os cabelos atados num nó apertado por trás da cabeça. Embora as vestes que envergava estivessem limpas, estavam também puídas e remendadas. Enrolara as mangas até os cotovelos enquanto esfregava o chão, mas abaixo dos joelhos o pano estava encharcado. O rosto era marcadamente pontiagudo, com olhos encovados castanhos como lama. Seus pés estão nus, Cersei percebeu, consternada. E também eram hediondos, umas coisas duras e coriáceas, tornadas grossas por calos.
— É você Sua Alta Santidade?
— Sim.
Pai, dê-me e forças. A rainha sabia que devia se ajoelhar, mas o chão estava molhado com sabão e água suja, e ela não desejava estragar o vestido. Lançou um relance aos velhos de joelhos.
— Não vejo o meu amigo, o Septão Torbert.
— Septão Torbert foi confinado a uma cela de penitente, a pão e água. É um pecado que um homem seja tão gordo quando metade do reino passa fome.
Cersei já aguentara o suficiente por um dia. Deixou-o ver sua ira.
— É assim que me cumprimenta? Com uma escova na mão, pingando água? Sabe quem eu sou?
— Vossa Graça é a Rainha Regente dos Sete Reinos — o homem disse — mas na Estrela de Sete Pontas está escrito que tal como os homens se dobram perante seus senhores e os senhores perante seus reis, assim os reis e as rainhas devem se dobrar perante os Sete Que São Um Só.
Está me dizendo para ajoelhar? Caso estivesse, não a conhecia muito bem.
— O certo seria que tivesse me cumprimentado na escada, com suas melhores vestes e a coroa de cristal na cabeça.
— Não temos nenhuma coroa, Vossa Graça.
Suas sobrancelhas franziram-se mais.
— O senhor meu pai deu ao seu antecessor uma coroa de rara beleza, trabalhada em cristal e ouro tecido.
— E por esta dádiva honramos seu pai em nossas preces — disse o Alto Septão — mas os pobres precisam mais de comida na barriga do que nós precisamos de ouro e cristal na cabeça. A coroa foi vendida. O mesmo aconteceu às outras que tínhamos nas câmaras subterrâneas, bem como todos os nossos anéis e vestes de pano de ouro e prata. A lã manterá os homens igualmente quentes. Foi para isso que os Sete nos deram as ovelhas.
Ele é completamente louco. Os Mais Devotos também deviam estar para eleger aquela criatura… Loucos, ou aterrorizados.”
(O Festim dos Corvos, Cersei VI)
Para Cersei e a maioria dos outros nobres que estavam acostumados com os Alto Septões sendo facilmente manuseados, encontrar o Alto Pardal é chocante. Ele é um homem duro, que mais parece um camponês do que um religioso de alto escalão, e não parece interessado em nenhum bem terreno. Como isso é possível? No entanto, é exatamente isso o que ele é.
Conforme a leitura avança, cada vez mais vamos sendo chocados com essa figura peculiar e todas as suas ações, da mesma forma que acontece com os personagens. É possível que isso ocorra porque, no decorrer dos livros, ficamos acostumados aos personagens ambiciosos e com uma agenda particular de planos, mas aqui parece que encontramos alguém que está lutando contra isso. De certa forma, ele é o vilão do arco de Porto Real, mas se levarmos em conta suas motivações, não parece certo considerá-lo assim.
Nessa altura, teria sido fácil visualizar a figura dele como um aproveitador hipócrita, mas mais uma vez, Martin nos traz um personagem tão complexo quanto qualquer outro. Até o presente momento, ele tem demonstrado ser exatamente o que aparenta. Um extremista religioso que acredita fielmente estar fazendo o trabalho divino e assume para si a responsabilidade de livrar a população de seus flagelos físicos e espirituais. Para o leitor, é chocante e horrível, mas para os personagens invisíveis da história, ele representa a esperança. É claro que isso não significa que devemos concordar com seus métodos, e nem que ele esteja isento de críticas. O que muitas vezes acontece, porém, é sua figura receber uma avaliação negativa pelo seu extremismo religioso, mas seu papel social ser ignorado.
Estamos falando de uma população constantemente massacrada e aterrorizada com as ações dos grandes lordes sobre si, e que finalmente encontrou alguém que está contra isso. Alguém disposto a não apenas prometer, mas realmente abrir mão do que tem, incluindo as posses e riquezas que sua posição lhe oferece, para alimentá-los, mantê-los seguros e, principalmente, alguém que parece forte o suficiente para fazer os poderosos senhores pagarem pelos crimes que cometem contra o povo comum. Quando consideramos tudo isso, podemos mesmo culpar a população westerosi por apoiá-lo?
A Fé conquistou nesse momento um poder e autonomia que não tinha há séculos, e isso tudo ocorreu graças à destruição causada pela guerra e à insatisfação popular com aqueles que, em tese, deveriam protegê-los. Não parece que eles serão facilmente desestimulados, então podemos esperar mais alguns choques entre essas pessoas e os futuros reis e rainhas no decorrer dos próximos livros. Ouso dizer que o apoio deles será crucial para aqueles que quiserem tentar sua vez no trono. A que preço, porém, só podemos imaginar…
Para qualquer pessoa que goste de história como eu, é sempre estimulante ler sobre as grandes batalhas que mudaram o curso dela. Nunca deixo de ficar fascinada com a grandiosidade daquilo, e, na imaginação, tudo parece empolgante. Ou pelo menos parecia. Infelizmente, preciso confessar que um monólogo presente nos livros acabou com esse sentimento para mim. Ainda gosto de ler sobre elas, mas agora, faço isso imaginando que cada uma daquelas baixas era realmente uma pessoa, não apenas um número a ser contabilizado pela historiografia.
Um dos maiores equívocos que cometemos é assumir que exércitos são uma massa única e sem identidade própria, lutando por um ideal comum. No entanto, não é isso o que acontece. A maior parte deles é constituído de homens comuns, que mal sabem sobre o que estão lutando. Eles estão ali não porque querem ou acreditam na causa de seus senhores. Estão lá porque são obrigados a estar. Mais uma vez, teria sido fácil ignorar essa faceta se não tivéssemos recebido todo um capítulo para nos fazer pensar sobre suas figuras.
— Parece mais um cavaleiro do que um homem santo — estava escrito em seu peito e ombros e naquele grande maxilar quadrado. — Por que desistiu da cavalaria?
— Nunca a escolhi. Meu pai era um cavaleiro, assim como o dele tinha sido. E meus irmãos também, todos eles. Fui treinado para a batalha desde o dia em que me acharam com idade suficiente para pegar em uma espada de madeira. Vi minha cota de batalhas, e não me desgracei. Também tive mulheres, e então me desgracei, pois algumas tomei pela força. Havia uma garota com quem desejava me casar, a filha mais nova de um pequeno lorde, mas era o terceiro filho de meu pai e não tinha nem terras nem riquezas para lhe oferecer… só uma espada, um cavalo, um escudo. Tudo somado, era um triste homem. Quando não estava lutando, estava bêbado. Minha vida era escrita em vermelho, em sangue e vinho.
— Quando foi que mudou? — Brienne quis saber.
— Quando morri na Batalha do Tridente, Lutei pelo Príncipe Rhaegar, embora ele não tivesse chegado a saber meu nome. Não lhe saberia dizer o porquê, exceto que o nobre que eu servia estava a serviço de um nobre que servia um nobre que decidira apoiar o dragão e não o veado. Se tivesse decidido de outra forma, eu poderia ter estado na outra margem do rio. A batalha foi uma coisa sangrenta. Os cantores querem nos fazer acreditar que foi apenas Rhaegar e Robert a lutar no meio da correnteza por uma mulher que ambos afirmavam amar, mas asseguro—lhe que outros homens também combatiam, e eu fui um deles.”
(O Festim dos Corvos, Brienne VI)
Soldados comuns lutam por quem seus senhores escolhe lutar. Da mesma forma que aqueles deixados para trás numa guerra, eles não tem autonomia para escolher seus “lados”. São homens e meninos comuns, que nunca lutaram na vida, que só conhecem seus pequenos vilarejos e que, de uma hora para outra, são obrigados a entrar em marcha e ir morrer numa disputa que não é deles.
Essa é a vida do soldado comum, tão cruel e trágica como a civil que eles deixam para trás. E o que eles podem fazer? Nada, a não ser continuar lutando e sonhar com o dia em que a guerra chegue ao fim. Mesmo o tratamento dado aos soldados comuns é diferente daqueles recebidos pelos soldados nobres. Eles recebem o mínimo possível e na maioria das vezes são deixados a própria sorte. Temos exemplos disso durante a marcha para Winterfell:
E não havia comida, além dos cavalos que morriam, dos peixes pegos nos lagos (menos a cada dia) e qualquer outro escasso sustento que os forrageadores conseguissem encontrar nessas florestas frias e mortas. Com os cavaleiros do rei e os senhores exigindo para si a “parte do leão” da carne de cavalo, pouco e ainda menos restava para os homens comuns. Não era de se admirar, portanto, que tivessem começado a comer seus próprios mortos.
(A Dança dos Dragões, Asha III)
Dessa forma, não deveria ser surpresa a existência daqueles que se quebram no caminho. Os que não aguentam mais e desertam. Mas após isso, o que resta para eles? A vida de um fora-da-lei? Como voltar para casa se, em muitos casos, estão tão longe que nem se lembram mais de onde vieram? E suas famílias? Ainda vivas? Não há como saber, e isso os destrói. É aqui que temos a transição de homens comuns para máquinas de matar.
— Sor? Senhora? — Podrick os interrompeu. — Um desertor é um fora da lei?
— Mais ou menos — Brienne respondeu.
O Septão Meribald discordou.
— Mais menos do que mais. Há muitas espécies de fora da lei, assim como há muitas espécies de pássaros. Tanto um borrelho como uma águia marinha têm asas, mas não são a mesma coisa. Os cantores adoram cantar sobre bons homens forçados a sair da lei para combater um senhor malvado qualquer, mas a maioria dos fora da lei são mais parecidos com esse Cão de Caça voraz do que com o senhor do relâmpago. São homens maus, movidos pela ganância, amargurados pela maldade, que desprezam os deuses e só se preocupam consigo. Os desertores são mais merecedores de nossa piedade, embora possam ser igualmente perigosos. Quase todos são plebeus, gente simples que nunca tinha estado a mais de uma milha da casa onde nasceu até que algum senhor veio levá-los para a guerra. Mal calçados e malvestidos, partem marchando sob seus estandartes, muitas vezes sem melhores armas do que uma foice, uma enxada afiada ou um martelo que eles mesmos fizeram atando uma pedra a um pedaço de madeira com tiras de pele de animal.
Irmãos marcham com irmãos, filhos com pais, amigos com amigos. Ouviram as canções e as histórias, e por isso vão se embora de coração ansioso, sonhando com as maravilhas que verão, com as riquezas e as glórias que conquistarão. A guerra parece uma bela aventura, a melhor que a maioria deles alguma vez conhecerá. Então experimentam o sabor da batalha. Para alguns, essa única experiência é suficiente para quebrá-los. Outros resistem durante anos, até perderem a conta de todas as batalhas em que lutaram, mas mesmo um homem que sobreviveu a cem combates pode fugir no centésimo primeiro. Irmãos veem os irmãos morrer, pais perdem os filhos, amigos veem os amigos tentando manter as entranhas dentro do corpo depois de serem rasgados por um machado. Veem o senhor que os levou para aquele lugar abatido, e outro senhor qualquer grita que agora pertencem a ele. São feridos, e quando a ferida ainda está apenas meio cicatrizada, sofrem outro ferimento. Nunca há o suficiente para comer, os sapatos se desfazem devido às marchas, as roupas estão rasgadas e apodrecendo, e metade deles anda cagando nos calções por beber água ruim. Se quiserem botas novas ou um manto mais quente ou talvez um meio-elmo de ferro enferrujado, têm de tirá-los de um cadáver, e não demora muito para que comecem também a roubar dos vivos, do povo em cujas terras combatem, homens muito parecidos com os que eram. Matam suas ovelhas e roubam suas galinhas, e daí é um pequeno passo até levarem também suas filhas.
E um dia, olham ao redor e percebem que todos os seus amigos e familiares se foram, que estão lutando ao lado de estranhos, sob um estandarte que quase nem reconhecem. Não sabem onde estão nem como voltar para casa, e o senhor por quem combatem não sabe seus nomes, mas ali vem ele, gritando-lhes para se posicionarem, para fazerem uma fileira com as lanças, foices e enxadas afiadas, para aguentarem. E os cavaleiros caem sobre eles, homens sem rosto vestidos de aço, e o trovão de ferro de seu ataque parece encher o mundo… E o homem quebra. Vira-se e foge, ou rasteja para longe, depois por cima dos cadáveres, ou escapole na calada da noite e encontra um lugar qualquer para se esconder. Toda noção de casa está perdida a essa altura, e reis, senhores e deuses significam menos para ele do que um naco de carne estragada que lhes permita sobreviver mais um dia, ou um odre de vinho ruim que possa afogar-lhes o medo durante algumas horas. O desertor sobrevive dia a dia, de refeição em refeição, mais animal do que homem. (…) Em tempos como estes, o viajante deve ter atenção aos desertores, e temê-los… mas também deve ter piedade por eles.
(O Festim dos Corvos, Brienne V)
Mais uma vez, a realidade do que é uma guerra é mostrada. Dessa vez, descobrimos o lado daqueles que estão cometendo as atrocidades que vimos o povo sofrer anteriormente. Poderíamos classificá-los simplesmente como monstros disformes, mas a verdade é que eles eram pessoas tão comuns quanto aquelas que estavam massacrando. Eram meninos, rapazes e homens que, em sua maioria, cresceram em lares simples. Tinham pais, mães, irmãos e irmãs, e dessa forma, também sofreram horrores para chegar até onde chegaram. No fim, os monstros eram só humanos forjados na guerra.
Para mim, esse é um dos trechos mais marcantes dos livros. Não apenas ele nos mostra a realidade por trás do discurso glorioso das batalhas, mas também traz uma percepção muito grande de como uma pessoa pode ser despojada de tudo o que possui no meio de uma guerra. Perdem suas casas, sua família, o pouco que possuem, e, por fim, perdem sua própria humanidade. Às vezes mantêm a vida, mas parafraseando Mirri Maz Duur, de que serve a vida quando todo o resto desapareceu?
Não há muito o que dizer para concluir esse texto, apenas que é preciso ler com atenção esses relatos. Eles estão lá por um motivo, e não é apenas para chocar. Precisamos compreender que guerras e batalhas podem parecer gloriosas e grandiosas, mas na realidade, o preço pago por elas é sempre alto demais, e quem geralmente paga por eles são aqueles que não tem culpa. Por mais que o Jogo dos Tronos pareça ser incrível, as consequências dele foram, e ainda serão, catastróficas.