Aproveitando o lançamento nacional de Santuário dos Ventos e de uma adaptação do livro em graphic novel, o Gelo & Fogo entrevistou de forma exclusiva Lisa Tuttle, a autora que, junto com George R. R. Martin, escreveu a história de Maris, a menina que sonhava em voar.
Lisa se mostrou uma pessoa muitíssimo acessível e disposta a discutir sua carreira como escritora. Além disso, compartilhou conosco uma foto de seu arquivo pessoal:
Na foto, que data de outubro de 1974, é possível ver um encontro entre ela e George. O autor havia ido visitá-la em Austin, para entregar o prêmio John W. Campbell para novos autores – que Tuttle venceu na Worldcon daquele ano, mas não pôde receber no evento. A primeira parte de Santuário dos Ventos foi escrita mais ou menos nessa época.
Confira nossa conversa com Lisa:
Arthur Maia: Como foi que Santuário dos Ventos surgiu? A primeira ideia que você e George tiveram era sobre um mundo onde navegar era quase impossível e os voadores eram necessários, ou era sobre Maris, uma menina que sonhava em voar mas não tinha a linhagem certa para isso?
Lisa Tuttle: Santuário dos Ventos surgiu no início de 1974, depois que nós discutimos a ideia de colaborar em um conto por meses, sem ainda ter chegado a uma ideia com que nós dois estivéssemos igualmente empolgados. Então, George ofereceu dois “embriões de ideias” de seus arquivos para que eu considerasse. Não havia um enredo ou personagens, apenas algo que ele achou que poderiam se tornar boas histórias. Um deles era sobre um futuro no qual humanos se adaptaram para viver no fundo do mar, a outra se passava em um planeta-oceano onde uma nave espacial caiu gerações antes. Os sobreviventes usaram os destroços para transformar o imensamente forte metal de liga leve da espaçonave em asas como asas-delta que possibilitavam que indivíduos voassem de uma ilha para a outra nos fortes ventos das tempestades muito mais rápido do que seria navegar em um barco de madeira por mares tempestuosos e infestados de monstros. É um trabalho perigoso e os voadores são figuras glamurosas. Ele herdam este status: as asas são passadas pela linhagem familiar. Isso sugeria um conflito: quem herda as asas em casos de gêmeos?
Eu gostei da ideia, e queria que a personagem principal fosse uma mulher. Por que os voadores deveriam ser apenas homens? Mas eu não queria escrever sobre uma mulher determinada a entrar em uma sociedade apenas de homens, tendo que lutar contra os mesmos preconceitos e barreiras que existiam no século XX, ou pior. Eu era uma feminista, formada pelo “Women’s Liberation Movement”, que começou nos EUA quando eu estava no ensino médio. Eu estava esperançosa, e esperava ainda experienciar muitas mudanças positivas em termos de igualdade durante a minha vida. Então, mesmo que nossos colonizadores da nave espacial caída fossem forçados a um modo de vida mais primitivo nesse planeta distante, onde metais eram muito raros e muito da tecnologia e conhecimento do futuro havia se perdido, eu não queria pensar que os avanços sociais também seriam apagados. Isso era ficção científica, nós não precisávamos nos limitar ao que aconteceu no passado! Eu imaginei uma cultura mais igualitária. Nada disso foi explicado nem sequer mencionado no livro, mas eu estava pensando por trás disso. Conversei sobre isso com George. Minha ideia era que no futuro, mulheres iriam controlar sua fertilidade, sem a necessidade de tomar pílulas, fazer operações ou usar qualquer solução high-tech, e esta habilidade (possivelmente relacionada à genética, mas com certeza estabelecida centenas de anos antes das viagens espaciais), que significava que homens não podiam mais fazer mulheres engravidarem contra sua vontade, e mulheres não podiam “acidentalmente” ficarem grávidas, ou menstruar em um momento inconveniente… embora algumas ainda poderia ser inférteis, e isso ainda causaria situações onde duas pessoas que queriam uma crianças não conseguiriam, nenhuma gravidez ou criança seria indesejado. Famílias teriam tendência a serem menores. Não haveria nenhuma razão “biológica” para restringir as mulheres de qualquer trabalho que um homem pudesse fazer. Então, mantivemos a ideia da primogenitura – as asas passariam para um filho mais velho em uma família de voadores, mas ao invés de gêmeos (que, afinal, poderiam dividir… e um deve ter saído primeiro!), eu pensei que seria mais interessante criar um choque cultural que iria questionar toda a tradição estabelecida. E se nosso herói/heroína viesse de uma família de não voadores, talvez a criança de um barqueiro morto que foi adotada por um voador que não tinha filhos, treinada para ser uma voadora, e esperava ter suas próprias asas um dia… até que… um filho legítimo nascesse, e de repente ela perderia o direito à única vida que ela sempre sonhou.
Arthur Maia: Quando As Tempestades de Windhaven foi escrito, no início da década de 1970, vocês já haviam concebido o conceito para Uma Asa? Você sentiu que o jeito que Maris encontrou para organizar a sociedade dos voadores precisaria de um contraponto?
Lisa Tuttle: Quando terminamos de escrever a primeira história, já sabíamos que queríamos escrever mais sobre o “Santuário dos Ventos”, mas ainda não havíamos decidido se essa próxima história seria sobre Maris ou não. Eu me lembro de discussões sobre uma história chamada Windship (algo como “Nave dos Ventos”), que se passaria décadas – talvez até um século – depois que as mudanças de Maris aconteceram, mas além da ideia de que alguém iria desenhar e criar uma aeronave de madeira, uma espécie de planador, que poderia levar cargas e pelo menos um passageiro, se não mais, eu não me lembro muito disso. No final, decidimos olhar para os resultados dos primeiros torneios das academias de treinamento de voadores, e como a sociedade dos voadores estalava lidando com essas mudanças… Foi assim que Uma Asa nasceu.
Arthur Maia: Como você vê Val Uma-Asa? Ele era este contraponto necessário e suas ações são justificadas por suas condições, ou ele realmente não tem empatia?
Lisa Tuttle: Eu não posso responder por George, mas eu acho que Val foi formado pelo seu background e fez uma escolha deliberada de encobrir seus sentimentos. É claro, ele conseguia sentir empatia… Ele não era um psicopata!… Mas ele reprimiu essa habilidade para se proteger. Ele tinha um grande peso sobre seus ombros (como dizemos em inglês) e era amargurado pelas suas experiências. Eu acho que Maris sentia uma simpatia relutante por ele – sem gostar dele – e meu sentimento é parecido. Infelizmente, em situações de escassez e conflito, sempre haverão “vencedores” e “perdedores”, e muitas pessoas, como Val, sempre irão botar seus interesses acima de todos os outros, mesmo indo contra pessoas que poderiam ajudá-los.
Arthur Maia: Não há uma religião clara em Santuário dos Ventos, houve alguma discussão entre você e Martin sobre criar uma? Se sim, por que decidiram deixar isso de fora?
Lisa Tuttle: Nós nunca falamos sobre religião que eu me lembre. Nós deixamos algumas pistas que sugerem que existem várias religiões em Santuário dos Ventos – no Sul, eles cultuam um Deus dos Céus, e eu acho que em algum outro lugar, os voadores eram padres (é um mundo multicultural!). Maris, com certeza, não é uma pessoa religiosa, e o seu arquipélago natal, o do Oeste, parece ser completamente secular. Se tem uma igreja, eles não são poderosos. Isso provavelmente reflete nos interesses dos autores naquela época – religião não estava muito proeminente entre eles. Falando por mim, eu provavelmente imaginava que nos próximos séculos, a religião iria ter perdido importância e se tornado um assunto completamente pessoal, sem significância social ou política. Do jeito que o mundo está hoje, isso parece besteira!
Arthur Maia: Santuário dos Ventos acaba de virar uma graphic novel, ilustrada por Elsa Chatterier. Você teve a oportunidade de lê-la? Como você se sente sobre a adaptação?
Lisa Tuttle: Bem, eu mesma escrevi a adaptação… então, o que posso dizer? Foi a minha primeira vez escrevendo um roteiro, e eu gostei do desafio de traduzir um romance para esse novo formato. Eu espero ter feito um bom trabalho, mas deixo isso para os outros julgarem. É claro, eu tive que ler e reler o livro com muita atenção, então ele ainda está muito fresco na minha cabeça – que é a razão para eu conseguir responder suas questões sobre algo que George e eu escrevemos juntos há quase quarenta anos! Eu com toda certeza amei a arte. Elsa Charretier é incrivelmente talentosa, e a nossa colorista, Lauren Affe, também fez um ótimo trabalho. Tudo parece tão novo em folha – e eu acho isso maravilhoso, espero que a história alcance uma nova audiência, assim como àqueles que já amam nosso romance original.
Arthur Maia: Infelizmente, só temos duas de suas histórias traduzidas no Brasil, Santuário dos Ventos e O Curioso Caso do Deodand (na antologia Ruas Estranhas de George R. R. Martin e Gardner Dozois). O que você sugeriria para os seus leitores brasileiros como um próximo passo? Que histórias você gostaria de ter publicadas por aqui?
Lisa Tuttle: Se os leitores gostaram de O Curioso Caso do Deodand, eles podem estar interessados em saber que tenho dois romances sobre os mesmos personagens, Jasper Jesperson e Miss Lane. Como nos contos, tem mistérios com elementos sobrenaturais na Inglaterra dos anos 1890. O primeiro é The Curious Affair of the Somnambulist and the Psychic Thief, seguido por The Curious Affair of the Witch at Wayside Cross. Também tenho muitos contos publicados, a maioria deles no lado escuro da fantasia – fantasmas, histórias de terror, histórias estranhas de todos os tipos. Também escrevi duas fantasias contemporâneas, se passando principalmente na Escócia, que combinam o cenário do mundo real com lendas escocesas e celtas. Um romance mais antigo sobre realidades alternativas, Lost Futures, que foi indicado para o Arthur C. Clarke Award, tem tido uma boa repercussão depois que foi traduzido para o espanhol e publicado ano passado na Espanha pela Gigamesh (a editora espanhola de outros livros de George).
Arthur Maia: Falando de mulheres escrevendo ficção científica e fantasia, você tem algumas recomendações para nossos leitores? Sejam clássicos ou novas autoras que você gostaria que fossem mais conhecidas.
Lisa Tuttle: As autoras clássicas são mais fáceis de listar – embora eu não faça ideia de quais delas foram traduzidas. Qualquer lista de obrigatórias deve incluir Ursula LeGuin, Kate Wilhelm, Joanna Russ, Suzy McKee Charnas e Pat Cadigan (porém, embora ela não tenha diminuído o ritmo e esteja agora trabalhando em mais um romance muito aguardado, Pat poderia ter objeções a ser colocada em uma lista dominada por pessoas falecidas… mas veja, você não precisa estar morta para ser um clássico). Outras de minhas favoritas pessoais incluem Elizabeth Hand e Karin Tidbeck, e eu estou ansiosa para ler a Anne Charnock, que acabou de receber o prêmio Arthur C. Clarke por seu romance Dreams Before the Start of Time. E eu sei que há muitas ótimas novas autoras por aí – a lista de livros que eu quero ler só fica maior e maior.
Santuário dos Ventos foi lançado no Brasil em março de 2018, e pode ser adquirido aqui. A graphic novel foi lançada em língua inglesa no mês passado, podendo ser comprada neste link.